Na natureza, um terremoto é seguido por tremores secundários, suas réplicas. Estes podem ser tão catastróficos em seus efeitos quanto a explosão original. Estamos testemunhando este fenômeno em termos sociais e políticos.
O terremoto revolucionário no Egito e na Tunísia replicou em choques sísmicos nas mais distantes partes do mundo de fala árabe. Argélia, Marrocos, Líbia, Sudão, Bahrein, Jordânia, Iraque, Iêmen, Kuwait, Djibuti – a lista continua crescendo não a cada dia, mas a cada hora.
No Bahrein, que fica nas proximidades do Irã e da Arábia Saudita, a tentativa desesperada da monarquia para afogar em sangue o movimento de massas fracassou. O povo revolucionário mostrou coragem imensa frente às balas dos mercenários do regime. Em conseqüência, as autoridades foram forçadas a retirar e recuar os seus bandidos uniformizados, permitindo às massas retomar a posse da Praça Pérola, que, agora, se tornou o centro de gravidade do levante, como a Praça Tahrir no Cairo.
O levante no Bahrein também é um estopim com possibilidades de inflamar o barril de pólvora na vizinha Arábia Saudita, onde também existe uma numericamente grande minoria xiita e um crescente descontentamento da população.
A crise já está começando a afetar o reacionário regime saudita. Na última semana, o Mufti [chefe religioso muçulmano] da Arábia Saudita advertiu à facção dominante que, sem a realização de urgentes reformas para melhorar o padrão de vida do povo saudita, ela poderia enfrentar a queda como os regimes na Tunísia e no Egito. De forma sem precedentes, ele criticou a família real por suas extravagâncias, comparando-as à pobreza das massas.
É impossível minimizar a importância desta declaração, uma vez que o regime saudita se baseia na íntima cooperação entre a dinastia saudita e o clero. Uma divisão entre os dois poderia se tornar um claro deflagrador de uma crise revolucionária nesta fortaleza da reação no Oriente Médio e, mais amplamente, no mundo islâmico. Algo que provoca arrepios na espinha do imperialismo dos EUA.
No Irã também há indicações de que o movimento de massas está revivendo. Há claros sinais de divisão no regime e no Estado em que este se apóia. De acordo com um documento recebido por The Telegraph, vários oficiais de baixa patente das Guardas Revolucionários iranianas (uma milícia profissional com cerca de 120 mil homens) teriam assinado um documento declarando que eles não querem atirar sobre os manifestantes. Como já declaramos anteriormente em nosso site (ver aqui), se este documento for verdadeiro, isto assinalaria um marco importante no desenvolvimento da revolução iraniana.
A hipocrisia dos imperialistas não conhece limites. Por um lado, eles são forçados a anunciar sob luzes e fanfarras sua mais profunda simpatia ao movimento pró-democracia. Mas, na realidade, foram eles que respaldaram todos os regimes reacionários na região, incluindo Bahrein, que é a base da 6ª Frota, a maior força naval dos EUA no Oriente Médio. Os britânicos e os americanos armaram esses regimes durante décadas contra suas próprias populações. O gás lacrimogêneo e as balas de borracha, além de outros símbolos da democrática civilização ocidental, usados contra os manifestantes na Praça Pérola, vieram da Grã-Bretanha, onde o governo está atualmente “reconsiderando” sua política de venda de armas a países como o Bahrein e a Líbia.
Iraque
Apesar de todo o seu poder econômico e militar, os imperialistas dos EUA são impotentes para intervir diretamente contra a revolução. Já queimaram flagrantemente os dedos no Iraque. Nove anos, centenas de milhares de mortos e mutilados e bilhões de dólares depois, o Iraque não se aproximou um milímetro da “democracia” e da “liberdade” desde que Bush derrubou o antigo aliado dos EUA em Bagdá. Ironicamente, o nível de endividamento público alcançado por conta desta aventura lançou as bases para a inquietação de massas nos próprios EUA.
