Wolfgang Amadeus Mozart é considerado por muitos como o melhor músico de todos os tempos. Ele foi revolucionário em muitos sentidos. Uma de suas conquistas mais importantes foi no terreno da ópera. Antes de Mozart, a ópera era considerada uma arte exclusiva das classes superiores. Mas não somente por quem assistia a sua representação, como também por seus dramatis personae - os personagens que saem à cena - e, em particular, pelos protagonistas. Com As bodas de Fígaro (Le Nozze di Fígaro, seu título original em italiano) tudo isto muda. Esta é a história de um criado que se rebela contra o seu patrão e que é mais esperto que o seu amo.
O próprio ponto de partida desta ópera é subversivo. O autor da obra, Beaumarchais, apresentava os aristocratas como tipos degenerados, cheios de luxúria e depravados, algo que, em seu tempo, era considerado perigosamente revolucionário. Com um de seus personagens centrais, o servo Fígaro, atreve-se a afirmar que ele é tão bom quanto o seu amo. Nos anos anteriores à Revolução Francesa, isto era algo completamente subversivo. Tão perigoso o era que Luís XVI foi o primeiro a tentar proibir a obra. Finalmente, foi posta em cena. Sua primeira representação em Paris provocou um tumulto em que três pessoas morreram pisoteadas pela multidão. Este pequeno incidente foi um sinal evidente da fermentação que se estava produzindo na sociedade francesa da época. Somente cinco anos depois a Bastilha foi assaltada. Muitos daqueles ricos patrocinadores das artes que riram e vaiaram, de acordo com suas preferências artísticas e políticas, acabaram na guilhotina. Este é o destino histórico de uma obra que Napoleão depois descreveu como "a revolução em ação".
É natural que sempre exista o perigo de se ler além do que foi escrito nas obras dos anos que levaram à Revolução Francesa ou a qualquer acontecimento semelhante. Mas as implicações são, com segurança, demasiadamente evidentes para serem produtos da simples casualidade. Um grande artista, mesmo quando ele ou ela pouco compreende de política, algumas vezes é capaz de perceber e de sentir um ambiente determinado que esteja se desenvolvendo na sociedade e de lhe dar uma expressão mais profunda e sincera até mesmo antes que os protagonistas do processo histórico o expressem conscientemente. Por seu lado, Mozart não era um revolucionário no sentido político. Mas era um filho de seu tempo, um produto da ilustração que foi capaz de refletir perfeitamente em sua arte o clima geral da época em que viveu. Caiu presa do espírito de rebeldia que se adaptava perfeitamente ao seu temperamento. Isto, por seu lado, não foi casualidade, mas emanava de sua experiência pessoal de vida que lhe deixou um profundo ódio à injustiça e simpatia pelos desvalidos, lutando por seus direitos, pela liberdade ou pela simples dignidade humana.
Quando vivia em Viena no final do século XVIII, Mozart era consciente da natureza do feudalismo e do caráter da aristocracia governante. Tinha escassa consciência da mensagem revolucionária da obra de Beaumarchais, que foi proibida por José II, o primo de Maria Antonieta. José era considerado como um monarca relativamente progressista para a sua época (no estilo de Frederico o Grande da Prússia e de Catarina a Grande da Rússia). Aboliu a servidão em suas terras, introduziu (relativamente) o direito à liberdade de expressão e, inclusive, tentou eliminar os privilégios da nobreza. Era algo habitual ver os aristocratas varrer as ruas de Viena como castigo por terem cometido transgressões menores. Também interferiu nos aspectos mais triviais da vida cotidiana, como aconteceu quando aprovou uma lei proibindo às mulheres o uso de espartilhos em acontecimentos públicos.
Mozart tinha tentado democratizar a ópera ao escrever, não em italiano, mas em alemão (Die Entfürung aus dem Serail). Mas a influência do italiano era tão grande (a ópera cômica italiana então estava na moda) que decidiu escrever sua nova ópera em italiano (o idioma original do libreto era em francês). A obra mestra de Beaumarchais, O Barbeiro de Sevilha, já tinha sido convertida em ópera (italiana) e fazia furor. Mozart decidiu continuar com a obra que bem poderia ter se chamado "Fígaro ataca novamente".
