Há vinte e quatro horas atrás, as ruas de Trípoli estavam repletas de sons de comemoração. Agora elas estão cheias de barulhos de tiros. A batalha real por Trípoli começou.
Os relatos confusos e contraditórios da capital Líbia indicam que o que vimos nas últimas 24 horas não foi o fim, mas apenas o começo da batalha pela capital. A supreendente facilidade e rapidez com que as forças rebeldes entraram no coração da cidade encobrem o fato de que as forças inimigas não foram liquidadas e ainda tiveram a habilidade de encenar um contra-ataque.
O correspondente da BBC diz que a luta em Trípoli recomeçou, com sons de tiros e granadas. As forças de Khadafi foram reforçadas e algumas linhas de abastecimento rebelde na cidade estão sendo atacadas. Claramente as forças leais de Khadafi estão revidando em algumas áreas e muitas ocorrências de conflitos estão sendo relatados.
Aparentemente os rebeldes mantêm a posse de grande parte da cidade, incluindo a Praça Verde. Mas as forças pró-Khadafi ameaçam um contra-ataque. Ontem eu considerava isso apenas como uma possibilidade, mas baseado nas informações disponíveis, não acho que esta seja a variante mais provável. Agora nós vemos que, apesar do rápido avanço dos rebeldes em Trípoli, Khadafi ainda tem forças onde se apoiar e continuar lutando. Ele mostrou isso ontem à noite, quando o contra-ataque do governo gerou graves baixas nos rebeldes, que foram obviamente pegos de surpresa.
Duros combates foram reportados, em Mansoura, entre forças do governo e combatentes da oposição, com os homens de Kadafi usando morteiros e armas pesadas. A fonte dos ataques é Bab AL Aziziyah, um complexo onde se acredita que o líder líbio Muammar Kadafi está escondido. Este complexo tem sido o alvo das lutas em Trípoli e líderes rebeldes disseram que eles não esperavam que um complexo imenso caísse com facilidade.
Uma mulher cujo nome é Danya, que está em Dubai e tem família em Trípoli, informa que eles estão dizendo a ela que “franco-atiradores estão em todos os lugares, e as forças de Kadafi continuam contra-atacando. Quando você pensa que o seu bairro está livre, eles começam a atirar dos telhados”.
Quem são estes homens que estão atirando em pessoas a sangue frio dos telhados? Entrincheirado em sua fortaleza, Khadafi cercou-se de uma espécie de Guarda Pretoriana. Alguns devem ser apoiadores fanáticos de Khadafi, dispostos a seguir seu líder até o fim. Outros são mercenários estrangeiros, vindos principalmente de países africanos, que participaram em atos de repressão contra a população e que temem o destino que pode recair sobre eles se os rebeldes forem vitoriosos. Eles lutam porque não têm nada a perder lutando e acreditam que têm tudo a perder caso se rendam.
O nevoeiro da propaganda
Em meio a todo este nevoeiro propagandístico, com afirmações e negações, é difícil avaliar a real posição no terreno dos combates. O líder rebelde Mustafa Abdul Jalil está reivindicando que seus combatentes estão em controle de 95% da cidade. Mas Matthew Price, da BBC, em Trípoli, diz que ainda não está claro quem está vencendo a batalha pela capital. Mas ambos os lados afirmarm ter controle da maior parte da capital.
O porta-voz da NATO, Col Roland Lavoie, diz que é difícil saber exatamente qual área ainda está sob controle das forças do Cel Khadafi: “Cada lado reivindica vitórias e, com certeza, a clareza é a primeira vítima deste conflito, porque estamos sendo bombardeados com uma variedade de informações. Eu diria que, globalmente falando, está claro que o regime de Khadafi perdeu o pulso e o controle sobre a capital”, disse ele no programa da BBC, Radio Four Today.
O mais impressionante relato foi de que o filho de Khadafi, Saif Al Islam, apareceu em Trípoli, após repetidos rumores de sua prisão ontem. Um correspondente da BBC disse que Saif Al Islam parecia confiante e cheio de adrenalina. Ele apareceu nas primeiras horas da terça-feira no Hotel Rixos, onde muitos jornalistas internacionais estão hospedados, reivindicando que o governo “quebrou a espinha dorsal” da ofensiva rebelde.
O Secretário Internacional de Desenvolvimento do Reino Unido, Andrew Mitchell, debitou a confusão sobre a aparente prisão de Saif Al Islam ao “nevoeiro de guerra”: “Havia muita confusão, há muitas linhas de comunicações envolvidas. É inevitável nesta situação, com uma guerra em andamento, que haja algumas confusões.”