A despeito desta drenagem de sangue e de riqueza, os EUA ainda não conseguem nem podem controlar o Iraque. Pelo contrário, as mobilizações de massas e a entrada em cena da classe trabalhadora de forma organizada já resultaram na derrubada de dois ditadores, com alguns mais na fila de espera. Isso evidencia a arrogante mentira dos imperialistas de que somente eles podem levar a “civilização” aos “atrasados” povos da região, que foram – é bom lembrar! – o berço da civilização humana.
A onda revolucionária que está varrendo a região mostra que, uma vez mobilizadas, não há força no mundo que possa deter as massas. Sequer o todo-poderoso Mubarak poderia sobreviver. E se isto pôde acontecer no Egito, poderá acontecer em qualquer outro lugar. Agora, no Curdistão iraquiano, a agitação das massas já irrompeu, ameaçando derrubar a trêmula engenharia política construída pelos imperialistas, enquanto estes tentam reduzir suas perdas mantendo influência sobre os assuntos do país – particularmente no que se refere ao petróleo.
A Tunísia
Na Tunísia, dezenas de milhares marcharam durante o último final de semana nas principais cidades contra o governo de Gannouchi, exigindo a imediata convocação de uma Assembléia Constituinte. “A Revolução Tunisiana ainda não terminou” – era esta a palavra-de-ordem dos manifestantes. A maior dessas manifestações teve lugar na capital, Túnis, no domingo, 20 de fevereiro, quando dezenas de milhares marcharam até a sede do governo com palavras-de-ordem como “Fora – Degage” e “Não gostamos dos amigos de Ben Ali”. Fontes da imprensa tentaram minimizar o tamanho deste protesto, mas os jornalistas da Reuters que estavam presentes calcularam a presença de manifestantes em torno de 40 mil. Este vídeo mostra com clareza que ali estavam presentes pelo menos dezenas de milhares (vídeo). Marchas semelhantes ocorreram em Sfax (vídeo), Kairouan (vídeo), Bizerte (vídeo), Monastir e em outras cidades, com milhares de manifestantes.
A despeito da forte presença policial e do exército atirando para o ar, os manifestantes, a maioria formada por jovens e sindicalistas, acamparam na Esplanada Kashba, nas proximidades da sede do governo, de onde foram forçados a sair quatro semanas antes.
As informações veiculadas hoje (21/02) eram de que estava ocorrendo uma massiva saída de estudantes em diferentes cidades e muitos deles marchando para se reunirem aos manifestantes na Kashba. Fica claro que, depois de um curto período de reorganização, depois de a burocracia da UGTT ter legitimado o governo de Gannouchi, o movimento revolucionário de massas da Tunísia recuperou suas forças.
Líbia
A onda revolucionária alcançou seu mais recente e mais sangrento ponto de confluência na Líbia, onde a situação agora atinge níveis de ebulição. Imprensada entre a Tunísia e o Egito, muitos analistas (e o próprio Khadafi!) imaginavam que a Líbia de alguma forma poderia evitar a conflagração geral. De acordo com as últimas informações, o levante se espalhou do leste da Líbia para a capital, Trípoli. Na noite passada, foi ouvido tiroteio pesado no centro de Trípoli e em outros bairros. A rede de TV Al Jazeera calcula o número de pessoas mortas em Trípoli em 61. Outras informações não confirmadas dizem que os manifestantes atacaram os centros de operações das emissoras de TV Al-Jamahiriya 2 e Al-Shababia, assim como outros prédios do governo em Trípoli durante a noite.
O Centro de Conferências do Povo, onde se reúne o Congresso do Povo (o parlamento líbio) foi incendiado. Também foram atacadas, saqueadas e incendiadas delegacias de polícia e outros prédios do governo. O que temos agora é uma franca insurreição armada. Ocorreram choques entre os manifestantes e as forças de segurança nas cidades do leste do país e em Benghazi, particularmente, onde a oposição ao ditador líbio Moammar Khadafi é mais intensa. Mas isto se espalhou ao sul e ao oeste do país e à própria Trípoli.