A escolha do libretista por parte de Mozart não foi incomum: Lorenzo da Ponte era um livre-pensador e um libertino, amigo de Casanova. Apesar de não ser um libretista experimentado, concluiu um extraordinário libreto em apenas seis semanas. Da Ponte não somente conseguiu manter toda a força política do original, como também conseguiu enriquecer os personagens. O espírito da obra fica expressado nas primeiras notas da ouverture - um trabalho borbulhante sobre a vida e a energia. As mudanças vivas nos pensamentos e sentimentos dos personagens podem ser vistas com grande segurança na música. Através de um recurso novelístico, entramos diretamente na ação no cenário aberto. Aqui, pela primeira vez, desembocamos na presença, não de deuses ou deusas, ou heróis clássicos, ninfas ou pastores, mas de homens e mulheres normais: servos domésticos. Entramos em suas casas e vemos como vivem, pensam e sentem. Era a primeira vez que estas coisas se representavam num palco.
Na primeira cena, Fígaro toma as medidas para uma cama. Isto já introduz o tema central, visto que a cama em consideração é o leito matrimonial de Fígaro. O tema é o sexo. O sentido é que o Conde tenta exercer o seu direito feudal da pernada: o direito à primeira noite. E Fígaro está decidido a impedi-lo. Aqui o direito do amo se choca diretamente com o direito do servo. É um conflito de vontades em que o servo finalmente ganha. Aqui se desafia o poder arbitrário da aristocracia feudal. Fígaro desafia o Conde na famosa ária Se voul ballare, Signor Contino (Se queres bailar, senhor condezinho) do primeiro ato, que se pode traduzir assim:
"Se quiser bailar, senhor condezinho
Tocarei a guitarra.
Se quiser vir a minha escola,
Ensinar-lhe-ei a cabriola".
A ária aparentemente tem a forma de uma dança cortesã do século XVIII: o minueto. Mas a essência da música é muito diferente do minueto original. É uma declaração agressiva, plena de ameaças e desafios. É uma declaração de guerra do servo contra o seu senhor. Neste contexto, não há dúvidas de onde se encontram as simpatias de Mozart. Esta era uma sociedade feudal, dominada pelos nobres, estendendo-se desde os grandes senhores da terra ao pequeno proprietário local, e todos eles exercem a sua tirania sobre as massas e não apenas sobre os camponeses que cultivavam suas terras. Estes nobres comportavam-se como uma raça especial.
O próprio Mozart procedia da respeitável classe média. Ele era apenas outro subalterno dos aristocratas: um tipo superior de servo, mas assim mesmo um servo. Quando servia ao arcebispo de Salzburg, Mozart tinha de fazer as refeições debaixo das escadas com os outros criados. Seu lugar estava claramente determinado - acima dos cozinheiros, mas abaixo dos camareiros do arcebispo. Quando decidiu se mudar para Viena e deixar de servir ao arcebispo, o Conde Arco, um dos parasitas do arcebispo e supostamente amigo de Mozart, demonstrou a sua lealdade ao chefe chutando as nádegas do compositor. Este incidente demonstra com clareza a relação entre o artista e os ricos que compravam os seus serviços, da mesma forma que uma pessoa poderia comprar um cão de caça puro. Afinal, inclusive um cão caro poderia lhe dar uma patada se o seu amo o desejasse. A idéia do servo Fígaro prevalecendo sobre o seu amo devia ser muito atraente para Mozart.
Em Viena conseguiu fama e popularidade. No auge de sua carreira conseguiu certo grau de comodidade e prestígio. Mas a ameaça da pobreza e das dívidas contraídas nunca se afastou. Mozart necessitava que Fígaro fosse um êxito e teve sorte de que José o permitisse. Mozart e Da Ponte eram ambos estranhos na camarilha operística da corte, tão admiravelmente representada em Amadeus, a obra de Peter Shaeffer. Os pequenos burocratas e as mediocridades da corte fizeram tudo o que era possível para sabotar a ópera, mas, afinal, ele conseguiu representá-la em maio de 1776. Foi provavelmente um elemento de cálculo político nas ações de José permitir que se representasse a ópera de Mozart. Nesse momento encontrava-se em conflito com a nobreza pelo pagamento dos impostos e por outras questões, e se enquadrava em seus objetivos que a aristocracia fosse mal representada. Afinal, foi tão bem recebida pelo público de Viena que, na terceira representação, o imperador teve de ordenar que se limitasse o número de repetições. Contudo, somente teve nove representações. Evidentemente, o poder se deu conta do sentido subversivo da obra.
Fígaro é uma comédia, mas contém uma séria mensagem. Mais comédia que farsa, também contém momentos de grande beleza e emoção, como na ária da condessa com que se inicia o segundo ato, Porgi amore... quando ela se lamenta da perda do amor de seu marido. O próprio conde é apresentado como um tirano, embora nesta ocasião não seja capaz de exercer a sua tirania. É uma tirania social e pessoal, expressada pela tirania do conde sobre as mulheres. A razão do fracasso da tirania do conde, implícita na ópera, é porque é visto como muito arbitrário: não se baseia na Razão e, portanto, não tem razão para existir, como diria Hegel. Mas o mesmo argumento poderia ser utilizado contra o Antigo Regime em sua totalidade. Um regime social que sobreviveu a si mesmo, que está em conflito consigo mesmo, não tem razão para existir e deve ser derrubado. Este era o argumento de filósofos como Hegel, era a lógica subjacente e a justificação da Revolução Francesa, e que também estava presente nas páginas de As bodas de Fígaro.
