A economia e a política, como ciencia, permitem previsões aproximadas, desde que se use o método correto. Este artigo faz uma análise das previsões feitas pelos marxistas e pelos analistas burgueses durante a revolução árabe.
Em seu prefácio ao nosso novo livro, “Revolução até a vitória! – A Revolução Árabe: Uma Análise Marxista” (que pode ser adquirido de Wellred Books com preço reduzido a 7,99 libras), Alan Woods dá relevo ao método marxista de análise que nos permitiu prever com vários anos de antecedência a chegada da revolução egípcia e a instabilidade crescente de todos os regimes despóticos do Norte da África e do Oriente Médio. Compare-se isto com a total falta de percepção do que estava prestes a ocorrer por parte dos experts burgueses.
Este livro é uma coletânea dos principais artigos publicados em In Defence of Marxism (aqui), de janeiro a março de 2011, sobre as revoluções na Tunísia e no Egito. A leitura desses artigos proporcionará um relato detalhado desses acontecimentos dramáticos e históricos.
Preparando este livro, nós, de início, consideramos a possibilidade de reprocessar o material contido nos artigos como uma história. Mas logo se tornou evidente que isto era impraticável. Quaisquer vantagens que pudéssemos lograr em termos estilísticos seriam canceladas pela perda de atualidade.
Durante a maior parte do tempo, fomos publicando artigos diários, em particular sobre os desenvolvimentos no Egito. Eles se encadeiam como capítulos de um livro. Além disso, esses artigos não são um mero relato descritivo dos eventos. Eles proporcionam uma análise científica marxista e comentários políticos de cada etapa da Revolução.
No prefácio à História da Revolução Russa, Trotsky escreve:
A história de uma revolução, como toda história, deve, antes de tudo, relatar os fatos que se passaram e como se passaram. Isto, porém, não basta. A partir da própria narrativa, é necessário que se veja claramente por que os fatos aconteceram desta e não de outra forma. Os acontecimentos não poderiam ser considerados como um encadeamento de aventuras, nem inseridos, uns após outros, em um fio de moral preconcebida. Devem permanecer de acordo à sua própria lei racional. É na descoberta desta lei íntima que o autor vê sua missão.
Creio que o presente livro segue este conselho ao pé da letra. Não é uma lista de fatos isolados, no estilo do empirismo inglês, mas um todo coerente que visa determinar os processos mais profundos e as forças de classe que se encontram sob a superfície. Cada artigo não só descreve os eventos enquanto se desenrolam como também tenta expor o papel das diferentes classes, partidos e indivíduos que compõem a dramatis personae da Revolução.
A partir deste tipo de análise, deve ser possível não só explicar de onde viemos e onde estamos, mas também chegar às hipóteses científicas a respeito da tendência de direção que a situação apresenta. Penso que, no geral, nossa análise estava correta e que ela previu com precisão o curso que a Revolução realmente tomou. Seguindo os artigos como foram escritos o leitor pode julgar até que ponto estávamos certos ou equivocados.
É evidente que a Revolução não está concluída e que ainda deve percorrer toda uma série de etapas cujo curso preciso é impossível de se prever. Existem muitos fatores variáveis, em nível nacional e internacional, para se realizar esta tarefa. A única coisa que se pode fazer é prever a linha geral de desenvolvimento e indicar as diferentes possibilidades inerentes à situação. Quem quiser mais que isto deve procurar os serviços, não dos marxistas, mas de um astrólogo profissional.
O marxismo é uma ciência, mas não é uma ciência exata. Tem mais em comum com a meteorologia, a medicina ou a geologia do que com a física. É impossível prever um terremoto, embora saibamos exatamente onde se encontram as linhas das falhas geológicas. A recente tragédia no Japão é um testemunho eloquente deste fato. É impossível realizar um experimento controlado com terremotos. Mas ninguém pensa que a geologia não é uma ciência porque não conseguiram prever o terremoto no Japão.
Muitas pessoas considerariam a meteorologia como uma ciência. Em décadas recentes, foram acumuladas novas e poderosas ferramentas para a previsão do tempo: computadores com capacidade de memória impressionante e satélites que podem traçar o menor movimento dos sistemas meteorológicos a partir do espaço. No entanto, apesar deste vasto conjunto de dados, a meteorologia moderna é incapaz de prever o tempo para mais de três dias com precisão.
Este fato não condena o método da meteorologia ou nos proíbe de tentar prever o tempo. Ele é meramente a expressão do fato de que o clima é um sistema caótico. É difícil de ser previsto com precisão, pois pequenas variações podem causar mudanças bruscas e inesperadas no clima. A sociedade é também um sistema caótico em que uma série de mudanças infinitamente pequenas pode produzir transformações dramáticas quando atingem o ponto crítico em que a quantidade se transforma em qualidade.
