O que começou com uma pequena manifestação contra um aumento de vinte centavos no preço da tarifa de transporte público em São Paulo tornou-se movimento de massas em escala nacional que mobilizou mais de um milhão de pessoas em 80 cidades, depois de ter obrigado ao prefeito da cidade, Haddad, e ao governador do estado de São Paulo, Alckmin, a recuar em 19 de junho.
No entanto, o movimento também tem caráter contraditório. Nas manifestações de celebração de sua primeira vitória, em 20 de junho, também houve cenas ameaçadoras em São Paulo, Rio de Janeiro e outras metrópoles, quando grupos de direita e de extrema-direita organizados recorreram à violência para expulsar da manifestação os partidos de esquerda, sindicatos, movimentos sociais e, em geral, qualquer pessoa portando bandeiras, camisetas ou símbolos vermelhos.
O momento decisivo em que o movimento se tornou nacional e adquiriu um caráter de massas foi provavelmente em 13 de junho, quando uma manifestação de aproximadamente 15 mil pessoas em São Paulo, a quarta de seu tipo contra o aumento da tarifa, foi brutalmente atacada pela Polícia Militar deixando mais de uma centena de feridos e prendendo um número similar de pessoas. A repressão foi semelhante em intensidade a dos mais negros dias da ditadura militar. A polícia não queria apenas dispersar os manifestantes, mais do que isto, queria atacá-los e dar-lhes uma lição. Usaram balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo, bombas de efeito moral, gás de pimenta em profusão, atingindo, em muitos casos, diretamente o corpo e a cabeça das pessoas. Chegaram a organizar emboscadas para colher os manifestantes enquanto estes vagavam pelas ruas, particularmente na simbólica Avenida Paulista.
Os repórteres também receberam uma boa parcela da brutalidade policial: dúzias deles apanharam bastante, a despeito de terem se identificado previamente como jornalistas. Ironicamente, a violência tinha sido preparada pelos maiores jornais e estações de TV, que tinham descrito os manifestantes como vândalos e criminosos violentos.
As notícias e as imagens da repressão começaram a se espalhar como fogo de palha através das redes da mídia social e também dos meios de comunicação de massa. No espaço de poucas horas, o ânimo mudou em todo o país, com manifestações espontâneas contra a repressão e em solidariedade aos protestos em São Paulo se espalhando para mais capitais de estado e além.
Na segunda-feira, 17 de junho, meio milhão de pessoas tomaram as ruas em São Paulo, Rio de Janeiro, em Brasília e em dúzias de cidades por todo o país. O maior movimento de massas no Brasil em décadas. A vaga da Primavera Árabe, dos Indignados Espanhóis, da Geração Rasca de Portugal, do movimento US#Occupy e, agora, do levantamento turco de Taksim definitivamente chegou ao Brasil.
Da mesma forma que nas grandes metrópoles, o movimento também alcançou as cidades menores do interior e é largamente espontâneo. Apenas para dar uma indicação: em Florianópolis, a capital do estado de Santa Catarina, no sul do país, os camaradas da Esquerda Marxista tomaram a iniciativa, junto com outros, de convocar uma reunião de sindicatos, organizações estudantis, movimentos sociais etc., para planejar e organizar uma manifestação em 20 de junho, o próximo e principal encontro marcado do movimento. Mais de 100 representantes compareceram. Em seguida, repentinamente, certo número de jovens, através das redes da mídia social, convocaram para uma manifestação em 18 de junho e 10 mil pessoas atenderam a convocação paralisando a cidade.
Os jovens, que formavam a maioria dos participantes no movimento, se inspiraram em movimentos similares da juventude de todos os lugares, e as redes da mídia social, com sua imediaticidade, serviu como útil ferramenta nas etapas iniciais do protesto, como um meio de espalhar informação, algumas vezes contornando os meios de comunicação de massa e sendo usado para organizar as manifestações.
Claramente, um movimento desta envergadura não pode ser explicado apenas pelo aumento da tarifa, ou mesmo como uma resposta à repressão brutal. Estas eram apenas as gotas d’água que fizeram transbordar o vaso. Nas condições do Brasil, existem razões profundas que se encontram na raiz da atual explosão de protesto. O país experimentou taxas sustentadas e significativas de crescimento durante a melhor parte dos últimos dez anos (com um curto abalo na esteira da crise mundial de 2008). Houve melhorias no nível de vida e uma significativa redução dos níveis de pobreza.
Mas este é somente um dos lados do quadro. Este crescimento econômico se baseou em uma série de fatores que agora estão começando a produzir efeito contrário. Em primeiro lugar, o governo do PT se beneficiou de uma crescente integração da economia brasileira com o boom na China, exportando massivamente mercadorias e matérias-primas. Uma política de altas taxas de juro para atrair investimento externo também tornou muito lucrativo para os capitalistas nacionais e estrangeiros especular com a dívida do Brasil. Tudo isto vem combinado com uma expansiva privatização da propriedade pública e com o desenvolvimento de uma bolha de especulação imobiliária.
