Egito: Morsi humilhado pela nova chama revolucionária

A raiva espalhou-se rapidamente à medida que milhares e milhares de pessoas iam se aglutinando na Praça Tahir para protestar contra o presidente Morsi e seu partido, a Irmandade Muçulmana. Por toda a praça viam-se slogans como: “A Irmandade Muçulmana roubou a revolução”, ou: “A Irmandade Muçulmana é mentirosa”. Durante todo o dia, chegavam à praça ondas intermináveis de marchas vindas da cidade velha (parte mais antiga da cidade do Cairo onde moram as pessoas mais pobres. Nota do Editor). Em tamanho e radicalismo os protestos de ontem (dia 27 de novembro) só se equiparam aos que levaram à queda do ditador Hosni Mubarak em Janeiro de 2011.

Esta manifestação marcou o sexto dia de protestos que tiveram início quando da aprovação de um decreto que concentrava todo o poder na figura do presidente. O decreto, além de permitir que ele governe com imunidade do judiciário, também permite que ele adote “qualquer medida necessária” para “defender a revolução”. Na verdade, esse é um pretexto para fazer exatamente o contrário!

Inicialmente a reação ao decreto ficou limitada a pequenos grupos, em sua maioria de jovens. Mas à medida que a repressão se expandia cada vez mais, as verdadeiras intenções escondidas por de trás do decreto ficaram claras para a maioria da população.

Sentindo que a revolução estava em perigo, as massas voltaram às ruas. Os gritos de “O povo quer derrubar o regime”, “Fora, Fora” e “Abaixo o regime” novamente foram ouvidos na Praça Tahir. Refletindo o clima nas ruas, um dos manifestantes, Mohammed Magdi, disse à imprensa: “queremos mudar tudo isso. A irmandade sequestrou a revolução, as pessoas acordaram para os erros de Morsi e em qualquer outra eleição eles não ganharão nenhum voto”. Magdi estava em uma passeata de mais de 10.000 pessoas que vieram do subúrbio operário de Shubra.

A tropa de choque não demonstrou nenhuma compaixão para com os manifestantes que foram atacados ao longo de todo o dia. O gás lacrimogêneo utilizado e que cobriu boa parte da praça ao longo do dia, foi um dos mais perigosos, e acabou levando à morte um homem de 54 anos.

O primeiro-ministro Hesham Qandil já havia alertado que “o governo vai confrontar qualquer método destrutivo ou ações violentas que ameacem o caráter pacífico dos protestos”. Mas ao serem confrontadas com os revolucionários as forças do governo se mostraram insignificantes.

Apesar das condições adversas, as pessoas continuaram dirigindo-se para a praça. À medida que o dia avançava, o numero de manifestantes ultrapassava em muito o que os organizadores haviam planejado. A própria Irmandade Muçulmana estimou que havia entre duzentas e trezentas mil pessoas nas ruas. Muitos afirmaram que aquele era o maior protesto da história do Egito. Um ativista escreveu no Twitter: “O incrível é que não tem mais espaço na Praça Tahir e as passeatas nem chegaram lá ainda”.

Os manifestantes não eram apenas jovens, havia trabalhadores sindicalizados, donas de casa, homens e mulheres, idosos, todos lá para mostrar sua indignação. Outro ativista publicou na internet: “Desta vez, famílias inteiras vieram. Todos vieram, inclusive nossos pais, pela primeira vez”.

Além disso, demonstrações de massa estavam ocorrendo muito além de Cairo. Grandes manifestações foram vistas em Alexandria, Porto Said, Suez, Mahalla, Assyut, Luxor e muitas outras.

Apesar de que o número expressivo de participantes na praça enchia as massas de confiança e otimismo, o clima era de seriedade militante, muito diferente dos júbilos de alegria que se seguiram à revolução. Isso está de acordo com o perfil das manifestações da semana passada.

Em Alexandria, onde dezenas de milhares participaram dos protestos, a Irmandade Muçulmana ordenou que seus membros se retirassem de seus escritórios na cidade, que estavam sob ataque. Em Mansoura a sede da Irmandade foi incendiada. No bastião proletário de Mahalla, as dependências da Irmandade foram atacadas com pedras e coquetéis molotov.

Os Islamistas são expostos

A Irmandade Muçulmana, ao lado de seu parceiro político, os salafistas do Partido Nour, inicialmente convocaram uma contramanifestação que deveria ocorrer na Praça Tahir. Mas ao verem a situação da praça, tiveram que cancelá-la, esperando que pelo menos em outras cidades houvesse uma reação. Mas apesar dos incentivos materiais para que isso acontecesse, as manifestações pró-Mursi não ocorreram.

