As reviravoltas diárias da vida sob o regime de Trump têm sua forma de fazer 2016 parecer uma lembrança remota. Mas, com o espetáculo de Hillary Clinton se juntando a #TheResistance e com a repentina demissão do diretor do FBI, James Comey, por Trump justo alguns dias depois de testemunhar ante o Comitê Judiciário do Senado sobre alegações de que ele teria influenciado a eleição, todas as camadas da sociedade estão fazendo uma séria reflexão sobre primárias, eleição e a trajetória que levou a este ponto.
A meio caminho da Convenção Nacional Democrata, o lema #DemExit começou a aparecer em letreiros e bandeiras por toda a Filadélfia, enquanto multidões de partidários de Bernie Sanders prometiam de uma vez por todas abandonar o partido que apunhalou o seu herói pelas costas. No espaço de uma só semana, mudou a forma como milhões de pessoas percebiam os Democratas. De um dia para o outro, a esperançosa especulação de que Bernie continuaria a resistir e que “tinha uma carta na manga” deu lugar ao desapontamento e ao desgosto com o corrupto aparato do Comitê Nacional Democrata (DNC [na sigla em inglês]). Isso se agravou mais quando o Wikileaks publicou os “e-mails de Podesta”, que provam que o partido conspirou para prejudicar Bernie.
Uma das palavras de ordem mais gritados pelos manifestantes através das grades que cercam o centro de convenção do DNC enquanto os delegados se apresentavam nessa semana era “somente Bernie bate Trump”! Pesquisas de opinião indicavam que Sanders tinha qualificações muito mais altas e melhores possibilidades contra Trump do que Clinton. Mas, na hora da verdade, Sanders vacilou, baixou solenemente a bandeira da “revolução política contra a classe bilionária” e se curvou diante dos “clintonistas”.
Enquanto isso, os gritos vindos de fora continuavam a repetir a ameaçadora advertência: “somente Bernie bate Trump”! Mas desde que isso se confirmou na noite de 8 de novembro, Sanders somente estreitou seus laços com o partido. Em vez de chegar à conclusão de que os Democratas não podem ser um veículo para a luta da classe trabalhadora e usar sua autoridade para estimular a criação de um partido socialista de massas da classe trabalhadora, Sanders se transformou em um de seus defensores mais incansáveis.
A jornada de Bernie, da tragédia à farsa, tomou recentemente a forma de uma viagem por nove estados junto com o novo presidente do DNC e ex-Secretário do Trabalho, Tom Perez. Como todos os políticos do establishment, Perez só fala na linguagem evasiva das banalidades sem sentido – isso e algumas palavras em espanhol embaraçosamente incorretas. Durante as primárias, ele assegurou pessoalmente à campanha de Clinton que “colocaria um fim” no apoio latino de Sanders e cinicamente encorajou Clinton a persegui-lo tachando-o como o candidato de “homens brancos raivosos” que perderam o contato com as minorias.
Durante a corrida para a presidência do DNC, Bernie apoiou Keith Ellison contra Perez. Amplamente visto como o candidato “progressista”, e como apoiador próximo da campanha de Sanders, Ellison está entre aqueles que reconhecem, no rescaldo de 2016, a necessidade de uma postura à esquerda. Mas os Democratas elegeram Perez, e Sanders mordeu a isca – de novo.
Em quase todas as paradas da “Turnê da Unidade”, Perez foi recebido com vaias, enquanto Sanders era aclamado entusiasticamente. De cidade em cidade, ele se permitiu agir como uma esponja humana para absorver o descontentamento que permeia o próprio partido, que, como colocou um participante de uma manifestação recente, “meio que passou a perna nele”. Enquanto a própria turnê foi amplamente vista como um fracasso e como indicação adicional de uma crise de liderança dentro do partido, o próprio Sanders continua a gozar de maior aprovação que qualquer outro político de acordo com pesquisas recentes. Apesar de seu malogrado projeto de empurrar o Partido Democrata para a esquerda, dois fatores principais explicam a duradoura lealdade da base de Sanders:
Em primeiro lugar, mostra o poderoso impacto de pelo menos falar de classe e socialismo, senão da luta de classes e da revolução socialista. Desde 2008, as massivas expressões de descontentamento nos EUA tiveram uma forma espontânea, sem liderança e politicamente vaga: Wisconsin, Occupy e Black Lives Matter. Sanders se tornou a personificação do estado de ânimo da sociedade quando se posicionou como um socialista declarado e defensor de uma “revolução política contra a classe bilionária”. Por isso ganhou um grau de confiança e respeito que é alheio à maioria dos políticos burgueses.
Isso leva ao segundo fator: o vácuo. Sem nenhum partido de massas ou figura de liderança à esquerda de Sanders e dos Democratas, e face aos ataques quase diários da administração Trump, o desejo de uma ação imediata de combate usando as ferramentas atualmente disponíveis afasta a necessidade de se construir, em primeiro lugar, uma ferramenta efetiva. Os ativistas do DNC e os liberais burgueses acompanham cautelosamente cada um de seus passos e comentários, perguntando-se: “Pode Sanders salvar o Partido Democrata? ”. Mas, o que mais preocupa a nossa classe, é se Sanders ajudará ou criará dificuldades à criação de um partido socialista de massas da classe trabalhadora. A construção desse partido é a tarefa mais premente que enfrentamos.
Dados o vácuo e a falta de alternativas, Sanders ainda poderia desempenhar um papel importante na oscilante política dos EUA. Mas parece que ele respondeu decididamente à questão “que fará Bernie?”. Enquanto continuar a trabalhar com os Democratas, estará ajudando a preservar o sistema bipartidário e o papel do capital. O ano de 2016 revelou até que ponto os dois partidos do capitalismo destruíram sua legitimidade. O potencial para o surgimento de um novo partido de massas que poderia transformar radicalmente o cenário político está mais próximo que nunca, mas deve estar baseado em um programa de luta de classes aberta contra o capitalismo se quiser fazer mais do que simplesmente ajudar a baixar a poeira da revolução.
Texto publicado originalmente em 11 de maio de 2017 no site In Defence Of Marxism (www.marxist.com) com o título “DNC ”Unity” Tour: Bernie’s Rightward Journey”.