O boom consumista foi alimentado com a expansão massiva de crédito. A dívida dos consumidores como percentagem do rendimento disponível mais que duplicou de aproximadamente 18%, em 2005, para quase 44% no final de 2012. Isto é claramente insustentável, particularmente com taxas de juro muito altas. Uma vez que o crescimento cesse, esta quantidade massiva de dívidas dos consumidores pesará como uma canga no pescoço da economia brasileira.
Os números oficiais de crescimento econômico esconde o gigantesco abismo entre ricos e pobres, que torna o Brasil um dos países mais desiguais do mundo, onde os 1% mais ricos (dois milhões de pessoas) detêm 13% da riqueza nacional, aproximadamente a mesma quantidade que se destina aos 50% mais pobres (80 milhões de pessoas). As estatísticas nacionais também escondem as gigantescas disparidades regionais e raciais. Por exemplo, o Censo de 2010 revelou que, embora a renda média mensal per capita no geral fosse de 668 Reais, 25% da população viviam com uma renda média mensal per capita de menos de 188 Reais (106 dólares) e 50% com menos de 375 Reais. Naturalmente, as médias são enganadoras. A renda média mensal dos 10% mais ricos foi de 5.345,22 Reais e a dos 1% mais ricos foi de insultantes 16.560,92 Reais (9.560,92 dólares).
O governo do Partido dos Trabalhadores foi eleito com o apoio dos trabalhadores e do movimento sindical organizado ao qual está historicamente ligado. Quando Lula ganhou a eleição em 2002, isto representou um valor simbólico para milhões de trabalhadores: um antigo sindicalista dos trabalhadores metalúrgicos, um dos seus, tornar-se o presidente do país!
Mas tanto Lula quanto sua sucessora, a presidente Dilma Rousseff, se envolveram em uma coalizão com certo número de partidos, principalmente com o conservador PMDB. Embora garantindo certos avanços sociais, eles realizaram uma política de privatizações e atacaram o sistema previdenciário dos trabalhadores do setor público. Geralmente, o Brasil era apresentado com uma gentil e “razoável” alternativa de esquerda às insanas, radicais e “confrontadoras” políticas de Chávez e da Revolução Bolivariana na Venezuela.
Houve ocasiões em que setores do movimento sindical confrontaram a coalizão de governo do PT. Mas o fato de que 90% dos acordos de negociação coletiva foram obtidos com aumentos salariais acima da inflação significou que os trabalhadores continuaram a apoiar Lula (e Rousseff em seguida) e, embora se opondo a esta ou àquela política pontual, consideravam o governo do PT como “seu próprio governo”.
Agora, isto começou a mudar com a freada na economia. Em seis de março deste ano, 50 mil trabalhadores se manifestaram em Brasília em uma marcha convocada pela CUT e outras confederações sindicais, exigindo mais gastos sociais, redução da jornada semanal sem perda de salário, rejeitando os ataques neoliberais sobre o trabalho e os direitos trabalhistas, e cortes na previdência etc. Já em 2012, com a freada da economia chinesa, o PIB do Brasil cresceu meros 0,5%, e preocupantes sinais começaram a se acumular. Para muitas pessoas, o primeiro sinal visível de que as coisas não estão indo bem na economia é a inflação crescente, particularmente dos produtos alimentícios.
Enquanto o governo continua a pagar somas gigantescas de dinheiro em juros e no serviço das dívidas externa e interna (que representam 47% do orçamento), a educação, a saúde e outros serviços públicos estão sendo cortados. Bilhões de dólares estão sendo gastos na construção de estádios para a Copa do Mundo, mas o povo trabalhador está sendo obrigado a pagar o aumento das já elevadas tarifas de ônibus e metrô.
Adicionando insulto à injúria, a FIFA impôs uma série de condições draconianas relativas à organização da Copa do Mundo, que o governo do PT aceitou alegremente, inclusive impondo os padrões das instalações a ser construídas. A FIFA exige incluir certo número de muito sérias e escandalosas restrições ao direito de greve, ao direito de se manifestar etc.
A constante propaganda do governo enaltecendo o Brasil como o principal centro futebolístico mundial, como uma das maiores economias do planeta, como um país “desenvolvido” etc., está em flagrante contradição com as verdadeiras condições de vida da maioria do povo e este abismo entre o discurso e a realidade é uma das poderosas razões por trás da explosiva natureza dos protestos durante as últimas semanas.