Somente na cidade de Assuit, longe das cidades industriais do delta do Nilo, a Irmandade foi capaz de reunir cinco mil pessoas para uma marcha pró-Irmandade. Esse protesto, no entanto, foi composto por estudantes da Universidade Al Azhar, o mais renomado centro de estudos islâmicos do mundo, dirigido por Muhammad Sayyid Tantawy, um antigo apoiador de Mubarak.

Em Alexandria, que ficou conhecida como ponto de apoia da Irmandade e de seus aliados salafistas, os islamitas conseguiram reunir algum apoio, mas que foi rapidamente dispersado por multidões que protestavam contra Mursi. No fim das contas, a Irmandade foi forçada a se retirar também de Alexandria.

Os islamitas estão sob forte pressão. Em um gesto patético, o arrogante líder do Partido Nour e conselheiro de Mursi, Emal Abdel Ghaffour, disse que ele “não havia sido consultado” para a aprovação do decreto de Mursi.

A Irmandade Muçulmana, depois de apenas cinco meses no poder, já está em crise. Apenas alguns dias atrás jornalistas ocidentais proclamavam Mursi como novo líder do mundo árabe, alguns indo tão longe a ponto de declará-lo o novo Nasser.

Mas hoje todas as glórias que Mursi reivindicava para si próprio foram destruídas pelas massas com suas manifestações gigantescas. Na noite passada, Mursi só continuava no poder por piedade do povo. Se ele tivesse chamado por uma reação na Praça Tahir, a reposta popular seria tão insignificante que sua presidência não teria sobrevido até o nascer do dia.

Mursi não é nem jamais será um novo Nasser, pois Nasser, apesar de suas confusões, se apoiava nas massas e nos trabalhadores egípcios para atacar o capitalismo. Mursi, assim como seus aliados islamitas, não apenas é um homem a serviço do capital, mas alguém a serviço da antiga ordem e em oposição à nova que nasce.

O Antigo Regime manobra – Líderes abrem as portas

Na Segunda-feira, representantes do presidente se reuniram com o judiciário para tentar um acordo, em uma tentativa de dispersar o movimento. Embora uma retirada total do decreto fosse por demais humilhante, Mursi assegurou que sua imunidade se limitaria aos “assuntos de soberania”.

A principio os juízes se mostraram dispostos a aceitar a oferta, mas ao observarem o clima nas ruas, eles chegaram à conclusão de que ganhariam mais concessões se aguardassem um pouco mais. Sendo assim, eles denunciaram o acordo, afirmando que jamais houve um.

Está claro que se a Irmandade Muçulmana não tem problemas em trabalhar com elementos do antigo regime, não são todos os setores que estão contentes em dividir poder. Alguns setores enxergam nessa crise uma oportunidade para recuperar posições perdidas. Essa histeria dos juízes não engana os egípcios que se lembram de que esse mesmo judiciário era um dos pontos de apoio à Mubarak e, inclusive depois de sua tentativa de permanecer no poder.

Contudo, ao mesmo tempo em que tentam domar a onda da revolução não querem atacar a Irmandade. Esses setores se mobilizaram para os protestos de hoje e alguns estiveram na Praça. Mas ao longo do dia ficou claro que o povo não cairia nesse truque e essa minoria remanescente do antigo regime permaneceu como uma minoria isolada.

Infelizmente, os que deveriam liderar as massas no protesto não perceberam esses truques. Na quinta-feira, o liberal Mohammed ElBaradei e o nasserista Hamdeen Sabahi, que são vistos pelas massas como parte da revolução, anunciaram a Frente de Resgate Nacional ao lado de Amr Nousa, ministro das relações exteriores de Mubarak. Com a velha desculpa de “quanto mais melhor” , esses senhores estão chamando pessoas como Amr Nousa e seus amigos do judiciário, que até pouco tempo atrás estavam dispostos a mergulhar o país em um mar de sangue para destruir a revolução.

Vale lembrar que foi esse judiciário que anulou a eleição parlamentar para acabar com a Assembleia Constituinte. Foram também esses juízes que demonstraram extrema benevolência quando julgaram os facínoras de Mubarak. Dar qualquer abertura para essas pessoas seria abrir espaço para a contra revolução no meio da revolução, com consequências devastadoras.

Ao invés de conscientizar as massas, essa tática só poderá desorientar o movimento e enfraquecer a revolução. Os primeiros resultados concretos dessa aliança já se mostram desastrosos. Primeiro, a presença desses elementos nos protestos já serviu de pretexto para a Irmandade acusar os manifestantes de estarem aliados com os membros do antigo regime, o que certamente servirá para desestimular novas adesões. Além disso, o programa foi rebaixado de tal forma que não é mais atraente para ninguém.

Agora, suas principais demandas são revogar o decreto presidencial e defender o judiciário. À medida que defende o judiciário, o programa se afasta das mais honestas e combativas forças revolucionárias que lutam pela revogação do decreto, a queda do regime atual e por uma nova revolução.