Confusão é a palavra do momento na Líbia. Em uma guerra civil, a propaganda joga um papel ainda maior do que em uma guerra normal. E aqui o barulho ensurdecedor da propaganda faz com que seja impossível determinar qual a posição real. Parece que na Líbia, o que conta mais não é o número de balas atiradas, mas o nível do ruído gerado.
Reivindicação e contra-reivindicação
O correspondente da BBC News, Matthew Price, em Trípoli perguntou a Saif Al Islam Khadafi, se ele havia visto equilíbrio de poder em Trípoli: “Dificultamos as coisas pra eles, então estamos vencendo”. Ele parecia cheio de adrenalina e confiança, disse Matthew.
Mas a TV opositora da Líbia imediatamente repudiou a reivindicação de Saif Al Islam de que o governo “quebrou a espina dorsal” da ofensiva rebelde. Reagindo ao comunicado, um dos apresentadores da emissora rebelde baseada em Doha disse: “Não importa se Saif Al Islam aparece nos canais de TV ou não... O importante é que os jovens de Trípoli libertaram a capital em menos de 48 horas. É apenas uma questão de horas até os jovens prenderem toda a família governante.”
Ambas as reivindicações são obviamente exageradas por motivos de propaganda. A população de Trípoli está dividida. Muitos vieram celebrar com os rebeldes na Praça Verde. O correspondente da BBC Rupert Wingfield-Hayes escreve:
“É muito difícil dizer o que está acontecendo exatamente na cidade. É melhor descrever a cidade como polarizada em diferentes bairros apoiando diferentes lados no conflito.”
“Nós estávamos conversando com moradores na noite passada que receberam os rebeldes e que aderiram à rebelião, e eles disseram que estão defendendo os seus bairros. Eu acho que o que eles estão fazendo é defender suas ruas, seus bairros, eles estão fazendo barricadas, eles têm armas, mas eles não controlam nada mais do que as ruas que eles moram.”
Outros apóiam Khadafi e temem represália dos rebeldes, são incentivados a lutar. A aparição repentina de Saif Al Islam irá encorajá-los ainda mais. As forças de Khadafi estão mais bem armadas e melhores coordenadas do que as dos rebeldes. As unidades que estão defendendo a área em torno do complexo de Kadafi e ao redor do hotel Rixos, no meio de Tripoli, estão muito bem equipadas.
O paradeiro de Khadafi permanence desconhecido. Ele não foi visto em público há meses, embora ele tenha enviado mensagens de áudio de locais não revelados. Parece que ele ainda permanece no complexo de Bab Al Aziziyah. No entanto, apesar da ofensiva de última hora de suas forças, as perspectivas para Khadafi são sombrias. Zawiyah, Zuwara, Gheryan, Al Aziziyah e Brega caíram em menos de duas semanas. Trípoli já foi desligada do resto da Líbia. Agora Khadafi controla apenas a área em torno de seu paiol. Quanto tempo pode durar?
O NTC admitiu que a luta não terminou – não apenas em Trípoli mas também em outras áreas do país. Acredita-se que algumas forças leais poderiam entrar em Trípoli, vindas da cidade de Zlitan. Fortalezas de apoiadores permanecem nas cidades de Sirte e Sabha. Sirte é a cidade natal de Khadafi e, como Sabha, é um baluarte da tribo de Khadafi, que tem se apoiado o reinado do líder líbio por suas posições de privilégios.
Serão os últimos grupos de apoiadores a renderem-se. Eles poderiam até providenciar uma base para a continuação da guerra civil por um tempo – mas seria por meio da guerra de guerrilhas ou campanha terrorista ao invés de uma guerra convencional. O fato é que, não importa o que vai acontecer nos próximos dias, Khadafi perdeu o poder na Líbia.
A situação internacional
Internacionalmente a situação está ainda pior para Muammar Khadafi, abandonado por um estado após outro. Oman é a última nação árabe a romper relações com o regime de Khadafi em favor do Conselho Nacional de Transição. Oman reconheceu o Conselho liderado pelos rebeldes da Líbia como sendo o representante legítimo do país. Khadafi está completamente isolado internacionalmente. Mesmo a China disse que a questão deve ser resolvida pelo desejo do povo líbio, uma forma oblíqua de reconhecer o novo governo.
A Coréia do Sul disse que estava considerando enviar dinheiro aos rebeldes líbios, enquanto as ações de Seul em empresas de construções subiram na esperança da retomada de seus projetos na Líbia. A agência de Seul Yonhap News afirmou que a Coréia do Sul planejava fornecer até um milhão de dólares americanos, em dinheiro, com propósitos humanitários aos rebeldes.