Como sabemos, há várias formas de se lutar contra os tiranos. Uma forma - vista em 1789-93 - era cortando-lhes a cabeça. Mas, onde estes meios tão drásticos não estavam disponíveis, era possível utilizar a arma do ridículo, que é o que fazem Beaumarchais e Mozart com grande acerto. No final, os servos podem entrar no salão e dançar durante as bodas de Fígaro. Aqui muda o ambiente. As massas aparecem como protagonistas vitoriosos, não como figuras anônimas escondidas sob a terra, mas como indivíduos reais com faculdades, características, sentimentos e aspirações próprias. A visão destes homens e mulheres dançando em triunfo no salão do aristocrata está plena de significado histórico. Tanto é uma alegoria quanto uma antecipação musical dos acontecimentos que três anos depois se tornariam realidade.
As bodas de Fígaro, com suas melodias contagiantes, seu bom humor e polêmico argumento, foi um grande êxito. Atualmente, quando se costuma considerar a ópera como arte da elite, é difícil avaliar a popularidade que ela obteve. Era a música pop de sua época. As pessoas que não tinham meios de ir à ópera podiam ter acesso a ela mediante acordos com a orquestra. Seis meses depois de sua primeira apresentação em Viena, em dezembro de 1787, foi representada em Praga, onde o êxito foi ainda maior. Mozart esteve presente e viu por si mesmo como a música era recebida, não apenas no teatro de ópera como também nos salões de baile. Ele escreveu, encantado, a um amigo: "Aqui não se fala de outra coisa que não seja de Fígaro. Apenas se toca, canta ou assovia Fígaro. Nenhuma outra ópera teve acolhida igual a Fígaro. Nada, nada mais além de Fígaro".
A outra obra operística de Mozart, Don Giovanni, também teve como libretista a Da Ponte e está baseada no tema espanhol de Don Juan, que, de diferentes formas, tinha aparecido na literatura em muitas ocasiões desde sua estréia como El burlador de Sevilla [O trapaceiro de Sevilha] de Tirso de Molina em 1630. Aqui se pode encontrar o mesmo tema de Fígaro, mas com uma tonalidade mais sombria e com maiores complexidade e profundidade. As cores sombrias desta obra evidenciam-se desde as primeiras notas prodigiosas e ameaçadoras da ouverture. Don Giovanni, como o Conde, é um libertino, mas é muito mais do que isto: também é um rebelde que rejeita todas as normas sociais e morais. Há um elemento de anarquia nesta ópera, uma intuição do desmoronamento da ordem social e moral existente. É significativo que a primeira ária do primeiro ato, cantada por Leporello, o criado de Don Giovanni, que amaldiçoa a sua sorte a esperar sob o frio enquanto o seu amo persegue agasalhado uma dama. A mensagem da ária de Leporello é politicamente subversiva, é um apelo à mudança da ordem social:
"Notte e giomo faticar, Per chi nulla as gradir, Piova e vento soportar, Mangiar male e mal dormir... Voglio far il gentiluomo, E non voglio più servir. Oh, che caro falantuomo! Vuol star dentro colla bella, Vuol star dentro colla bella, Ed yo far la sentinell!".
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"Noite e dia a trabalhar Por quem não sabe agradecer; Chuva e vento a suportar, Mal comer e mal dormir... Quero ser um cavalheiro, E não quero mais servir. Oh, que amável homem de bem! Quer estar dentro com a bela, E eu a fazer de sentinela!" |
Leporello, o arquétipo do criado cômico, trata aqui de um assunto sério. Sua crítica da vida dissoluta de seu amo (e, além disso, da aristocracia em geral) continua na famosa ária onde, ironicamente, enumera as conquistas amorosas de Don Giovanni. O papel de Leporello, que é a voz do povo simples, é semelhante à combinação feita por Shakespeare entre a comédia para as classes baixas e o alto drama aristocrático, como em Henrique IV, Primeira Parte, por exemplo. Este papel não é, absolutamente, secundário, mas central na ópera. No final, Leporello sobrevive ao seu amo, que morre finalmente nas chamas do inferno com a ajuda de um misterioso convidado de Pedra.