Assim podemos ver que a lógica do “quanto mais melhor” só serve para limitar o alcance do movimento, de forma a evitar qualquer ataque real aos antigos senhores. A única maneira de garantir a vitoria é impulsionar um programa revolucionário ousado, que leve à destruição do regime atual e do sistema econômico que está por detrás dele.

Sabahi ganhou mais de cinco milhões de votos, e provavelmente teria ganhado a eleição não fosse a armação eleitoral que foi organizada. Tudo isso foi possível porque ele, desde o começo, se apresentou como o “candidato da Praça Tahir” que não apoiaria nem Shafkir, candidato do antigo regime, nem Mursi no segundo turno. Mas ao se aliar com elementos como Nousra ele se arrisca a perder apoio popular.

Se ontem Sabahi tivesse chamado uma intensificação do movimento, com uma greve geral e uma marcha ao palácio presidencial para depor o atual presidente, nada teria impedido a vitória. Mas ao invés disso, a frente de Resgate Nacional apenas chama por mais protestos.

Os Socialistas Revolucionários, como foi dito em outro artigo, cometeram um erro semelhante. Ao invés de expor a base burguesa da Irmandade Muçulmana, eles chamaram voto em Mursi como “mal menor”.  A campanha de Mursi até fez um agradecimento publico a eles. Esse erro criminoso – pelo qual a liderança da organização é totalmente responsável – enfraqueceu as ligações com as forças revolucionárias, que claramente se opõe à Irmandade Muçulmana.

Nos últimos dias, eles lançaram um manifesto se desvinculando da Irmandade, mas muito tarde. Se eles tivessem tido a compreensão da natureza burguesa da Irmandade e a tivessem denunciado desde o começo, teriam muito a ganhar agora, uma vez que a luta das massas expôs a Irmandade. Por isso, por esse erro e outros semelhantes, a organização, com seus muitos e talentosos militantes, compõem uma parcela pequena e isolada do movimento.

Prostração e Instabilidade

Para todos os céticos que diziam que a revolução egípcia estava morta, os protestos de ontem devem ter servido como lição. Não importa o quanto de fé religiosa ou nacionalismo estejam presentes no movimento, as contradições de classe estão emergindo e não poderão ser interrompidas.

Isso foi o que escrevemos há um ano:

“Seria um erro dar aos islamitas e outras forças contrarrevolucionárias um caráter “sobrenatural”, como se eles estivessem acima da sociedade e da luta de classes. O importante é entender que essas forças fazem parte da linha de defesa do capital. Mas enquanto eles defenderem o domínio do capital, eles devem aceitar sua lógica. Portanto, devem defender a crise do capitalismo, que no momento não permite nem a menor concessão às massas.

Se tudo isso tivesse ocorrido há dez anos, eles poderiam ser capazes de formar um regime democrático burguês. O boom no mundo capitalista os daria alguma margem para manobras. Mas agora há uma profunda crise a nível mundial. Essa é a razão do fervor revolucionário e do porque ele não pode ser derrotado facilmente.” Um ano desde a morte de Bouazizi – um anod a Revolução Árabe, Hamid Alizadeh, 16 de Dezembro de 2011.

A demonstração de força de ontem confirma o que dissemos. A revolução afastou os islamitas e deixaram as forças do estado paralisadas e em choque. Incapazes de qualquer ação, eles se limitaram a assistir e rezar para que as massas tivessem piedade. Se a liderança do movimento fosse revolucionária, os protestos de ontem poderiam ter varrido todos os elementos da antiga sociedade. Mas a ausência de tal direção significa que o regime, mesmo cambaleante, continua vivo.

As massas querem democracia, e os marxistas apoiam essa causa, mas devemos ser claros ao dizer que uma democracia burguesa não pode oferecer nada mais que a permanência do status quo. Os marxistas egípcios previram esses eventos, mas devido aos seus números limitados, não puderam influenciar o movimento como um todo. Portanto, as massas terão que aprender tudo isso em um processo doloroso.

Ao contrario do que dizem os “experts” da burguesia e os céticos da “esquerda”, as massas árabes não são, de forma nenhuma, adeptas do fundamentalismo islâmico. Na verdade, as verdadeiras tradições da classe trabalhadora são de esquerda e socialista.

À medida que a revolução avança, essas tradições serão redescobertas, ainda mais quando ficar claro que nem as necessidades mais básicas das massas podem ser atendidas pelo capitalismo.

Somente as ideias marxistas podem oferecer uma alternativa. Portanto, a tarefa mais urgente é construir uma força dentro do movimento operário egípcio que se baseie nessas ideias. Explicá-las aos trabalhadores e à juventude produzirá um forte eco na revolução. Uma vez que esta tarefa esteja cumprida, a estrada para a revolução socialista estará aberta e com ela, a morte do capitalismo, a quem Mursi tão fielmente serve.

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