“Nosso governo forneceu ajuda humanitária aos rebeldes através de organizações internacionais, e estamos considerando fornecer certa quantia em dinheiro a partir do aspecto humanitário com uma base bilateral”, Shin Maeng-ho, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, disse em uma entrevista coletiva na terça-feira.
A turbulência na Líbia interrompeu o projeto de empresa de construções Sul-coreanas, e levou-as a evacuar milhares de trabalhadores. Mas agora as ações das empresas de construção de Seul cresceram em meio à crescente esperança de que a guerra civil na Líbia pode estar chegando a um fim e poderiam retomar projetos de reconstrução no país. Hyundai Engineering Construction ganhou 8,82% e as ações da Daewoo Engineering Construction subiram 8,58% quando as bolsas de valores de terça-feira fecharam. Analistas de Seul disseram que o regime pós-Khadafi precisaria construir novas estradas e casas, o que impulsionaria a demanda de infraestrutura para empresas coreanas. Como diz o provérbio inglês: “É um vento doentio que não traz bem algum a ninguém”.
O Irã hoje parabenizou o povo líbio, dizendo que a rebelião indicou a necessidade de todos submeterem-se às “legítimas demandas do povo”. “O levante popular na Líbia, mais uma vez, mostrou que submeter as legítimas demandas do povo e respeitar sua opinião é uma necessidade inegável”, disse o comunicado. Se o governo do Teerã desejava, por si mesmo, fazer o mesmo, não ficou claro.
Mesmo assim, em Washington, Londres e Paris eles estavam preocupados. No lugar no triunfante tom de ontem, os comunicados estão mais cuidadosos. De repente a vitória sobre regime do líder líbio Muammar Kadafi “não está completa”, oficiais franceses avisaram na terça-feira. Enquanto a alegria de Paris sobre a entrada das forças rebeldes em Trípoli deu lugar a uma cautela renovada.
“Eu disse ontem que a vitória não estava completa”, insistiu o chanceler Alain Juppe, que na segunda-feira escreveu em um blog denominado “O fim de uma ditadura” que “o objetivo tinha sido alcançado”. O Ministro da Defesa Gerard Longuet, que na segunda-feira declarou: “O regime caiu, a recuperação é total”, disse na Inter, radio da França: “Na Líbia, a situação não está totalmente no fim, longe disso.”
Ambos oficiais confirmaram que havia ainda focos de resistência de combatentes pró-Khadafi e que o combate continuava, estendendo as possibilidades de mais ataques aéreos da NATO. Juppe disse à rádio Europe 1 que oficiais da França, Grã-Bretanha, Turquia, Alemanha e EUA e vários países árabes fizeram uma chamada em conferência na segunda-feira para discutir a missão militar em curso.
Há relatos de novos ataques aéreos da NATO no complexo de Khadafi, embora isto já tenha provado ser ineficaz no passado. Os imperialistas estão com medo que os combates renovados radicalizem a situação ainda mais e fortaleça os combatentes rebeldes em favor dos “moderados” do CNT. Eles estão desesperados para que a luta chegue ao final para permitir um rápido retorno à “normalidade” – isto é, às regras gerais das grandes empresas e do imperialismo.
Mudança de ânimo
Se os ânimos mudaram em Londres e Paris, também houve uma mudança ainda maior nas ruas de Trípoli. O estado de espírito de euforia deu lugar a um clima muito diferente. Jacky Rowland, da Al Jazeera, transmitindo ao vivo dos redutos rebeldes de Benghazi, disse: “Agora vemos acusações, dúvidas e confusão.”
Os rebeldes que participaram de toda a luta estão suspeitando que os autodenominados líderes do Conselho Nacional de Transição estão manipulando por trás de suas costas um acordo com o antigo regime. Uma correspondente disse: “estamos começando a ver agora o ressentimento. Eu acho que isso pressionará o CNT que, se quiser ser parte da nova Líbia, terá que chegar a Trípoli bem rápido. Porque se isso acontecer mais tarde, o povo sentirá que essa revolução é deles e provavelmente dirão ‘quem são vocês, nós fizemos todo o trabalho duro, vão embora’. Este é um momento crucial para o CNT.”
“Vai ser interessante ver como o CNT explicará esta queda e como procurará reforçar e fortalecer estas alianças e ao mesmo tempo ter permitido que os rebeldes chegassem a Trípoli sozinhos”, ela disse.