O método dialético é um livro fechado para os economistas e sociólogos burgueses que gostam de pensar que seguem um método científico porque supostamente se limitam aos “fatos”. Mas, em primeiro lugar – como Hegel assinala – os fatos não se elegem a si próprios. Um analista político aborda os fatos com pressupostos definidos. Certos fatos são selecionados porque são considerados importantes, enquanto outros são ignorados. Se esta seleção for consciente ou inconsciente, isto não é relevante. Mas a forma como a questão é colocada normalmente irá determinar a resposta.
Em segundo lugar, o objetivo da ciência não é meramente o de enumerar uma lista de fatos isolados, mas o de mostrar o processo e as tendências gerais que estão por trás dos fatos e que se manifestam através deles. Antes de Charles Darwin chegar a sua teoria da seleção natural, ele examinou cuidadosamente e listou um grande número de observações do mundo natural, catalogando as diferenças mínimas da forma dos bicos das aves, o seu tamanho, cor e outras características físicas. Mas a teoria da evolução através da seleção natural não é meramente um catálogo de fatos observados, mas uma brilhante generalização teórica. O que nos interessa não é o catálogo, mas a teoria; não os fatos isolados, mas a lei que pode explicá-los.
Previsão e perplexidade
Não foi por acidente que nenhum dos “experts” burgueses tenha sido capaz de prever a Revolução na Tunísia ou no Egito. Pelo contrário, eles a negaram até mesmo quando ela já tinha começado. A adoração servil ao fato estabelecido é a marca do empirismo. Os analistas burgueses olham para a superfície e não veem os processos que estão ocorrendo nas profundezas da sociedade.
Contudo, a dialética nos ensina que as coisas se transformam em seu contrário. Agora, todos os estrategistas da burguesia, os economistas, os acadêmicos e “experts” exibem publicamente sua perplexidade. Tal fato é uma ilustração gráfica da definição que Trotsky nos dá da teoria como a superioridade da previsão sobre a perplexidade.
Em 28 de setembro de 2009, escrevi sobre a guerra de Gaza o seguinte:
O Oriente Médio mostra a idiotice da política de Bush. Tudo o que obteve foi desestabilizar todo o Oriente Médio. Todos os regimes pró-ocidente estão pendendo por um fio. A Arábia Saudita está pendendo por um fio. O Egito está pendendo por um fio. O Líbano está pendendo por um fio. Também a Jordânia, também o Marrocos. Estas elites dominantes ficaram aterrorizadas com as manifestações que tiveram lugar durante a guerra de Gaza.
Esta não foi, absolutamente, a primeira vez que coloquei o mesmo ponto. Mencionei especificamente o Egito, a Arábia Saudita, a Jordânia e Marrocos como regimes instáveis que poderiam ser derrubados a qualquer momento. Isto poderia ser provocado pelo ataque israelense em Gaza, razão pela qual os imperialistas estão pressionando os israelenses a se retirarem. Na verdade, a guerra de Gaza produziu manifestações de massa em todos esses países, o que indicava a existência de uma profunda fermentação na sociedade.
Não inclui a Tunísia na lista porque não tinha acompanhado os eventos lá. Mas exatamente os mesmos argumentos se aplicam ao caso. De especial interesse são os artigos publicados em nosso website em idioma árabe, Marxy.com, que acompanhou o movimento na Tunísia desde o seu início.
Eles nos alertaram para as implicações revolucionárias da situação na sequência da autoimolação de Mohamed Bouazizi em dezembro. Estes artigos são ainda mais importantes porque foram escritos por participantes ativos no movimento revolucionário no norte da África.
Ao prestarmos cuidadosa atenção ao movimento grevista no Egito, que era particularmente ignorado pelos comentaristas burgueses, fomos capazes de prever a iminência de uma explosão revolucionária. Enquanto outros que se reivindicam marxistas correm obsequiosos atrás da Irmandade Muçulmana, a Corrente Marxista Internacional (CMI) tem constantemente enfatizado o papel do proletariado egípcio. Tudo o que está acontecendo é uma confirmação evidente das perspectivas da CMI. É suficiente indicar os artigos de In Defence of Marxism, ao cobrir o movimento grevista no Egito ao longo dos últimos anos para termos uma prova disto.
Na quinta-feira, 28 de outubro de 2010, publicamos um artigo escrito por Hamid Alizadeh e Ohsten Frederik, intitulado “Egypt, the Gathering Storm” [Egito, a tempestade concentrada]. Ele inicia com as seguintes palavras:
As tensões no Egito estão atingindo o ponto de ebulição. A crise do regime se reflete em rupturas e crescente oposição. O surgimento de Mohamed El-Baradei no cenário político significa uma importante mudança na luta contra o regime. Até agora, as massas não tinham um ponto de referência nacional para se conectarem às diferentes lutas, mas isto agora está mudando. A Revolução está se desenvolvendo logo abaixo da superfície.
No Oriente Médio, o Egito é um país-chave. Não somente é o mais populoso país árabe e um pilar estratégico de apoio ao imperialismo, como também tem uma classe trabalhadora forte e de tradições militantes. Ao longo dos últimos anos, a ditadura de Mubarak foi abalada por greves e protestos, mas se tornou cada vez mais claro que todos os fatores estão apontando na direção da revolução.