Os protestos em Trípoli não foram pacíficos e se intensificaram depois do discurso televisionado do filho de Khadafi, Seif al-Islam. Ele prometeu reformas políticas, sociais e econômicas e disse que o assassinato de manifestantes era um “erro”, mas descreveu os manifestantes como bêbados e viciados em drogas que seguiam ordens do exterior. Prometeu também uma conferência sobre reformas constitucionais dentro de 2 dias e disse que os líbios devem “esquecer o petróleo e a gasolina” e se prepararem para a ocupação pelo “Ocidente” e para 40 anos de guerra civil se eles não concordarem.
O Khadafi mais jovem tentou contrastar a situação na Líbia com as revoluções no Egito e na Tunísia: “A Líbia é diferente, se houver distúrbios, ela se dividirá em vários Estados”, disse ele. Mas tudo isso já tinha sido dito antes em relação ao Egito, ou seja, que o Egito também era diferente da Tunísia e, portanto, imune ao contágio revolucionário. Os acontecimentos logo revelaram o vazio dessas afirmações. Não há pirâmides na Tunísia e também não há nenhuma delas na Líbia. Mas, sim há o descontentamento de massas em todos esses países, e este está procurando uma saída. Quanto mais for reprimida, mais violenta se tornará a explosão quando finalmente abrir caminho.
Seu discurso deixou subentendido que o exército e a guarda nacional poderiam endurecer com os “elementos sediciosos” que espalhavam a agitação: “Vocês podem dizer que querem democracia e direitos, nós podemos falar sobre isso, nós poderíamos ter falado disso antes. É isso ou guerra. Em vez de chorar mais de 200 mortes, choraremos sobre centenas de milhares de mortes.
“Lutaremos até o último minuto, até a última bala”, disse Khadafi. Mas a questão a saber é a seguinte: Quem é que levará o último tiro?
Guerra Civil
Seif Khadafi admitiu que algumas bases militares, tanques e armas tinham sido tomados e reconheceu que o Exército, sob estresse, abriu fogo sobre as multidões porque não estava preparado para controlar manifestações.
Testemunhas na Líbia informaram que algumas cidades, particularmente no leste, que é menos leal a Moammar Khadafi, tinham caído completamente nas mãos dos manifestantes. Depois do discurso, os manifestantes na rua começaram a proferir palavras-de-ordem contra Seif al-Islam e seu pai.
Há relatos de deserções no Exército em Benghazi e Al Bayda, no leste da Líbia, em 20 de fevereiro, e de novos extensos levantes em Trípoli, em 21 de fevereiro. Isto sugere que o regime está perdendo o controle da situação.
Marwan Bishara, analista sênior da Al Jazeera, disse que o discurso de Seif Khadafi parecia “desesperado”.
“Soou como um discurso desesperado de um desesperado filho de um ditador que tentava chantagear o povo líbio ameaçando lançar o país em um banho de sangue”, disse Bishara.
“É muito perigoso isto vir de qualquer pessoa, mesmo que esta não desempenhe qualquer papel oficial na Líbia – dessa forma, isto poderia se tornar um cenário de pesadelo para a Líbia, quando um líder despótico coloca seu filho no ar para ameaçar seu povo de um banho de sangue se ele, o povo, não der ouvidos às ordens do ditador”.
Se o regime líbio tentar manter-se no poder pela força, isso pode terminar como o regime de Ceausescu na Romênia. Essa perspectiva é a de um cenário de pesadelo para os imperialistas e seus regimes títeres no mundo inteiro. As informações mais recentes indicam que a força aérea e a marinha da Líbia estão bombardeando instalações militares e mesmo civis. Isso agora parece o desencadear de uma guerra civil aberta enquanto Khadafi se agarra desesperadamente ao poder, mas este é um jogo que ele pode muito bem perder.
Para onde se olhe, todo o vasto espaço do Norte da África e do Oriente Médio encontra-se em chamas. Regimes que eram considerados estáveis e inexpugnáveis há apenas dois meses, estão balançando em seus alicerces. As massas árabes, que foram descritas em desdenhosos termos pelos analistas burgueses como passivas, ignorantes e apáticas, emergiram como a mais revolucionária força do planeta. Esta é a maior virada não somente na história desta região, como também na história mundial.