Por outro lado, a jovem geração, aqueles que estão agora por volta dos 20 anos de idade, nunca conheceu qualquer outro governo além dos liderados pelo PT. Os históricos movimentos que criaram o PT no tempestuoso período da luta contra a ditadura são coisas do arco da velha para eles.
Além do mais, um grande número dos prefeitos das cidades responsáveis pela imposição do aumento da tarifa, a causa imediata dos protestos, são membros do PT, em particular o prefeito Haddad de São Paulo. Eles não se diferenciaram dos políticos do principal partido da oposição de direita, o PSDB, como o governador do estado de São Paulo, Alckmin. De fato, quando os protestos começaram no início de junho, os dois se encontravam em Paris tentando trazer a Exposição Universal de 2020 para São Paulo.
Foram os políticos eleitos do PT, assim como aqueles do PSDB de oposição, os responsáveis diretos pela repressão brutal da Polícia Militar contra manifestantes pacíficos. Sua resposta inicial foi a de fazer prevalecer a autoridade da lei e da ordem. Esta posição foi plenamente apoiada pelo ministro da justiça Cardoso, membro do PT, que voluntariamente enviou a Polícia Federal para dar uma ajuda na repressão.
Dificilmente surpreende então que entre muitos dos manifestantes se apresentasse um ânimo amargo contra os partidos políticos em geral e, em particular, contra o dominante PT. Isto se assemelha ao enorme descrédito dos partidos políticos e dos políticos profissionais em outros países, e contém um elemento positivo, que é o da rejeição aos representantes políticos que são vistos como testas de ferro dos ricos e poderosos, impondo cortes contra o povo trabalhador e pessoalmente se beneficiando dos cargos políticos. Esta rejeição da política é, em grande medida, uma rejeição dos políticos burgueses e de suas instituições.
Contudo, no Brasil, este fato foi espertamente explorado pela mídia de direita e pelos partidos de direita na tentativa de desviar o foco do movimento na direção de uma agenda nacionalista. A partir de 18 de junho, esta mesma mídia, que tinha atacado os manifestantes como vândalos e delinquentes e estimulado a polícia a ataca-los, começou a elogiar o movimento ao mesmo tempo em que tentava modelá-lo no seu interesse. As pessoas foram estimuladas a portar a bandeira nacional do Brasil e a cantar o hino nacional, a se vestirem de branco e a focar os protestos sobre o tema da “luta contra a corrupção” (que é um código para a luta contra o governo do PT). No prédio da poderosa federação patronal de São Paulo, a FIESP, na Avenida Paulista, foi desfraldada uma gigantesca bandeira brasileira. Em particular nas manifestações de 20 de junho, a crescente influência da mídia de direita sobre as manifestações tornou-se mais visível. Além das demandas originais contra o aumento da tarifa e contra o dinheiro gasto na Copa do Mundo em detrimento da saúde e educação pública, havia agora também cartazes contra o direito ao aborto, contra a corrupção do PT e até mesmo pedindo um golpe militar.
Foi neste contexto que uma provocação organizada, envolvendo grupos de bandidos de extrema-direita, que se intitulavam de “nacionalistas”, alguns deles armados com punhais, outros portando tacos de basebol, cercaram os grupos formados por partidos de esquerda e organizações sindicais nas manifestações de 20 de junho, a maior até agora. Gritos de “sem partido” eram acompanhados por gritos de “fora com os vermelhos”, “vão para Cuba” etc.
Depois de um assédio violento, constante e crescente, finalmente os militantes e sindicalistas de esquerda foram forçados a baixar suas bandeiras vermelhas e a abandonar a manifestação, alguns deles feridos. Este assédio afetou tanto os militantes do PT quanto os de outros partidos de esquerda (PSOL, PSTU, PCdoB, UJS etc.) e organizações de massa, incluindo a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a principal confederação dos trabalhadores, a CUT (que teve algumas de suas bandeiras incendiadas no Rio).
Até mesmo os organizadores iniciais dos protestos contra o aumento da tarifa, o Movimento Passe Livre (MPL), foram forçados a se retirar da manifestação em São Paulo e a emitir uma declaração condenando os ataques contra as organizações de esquerda, pontuando que, apesar de seu movimento não ser partidário, não era contra os partidos políticos e que estes faziam parte da luta mais abrangente dos oprimidos contra os que se encontram no topo. Na verdade, a triste ironia é que muitos dos partidos de esquerda atacados nas manifestações de 20 de junho, particularmente em São Paulo, tinham dado apoio ao movimento desde o seu início, quando este ainda era pequeno e objeto de repressão brutal.