Isto foi escrito dois meses antes da revolta na Tunísia e três meses antes do início da Revolução Egípcia. Embora os autores tenham talvez atribuído um significado demasiado importante a El-Baradei como um fator na equação, sua análise geral da situação no Egito estava totalmente correta. Em qualquer caso, ela é infinitamente superior a qualquer coisa que os “experts” burgueses escreveram antes ou depois.
O que a burguesia escreveu
O artigo anteriormente mencionado conclui com seguinte previsão:
Os eventos que aparecem no Egito vão agitar toda a região. Eles terão um grande impacto em todo o Oriente Médio, onde uma dinâmica revolucionária já começou. O período até as eleições presidenciais será de preparação para os eventos revolucionários que estão por vir. A revolução egípcia vai mudar radicalmente o curso dos acontecimentos no Oriente Médio, Norte da África e em escala mundial.
Foi isto o que escrevemos em outubro de 2010. Vamos agora comparar isto com as declarações dos principais analistas da burguesia escritas vários meses mais tarde, isto é, após a Revolução ter começado. Ainda em janeiro de 2011, The Economist escreveu: “os problemas na Tunísia são improváveis de derrubar o presidente de 74 anos de idade ou até mesmo de abalar o seu modelo de autarquia”. Poucas semanas depois, Ben Ali foi derrubado e seu regime se encontrava em ruínas.
Em 25 de janeiro de 2011, Hilary Clinton declarou: “Nossa avaliação é que o governo egípcio é estável e está procurando maneiras de responder às necessidades e interesses legítimos do povo egípcio”. Isto foi dito quando as massas já tinham ocupado as ruas do Cairo.
A mesma falta de consciência foi mostrada por outros comentaristas burgueses, como o correspondente da BBC no Cairo, que escreveu em 17 de janeiro que não iria acontecer nenhuma revolta no Egito, porque as pessoas são apáticas: “Ao contrário da Tunísia, a população tem um nível muito mais baixo de educação. O analfabetismo é elevado, a penetração da Internet é baixa”.
Esse artigo, assinado por Jon Leyne, no Cairo, foi intitulado: “Nenhum sinal de que o Egito vá pegar a mesma estrada da Tunísia”. Para piorar as coisas, essas linhas também foram incluídas no seu relatório de eventos em 25 de janeiro, exatamente quando ocorreu a manifestação de massas que marcou o início da revolução.
O velho e bom Heráclito disse certa vez: “Os olhos e os ouvidos são más testemunhas para o homem que não entende o idioma”. Os mesmos fatos estavam disponíveis tanto para essas damas e cavalheiros quanto para os marxistas. No entanto, os mesmos fatos podem dar resultados muito diferentes considerando o método a ser usado para interpretá-los. Um curso intensivo sobre dialética poderia ser muito benéfico à burguesia. Mas ela não mostra interesse em querer entender da mesma forma que um homem pendurado precariamente à beira de um abismo acha difícil organizar as ideias.
Crise do capitalismo
O principal erro de todas essas pessoas é que não veem o papel da classe operária como o agente da mudança. Eles só veem a história como uma série de combinações de cúpula, e através dos pontos fortes e fracos dos governantes individuais. Pensam que as crises resultam de erros ou de conspirações. Não podem aceitar que as crises são o produto inevitável de um sistema socioeconômico que perdeu sua utilidade e se tornou um obstáculo monstruoso à evolução humana.
Os eventos que estão sacudindo os alicerces do mundo árabe são apenas a manifestação da crise geral do capitalismo mundial. Nenhum dos problemas enfrentados pelas pessoas pode ser resolvido nos estreitos limites do sistema capitalista. Esta é a causa básica das explosões revolucionárias no norte da África e no Oriente Médio. É por isso que a Revolução Árabe não pode se deter até que aborde o problema básico que é a propriedade privada dos meios de produção e o Estado-nação, que são demasiado estreitos para conter o potencial colossal das forças produtivas.
Este livro não foi escrito para os acadêmicos burgueses, mas como uma contribuição para a luta de classes. É dedicado a todos aqueles corajosos lutadores de classe que enfrentaram as balas e os bastões das forças repressivas para mudar suas vidas. Não somos meros observadores, mas participantes ativos da luta mundial contra a opressão e a exploração. Acreditamos firmemente que esta luta só pode terminar na expropriação dos banqueiros, latifundiários e capitalistas e na criação de uma nova ordem mundial – o socialismo.
Por esta razão, no lugar da Introdução costumeira, estamos publicando o Manifesto da Corrente Marxista Internacional sobre a Revolução Árabe. Este é o compêndio da experiência dos acontecimentos na Tunísia e no Egito e tira todas as conclusões necessárias a partir desta experiência, que é apresentada na forma de exigências programáticas.
Calorosamente recomendamos este livro à atenção de todos os militantes com consciência de classe, não apenas no mundo árabe, mas para os trabalhadores e jovens que estão lutando por um futuro melhor em cada país e continente.
Escrito por Alan Woods, 21 de junho de 2011.
Translation: Esquerda Marxista (Brazil)