A Bíblia diz: “Os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros”. Os que, por tanto tempo, se consideravam a si mesmos como a “vanguarda”, revelaram-se completamente despreparados e desconectados do movimento real da classe trabalhadora e da juventude. Os que se consideravam “avançados” transformaram-se nos elementos mais atrasados e retrógados da equação. E os supostos “atrasados”, agora se encontram na linha de frente. É assim que as coisas são; exatamente como sempre foram.
Em 1917, durante a Revolução Russa, Lênin disse que a classe trabalhadora é mais revolucionária que o partido mais revolucionário. Os acontecimentos de 1917 provaram o quanto ele estava certo. Nas ruas do Cairo, de Teerã, de Manama, a história se repete. Os instintos revolucionários das massas levaram o movimento à frente, a despeito de todos os obstáculos. Elas ignoraram balas e porretes, da mesma forma que um homem esmaga um mosquito que o perturba. A única coisa que falta aqui, e que garantiu a vitória em 1917, é a presença de um partido e de uma direção genuinamente revolucionária.
O que impressiona é o extraordinário grau de maturidade revolucionária revelado pelos trabalhadores e pela juventude desses países. Sem nenhum partido, sem nenhuma direção real, sem nenhum plano preconcebido de ação, eles fizeram milagres. Eles nos fazem recordar o maravilhoso movimento dos trabalhadores de Barcelona, que, em 1936, armados com pedaços de pau, facas e velhos rifles de caça, assaltaram os quartéis e esmagaram a contra-revolução fascista. Eles nos fazem recordar a Comuna de Paris, que, nas palavras de Marx, “assaltaram o céu”.
É impossível prever com precisão como se desenvolverá a revolução. Isto dependerá de diversos fatores, tanto objetivos quanto subjetivos. Mas, na ausência de uma direção genuinamente revolucionária, é inevitável que a revolução se prolongue no tempo. Serão inevitáveis altos e baixos, fluxos e refluxos, períodos de euforia seguidos de desapontamento, derrotas e, até mesmo, períodos de reação. Mas será impossível restabelecer algo que se assemelhe à estabilidade enquanto existir o sistema capitalista. Regimes de crise se sucederão.
O mais importante, contudo, é que a revolução começou. É impossível atrasar o relógio em qualquer desses países. E através de todos os tempestuosos acontecimentos que estão se desdobrando e que se desdobrarão por meses e mesmo anos, a classe trabalhadora e a juventude aprenderão. Eles saberão quais partidos e dirigentes os traíram e em quais confiar. No final, eles começarão a entender que o único caminho à frente é através da ruptura radical com o passado e da completa eliminação, não exatamente deste ou daquele dirigente ou regime, mas do fundamentalmente injusto sistema da sociedade.
A derrubada de Ben Ali e de Mubarak foi obra das massas revolucionárias e, em particular, da classe trabalhadora e da juventude. São essas as forças genuinamente revolucionárias na sociedade. Não existe nenhuma solução para os problemas desses países até que a classe trabalhadora tome o poder em suas próprias mãos e exproprie a riqueza da oligarquia e do imperialismo.
Quando a presente onda de luta acabar, quando as nuvens de gás lacrimogêneo e pólvora desaparecerem, os trabalhadores e a juventude olharão em torno de si e verão que não estão sozinhos. O movimento revolucionário varreu todas as fronteiras artificiais estabelecidas pelo imperialismo no passado, fronteiras que cruzam todas as barreiras naturais e que dividem o corpo vivo dos povos. O poder do imperialismo sobre os povos do Norte da África e do Oriente Médio se baseia nesta divisão criminosa. Para superá-la é essencial que os povos lutem para estabelecer sua liberdade e elevarem-se à sua verdadeira altura.
O instinto das massas é o de difundir a revolução. Ela se difunde e se difundirá ainda mais. Isso coloca a questão da unidade dos povos da região. Eles somente conseguirão isto através de uma Federação Socialista do Norte da África e do Oriente Médio, não como um utópico e distante objetivo, mas como uma urgente necessidade.
Londres, 21 de fevereiro de 2011.