Muitas questões precisam ser respondidas. Como foi possível os rebeldes entrarem em Trípoli praticamente sem oposição? Como explicamos a estranha encenação da suposta detenção do filho de Khadafi seguida de sua, igualmente estranha, “libertação”? Um completo mistério ronda a questão do que se tornou a brigada Khamis do exército líbio. Stratfor relata:
“Comandados pelo filho de Khadafi, Khamis, foi a brigada supostamente principal linha de defesa protegendo a capital. Ainda em 21 de agosto essas forças quase não fizeram resistência aos rebeldes, e foram empurradas para leste de Zawiya. Em 22 de agosto, um relatório de Al Arabiya afirmava que Khamis e Khadafi estavam liderando a brigada no complexo de Khadafi em Bab Al Aziziya no centro de Tripoli, porém isto nunca foi confirmado, nem o relatório da Al Jazeera confirma que o seu corpo tinha sido descoberto juntamente com o corpo do chefe da inteligência Líbia Abdullah Al Senoussi em Trípoli. O paradeiro de Khamis, assim como o de seu pai e muitos outros irmãos, não está claro.”
A descofiança dos combatentes em relação à CNT é completamente justificada. Os senhores de Benghazi prefeririam chegar a um acordo com Khadafi, que teria entregado a eles o pode em uma bandeja de prata, enquanto forneciam garantias de imunidade para Khadafi e sua familia.
Não é impossível que eles estivessem no processo de alcançar algum acordo quando, de repente, erupções no exército rebelde em Trípoli tenham estragado seus planos. Isto é apenas hipotético, claro, mas explicaria muitas coisas que de outra forma, parecem inexplicáveis.
“Um combatente rebelde disse a Al Jazeera que ele suspeitava que talvez Saif Al Islam tenha subornado alguém para conseguir sua saída e acusou a CNT de quebrar algum tipo de acordo. Ele perguntou: ‘Onde está o CNT? Por que eles não estão em Trípoli? Estamos fazendo todo o trabalho pesado, eles estão em Benghazi tomando sol ou algo do tipo’.”
Este clima crescente de criticas explica porque membros do Conselho Nacional de Transição (CNT) em Benghazi dizem que o plano é ir à capital na quarta-feira e começar o trabalho formando um novo governo. Este clima explica também porque os chefes deles em Paris e Londres estão preocupados com a situação em Trípoli e que ela fique fora de controle: ou seja, fora do controle deles.
Os ventos da mudança
Quaisquer que tenham sido os planos que a CNT tenha tido para entrar em acordo com Khadafi, eles estão agora em ruínas. O contra-ataque de Khadafi, que deixou muitos rebeldes mortos, alimentou o fogo do ódio. Há relatos de grandes grupos de rebeldes avança em direção à Bab Aziziya e sendo aclamados pelo povo.
Ninguém pode dizer exatamente como os eventos acontecerão nas próximas horas ou dias. A revolução é uma luta de forças vivas. O presente conflito pode ser empurrado para várias direções antes de chegar a uma conclusão final. Mas está claro que os ventos da mudança estão soprando fortemente, não apenas na Líbia, mas por todo o mundo árabe. Está passando de um país a outro. Ele zomba das fronteiras e desafia todas as tentativas de impedí-lo. É o vento mais poderoso de todos – o vento da história.
Os antigos regimes não podem suportar este furacão. Eles podem durar por um tempo pela repressão. Mas fnalmente o dominó deve cair, um após o outro. Este fato há muito tempo atrás previsto pelos Marxistas, está agora começando a ser reconhecido pelos observadores burgueses mais inteligentes. Na edição de hoje do The Independent, Robert Fisk expressou muito bem a repercussão internacional desses eventos. Nós vamos fechar com estas suas palavras:
“Os remanescentes poderosos e tiranos árabes passaram uma segunda noite sem dormir. Em quanto tempo os libertadores de Trípoli se transformarão nos libertadores de Damascus e Aleppo e Homs? Ou de Amman? Ou Jerusalém? Ou de Bahrain ou Riyadh? [...] Ben Ali caiu, Mubarak caiu, Saleh mais ou menos caiu, Khadafi derrubado, Assad em perigo, Abdullah da Jordânia ainda enfrentando oposição, a monarquia minoritária Suni de Bahrain ainda suicidamente esperando governar pela eternidade. Estes são eventos históricos massivos [...]
“A Primavera Árabe durará por anos. É melhor pensarmos nisso. Não há ‘fim da história’.”
Londres, 23 de Agosto, 2011.
Post Script (06h30min da tarde): As ultimas noticias mostram que os rebeldes invadiram o complexo de Khadafi e o tomaram. Khadafi desapareceu, os rebeldes estão invadindo o arsenal.
Translation: Esquerda Marxista (Brazil)