Depois de levar Don Giovanni perante a justiça final e de condená-lo a eterna danação, Mozart e Da Ponte o dissolvem em chamas de enxofre com um animado e jocoso sexteto, onde os sobreviventes chamam a atenção para a moralidade e meditam sobre o seu próprio futuro, quando o irreprimível Leporello conclui: "Ed io vado all'osteria a trovar padrón miglior" ("e irei à taverna para ver se encontro um amo melhor"). No século XIX, com toda a hipocrisia vitoriana, o alegre otimismo deste sexteto final era considerado de mau gosto e, freqüentemente, se omitia. Mas o irreprimível espírito de alegria sempre caracteriza a visão das massas, inclusive nas lutas mais sérias, e Mozart demonstrou um infalível sentido da natureza humana quando acabou nesta nota.
O primeiro ato se abre com Leporello, o criado, propondo, na realidade, que o mundo fosse mudado de cima a baixo. E, no final do mesmo ato, o próprio Don Giovanni propõe um brinde à liberdade, o que com segurança correspondia ao espírito da época. O caráter de Don Giovanni é complexo e contraditório. É uma figura mais interessante que a do Conde em Fígaro. Trata-se de um aventureiro, de um dissoluto libertino, de um aristocrata acostumado a manipular as pessoas segundo os seus próprios interesses, e, ao mesmo tempo, é pessoalmente valente. No final do primeiro ato, quando todos se levantam contra ele, responde desafiador:
"É un orribile tempesta Minacciando, o Dio, mi va. Ma non manca o mi confondo. Se cadesse ancora il mondo, Nulla mai temer mi fa".
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"Uma tormenta espantosa, oh Senhor, Está desabando sobre mim. Mas não me falta valor. Não me sinto perdido ou preocupado. Se o mundo acabasse, Nada me faria sentir medo". |
No final, está preparado para lutar contra o seu destino e contra sua própria morte. No meio da aristocracia não havia poucos indivíduos com este caráter. Alguns deles - aventureiros reacionários - lutaram pelo Antigo Regime e foram alegremente à guilhotina. Outros, menos numerosos e mais atentos, romperam com sua classe e se colocaram ao lado da revolução, onde lutaram e morreram valentemente. Se Don Giovanni tivesse vivido durante a Revolução Francesa, teria terminado como representante do segundo tipo.
Em um aspecto As bodas de Fígaro deixa de lado tanto a história como a vida real, mas apenas de forma relativa. No final do Quarto Ato, o conde e a condessa se reconciliam, o conde se arrepende de seus pecados. Depois, todos se reconciliam e cantam em harmonia, e assim a obra termina com final feliz. Mas é essencial a toda comédia ter um final feliz, senão não seria comédia. E todos sabem que estes finais têm muito pouco a ver com a vida real. Sabemos que a reconciliação temporária entre classes antagônicas não pode durar muito, como também sabemos que o conde continuaria correndo atrás de outras criadas na primeira oportunidade.
Toda luta tem seus momentos de alívio temporário, como todas as guerras são também interrompidas por tréguas temporárias. No princípio da Revolução Francesa - como no princípio de todas as revoluções - havia um sentimento geral de euforia, uma confraternização de todas as classes, na qual o rei e a rainha levavam o brocado vermelho da revolução. A ilusão da fraternidade universal, transcendendo todas as diferenças de classe durante um breve momento se apodera da mente de toda a sociedade. Mas, como todos os sonhos, se dissipa com a luz do dia. A Revolução Francesa começou a partir de onde não o fez Fígaro, mas não se deteve ali. Os acontecimentos dramáticos de 1789-93 acabaram com todas essas ilusões, momento em que o velho mundo foi derrubado e o lixo acumulado durante séculos foi varrido para a lata de lixo da história.
O caminho da revolução foi preparado com as tentativas de reforma. Este fenômeno repete-se freqüentemente na história das revoluções e está bem documentado por Aléxis de Tocqueville em sua famosa obra O antigo regime e a Revolução Francesa. José II, o patrão de Mozart, tentou esta reforma por cima para evitar uma revolução a partir de baixo. Como todas estas tentativas, estava condenada ao fracasso. Na tumba de José há uma inscrição patética escrita pelo próprio imperador: "Aqui jaz o príncipe cujas intenções eram boas, mas que teve a desgraça de ver como fracassavam todos os seus planos". Mozart morreu em 1791, aparentemente como resultado de uma epidemia, e foi enterrado, segundo um dos numerosos editos de José, fora das muralhas da cidade em uma tumba anônima, que ninguém pôde identificar. Mas o nome de Mozart será lembrado e reverenciado por milhões, enquanto que os nomes de seus chefes supremos aristocratas foram esquecidos há muito.