Nas últimas semanas, houve uma escalada de ataques verbais do governo venezuelano contra a esquerda revolucionária. Esses ataques do presidente Maduro e do presidente da Assembleia Nacional, Jorge Rodríguez, foram dirigidos particularmente contra a Alternativa Popular Revolucionária (APR): uma plataforma política que reúne vários partidos e organizações à esquerda do governo de Maduro. Alegações muito sérias foram feitas, incluindo a acusação de que a oposição de esquerda ao governo está agindo em conluio com o imperialismo dos EUA.
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Até agora, os ataques contra a APR consistiam em intimidação, censura nos meios de comunicação públicos e privados e vários atos de repressão contra os candidatos da APR durante a campanha eleitoral à Assembleia Nacional. O mais importante e sério aqui é que esses últimos ataques podem preparar o terreno para um nível mais alto de repressão contra a esquerda e o movimento dos trabalhadores.
Uma das razões para o governo intensificar sua campanha política contra a APR poderia ser que, para contornar as sanções econômicas do imperialismo norte-americano, bem como superar a profunda crise econômica que existe atualmente, o governo de Maduro vá muito além da direita, aprofundando suas políticas monetaristas e aumentando as privatizações. Medidas desse tipo sempre significarão um fardo ainda mais pesado para as massas trabalhadoras e, nesse contexto, a APR poderá desempenhar um papel importante, organizando e liderando protestos de massa contra o pacote de medidas econômicas que está por vir nos próximos meses.
De fato, os resultados da APR nas eleições para a Assembleia Nacional foram muito modestos: 2,73% dos votos e um de seus membros eleito para a Assembleia. Entre as razões para isso estavam a censura da mídia, a falta de dinheiro e a propaganda negativa da direção do PSUV. É uma pequena força, mas ainda conserva muito potencial político. Esse potencial decorre de suas ideias políticas e das principais demandas que vem levantando desde o seu lançamento, em agosto do ano passado. Portanto, é lógico pensar que existe algum temor na liderança bolivariana em relação a esse potencial e que isso pode levar a APR a se tornar uma força política maior no país.
Alegações sérias
Em 23 de janeiro, durante a comemoração da derrubada da ditadura de Pérez Jiménez por um levante de massas em 1958 – que, historicamente, é um símbolo da esquerda – o presidente Maduro fez um discurso na chamada Varanda do Povo, no palácio Miraflores. Na ocasião, ele disse: “Há uns divisionistas aí tentando danificar o chavismo a partir de dentro. Te aviso… Pela primeira vez, aviso isso. Cuidado com os divisionistas que tentam se chamar de Marxistas-Leninistas e dizer que são ‘mais chavistas do que Chávez’. Tenham cuidado porque, por trás deles, está a mão do imperialismo norte-americano. Fiquem alertas nos bairros, nas universidades, nas ruas.”
Dois dias depois, durante uma reunião de liderança do PSUV, Maduro repetiu suas alegações, adicionando um apelo para expor os “divisionistas” e as implicações do crime: “Decidimos no Diretório Nacional do Partido Socialista Unificado da Venezuela convocar unitariamente todas as forças do Grande Polo Patriótico, para consolidar uma grande aliança nacional e denunciar frontalmente os divisionistas com seus nomes e sobrenomes onde quer que se encontrem, diante do país e diante do mundo, porque é um crime contra a Pátria, a paz e a revolução, tentar dividir o movimento revolucionário venezuelano.”
Até este ponto e durante a campanha eleitoral, o papel de Maduro e da direção burocrática do PSUV foi o de subestimar, ignorar e tornar invisível a APR. No entanto, essas declarações recentes constituem, na verdade, uma mudança na política do governo com relação à APR. Parece agora que o objetivo é lançar uma ofensiva para desacreditar a APR e todas as organizações dentro dessa plataforma, mas, principalmente, o seu maior componente, o Partido Comunista da Venezuela. A linguagem utilizada, demasiado agressiva, e o apelo para que se descubram os “divisionistas” onde quer que estejam para que sejam denunciados publicamente, são extremamente graves e podem estar a preparar o terreno para uma repressão violenta contra a APR em futuro próximo.
Em seus discursos, o presidente Maduro chegou a usar o adjetivo trasnochado – que, literalmente, em espanhol, significa alguém que não dormiu a noite toda. A tradução correta em português para o termo estaria “desatualizada”, com relação à APR e ao Partido Comunista. Rómulo Betancourt, o famoso e histórico líder do velho partido social-democrata venezuelano, Acción Democrática (que degenerou à direita há muitas décadas) começou a usar esse adjetivo de forma desdenhosa contra o PC e o restante da esquerda marxista nos anos 1960, como uma forma de ridicularizá-los. É importante sublinhar também o fato de que Betancourt foi o responsável pela morte e desaparecimento de milhares de ativistas revolucionários durante o seu governo.