Seria incorreto tirar disto a conclusão de que as centenas de milhares de pessoas que tomaram parte nas manifestações no Brasil em 20 de junho são todos raivosos anticomunistas ou apoiadores conscientes da agenda da direita. Longe disto! Na verdade, quando o MPL e outras organizações deixaram de convocar as pessoas para manifestações e estas passaram a ser convocadas somente dentro da agenda da direita, o número de participantes caiu massivamente, como em São Paulo. Em outros casos, houve uma divisão aberta no movimento com manifestações da esquerda e da direita sendo organizadas separadamente. Em outras metrópoles e cidades, onde o movimento ainda gravita principalmente em torno do tema da oposição ao aumento da tarifa, os protestos são liderados pelas ideias e organizações de esquerda. É este, por exemplo, o caso em Belo Horizonte (estado de Minas Gerais), onde 200 mil pessoas marcharam em 22 de junho, com uma série de demandas claras, além das relativas à tarifa dos transportes, em uma bem organizada manifestação que terminou em uma assembleia de massa popular para decidir sobre o curso do movimento.
Deve-se acrescentar que os principais sindicatos e a própria CUT foram muito lentos em reagir a este movimento. Se eles tivessem lançado o seu peso em apoio ao movimento desde o início, dando-lhe um caráter mais organizado e ligando-o às demandas dos trabalhadores organizados, teria sido muito mais difícil para a direita tentar tomar o comando dos protestos.
O próprio MPL também é parcialmente responsável pelo que aconteceu, quando insistiram que o movimento seria “horizontal” e se opuseram aos apelos de se dar ao movimento uma estrutura mais organizada. Alguns chegaram mesmo a rejeitar a presença de sistemas de carros de som, a partir dos quais os discursos pudessem ser feitos e ouvidos por todos os presentes e facilitando a tomada coletiva de decisões. Pelo visto, microfones e carros de som são “autoritários”. Também houve rejeição à ideia de votação para se decidir o curso do movimento, com a argumentação de que as decisões seriam “consensuais”, o que é a melhor receita que existe para paralisar o movimento e dar à minoria um direito de veto (o contrário de democracia). Desde o início do movimento os camaradas da Esquerda Marxista e da Juventude Marxista, que se envolveram ativamente nos protestos, argumentaram que o movimento deveria ter estruturas democráticas e que as organizações de massa dos trabalhadores, da juventude e estudantis deveriam dar um passo à frente e se envolver.
Em vez disto, o que vimos foi um pequeno grupo de algumas dúzias de pessoas em São Paulo, se reunindo após cada grande manifestação para marcar a data da próxima. Muito longe de um processo democrático em um momento em que os protestos já envolviam dezenas de milhares e logo centenas de milhares. No final, esta ausência de uma estrutura organizada e de um processo formal democrático de tomada de decisões permitiu à mídia de direita, com os poderosos recursos a sua disposição, desempenhar um papel dominante na definição da agenda. As ideias semianarquistas que já desempenharam papel negativo no movimento Occupy nos EUA e em outros lugares, no Brasil provou ser um completo desastre.
Uma tarefa urgente no Brasil é organizar a defesa do direito das organizações de esquerda e dos sindicatos à liberdade de expressão e de manifestação, direito este que elas ganharam na luta contra a ditadura militar. Os camaradas da Esquerda Marxista tomaram a iniciativa de convocar manifestações de frente única em São Paulo, Joinville e em outros locais. Isto viria acompanhado com a mobilização da força poderosa da classe trabalhadora brasileira para deixar claro que as demandas mais urgentes dos trabalhadores e dos jovens, relativas aos serviços de saúde, à educação, aos direitos trabalhistas, ao transporte público entre outros, são comuns.
A revolta brasileira revelou a bancarrota das políticas de colaboração de classe da liderança do PT, alienando-a da nova geração de jovens que entra na luta e lançando seus próprios partidários em estado de confusão. Mesmo agora, enquanto a presidente Dilma finge ter ouvido a voz das ruas, ainda se encontra firmemente disposta a respeitar os limites do sistema capitalista. O primeiro dos “cinco acordos” que ela prometeu é um “acordo de responsabilidade fiscal”, o que significa cortes no orçamento com o objetivo de garantir o pagamento da gigantesca dívida estatal aos bancos e especuladores. O objetivo de colocar este acordo como o primeiro ponto de sua proposta é o de enviar uma mensagem tranquilizadora de “responsabilidade” aos “mercados” (capitalistas e multinacionais): “Eu continuarei a perseguir políticas em seu favor”. Mesmo sua proposta de destinar 100% dos royalties do petróleo para o orçamento da educação não trata da questão crucial de quais são os termos nos quais os contratos de petróleo estão sendo dados às companhias multinacionais. Neste momento, os contratos petrolíferos são extremamente favoráveis às empresas privadas que irão receber 82% dos lucros e só pagam 8% de royalties.
O inspirador movimento dos jovens brasileiros provou isto: a luta compensa e o que há somente dez dias parecia impossível foi alcançado. Se a juventude se somar ao movimento organizado dos sindicatos, então, nada poderá detê-los.