Mentiras escandalosas
Nos últimos dias, a situação piorou. Na quinta-feira passada, durante a sessão plenária semanal da Assembleia Nacional, Jorge Rodríguez, agora presidente da Assembleia Nacional e ex-vice-presidente e autarca de Caracas, fez uso da palavra logo depois de Oscar Figuera – o atual deputado da APR e do PC. A principal discussão na sessão era sobre uma declaração para a comemoração dos 29 anos da insurreição militar de esquerda de 4 de fevereiro de 1992, liderada pelo camarada Chávez. Figuera expressou-se a favor da aprovação da primeira parte da moção – a parte comemorativa da insurreição e de seus objetivos políticos – mas não da segunda, que versava sobre o atual papel do governo no cumprimento desses objetivos atualmente.
Em seu discurso, Rodríguez respondeu a Figuera de forma totalmente desproporcional. Praticamente, queria esmagar a luta que a APR vem levando a frente, vendendo para as bases do movimento bolivariano que o PC e a APR eram apoiados pelo enviado especial dos EUA para a Venezuela, Elliot Abrams, e que o trabalho político dessa plataforma estava relacionado às tentativas sistemáticas de Abrams para derrubar o governo de Maduro.
Abrams foi um dos principais funcionários do governo Reagan, que apoiou os planos contrarrevolucionários na Nicarágua (que, obviamente, envolveu o vergonhoso caso Irã-Contras), na Guatemala, em Honduras e El Salvador, para exterminar organizações de esquerda por meio da extrema violência.
Sob o governo Reagan, US$ 1 milhão eram enviados diariamente ao exército salvadorenho para combater a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN). Ao mesmo tempo, o imperialismo dos EUA treinou centenas de quadros militares de El Salvador, que, mais tarde, se tornaram os horríveis esquadrões da morte, responsáveis pela morte de milhares de homens, mulheres e crianças inocentes. O massacre de El Mozote, ocorrido em 1981 na região oriental do país, foi de fato o pior massacre da história moderna da América Latina.
Dessa forma, a campanha de Rodríguez contra o PC e a APR, ao tentar nos colocar no mesmo nível de um monstro como Abrams, é um grande escândalo e um verdadeiro constrangimento. A APR e as organizações que a constituem têm um histórico de luta contra a agressão imperialista, opondo-se às sanções dos EUA contra a Venezuela. Além disso, têm exigido sistematicamente que Juan Guaidó seja preso por sua participação em um golpe fracassado em 2019, por sua tentativa de derrubar o presidente eleito, por seu apelo por uma invasão militar dos EUA, por sua colaboração com uma invasão mercenária etc. O governo de Maduro optou por deixá-lo livre, enquanto ataca àqueles que querem prender os traidores pró-imperialistas, considerando-os “em conluio com Elliot Abrams”!
Além disso, Rodríguez disse algumas coisas que não devem ser consideradas insignificantes. Por exemplo, que agora era a hora de responder às supostas provocações da APR, tendo-as ignorado no passado. Esse tipo de discurso político poderia ter como objetivo provocar o surgimento de grupos armados de apoio ao governo, como alguns dos colectivos ou os chamados Cupaz, com o objetivo, como já apontamos, de preparar o cenário para ataques violentos desses grupos contra a APR nas próximas semanas ou meses.
Ataques à esquerda
É significativo notar que, enquanto o governo de Maduro ataca a esquerda, mantém encontros com Fedecamaras, a principal organização empresarial, que esteve envolvida em todas as tentativas de derrubar a Revolução Bolivariana por meio de um golpe, desde o início. O ex-presidente da Fedecamaras, Jorge Roig, aplaudiu publicamente o ataque contra a APR e o Partido Comunista: “Um grande amigo meu, que tem uma sólida visão política, me disse: ‘o regime está lutando contra o Partido Comunista Venezuelano na mesma semana que se reúne com Fedecamaras, é maravilhoso’. Compartilho seus sentimentos.”
Nesse mesmo sentido, é importante explicar, mais uma vez, que nenhuma das organizações que fazem parte da APR é inimiga da Revolução Bolivariana – e nunca será – nem das massas bolivarianas. Organizações como o PC, como a seção venezuelana da CMI, Lucha de Clases, como o antigo partido Patria para Todos, agora Corrente Rafael Uzcátegui, como a Izquierda Unida e outros, sempre foram sólidos apoiadores da revolução socialista na Venezuela, bem como anti-imperialistas e anticapitalistas consistentes.
Não somos inimigos, nem adversários das massas bolivarianas. Nós lutamos pelas mesmas ideias que o camarada Chávez defendeu em um de seus discursos finais, “Golpe de Timón” [Vire o leme], sobre a necessidade urgente de transformar nossa sociedade em linhas socialistas e combater todas as formas de opressão nacional e social de nosso povo. Mas, nesse contexto, é fundamental deixar claro que a atual política do governo de Maduro se opõe totalmente aos interesses da classe trabalhadora e também ao legado do presidente Chávez.