A eclosão de uma nova crise de refugiados assombra os governos de toda a Europa. Uma enorme onda de fugitivos da guerra da Síria tenta cruzar a fronteira por terra ou pelo Mar Egeu, desde os campos na Turquia em direção à Grécia. Isso depois que um conselho de segurança extraordinário turco, dirigido pelo próprio presidente Recep Erdogan decidiu não mais deter os imigrantes que desejam chegar à Europa. A convocação do conselho se deu após a morte de 33 soldados turcos em um atentado na região de Idlib, que o governo de Ancara atribuiu à Síria de Bashar Al Assad, com apoio militar e estratégico dos russos.
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Atualmente, a Turquia abriga nesses campos cerca de 3,6 milhões de refugiados sírios que, entre outras questões relacionadas à Síria, têm espaço central na agenda governamental de Erdogan. Além de apoiar os rebeldes contra o regime de Assad, ele está em ofensiva pelo domínio do território curdo na Síria, após Trump deixar-lhe o caminho livre com a retirada das tropas norte-americanas da região. Com o acirramento da violência no conflito, ele passou a alegar que teme problemas internos com o aumento do fluxo migratório e que sua ofensiva na Síria visa a criar um “corredor da paz” onde irá instalar os milhares de refugiados que vivem hoje em solo turco. Reacionário que é, Erdogan, na verdade, quer exterminar os rebeldes curdos, com seu exército reforçado com mercenários radicais islâmicos, e conquistar o domínio pleno da região síria nos arredores de Al Qamishli, criando ali um protetorado árabe que lhe sirva de amortecedor contra os curdos de outras regiões.
Ao mesmo tempo, o anúncio de que não vai mais controlar suas fronteiras com a Europa é uma forma de pressionar a Grécia, na esteira da escalada das tensões com esse país devido a uma disputa por uma parcela maior do gás e do petróleo no Mediterrâneo Oriental e também a União Europeia (UE), apavorada com a perspectiva de uma crise como a de 2015 e com quem Erdogan firmou, em 2016, um acordo para conter os fluxos migratórios que partiam da Síria e dos próprios campos turcos. Ele acusa a UE de falta de compromisso e falta da devida ajuda financeira para manutenção dos refugiados em território turco:
“Não conseguiremos enfrentar uma nova onda de refugiados (…) “A Europa deve cumprir suas promessas (…) Se é sincera, deve assumir sua parte do fardo”, completou. (Agence France-Presse (AFP) – 29/2/20)
O escudo grego
Por sua vez, o atual governo grego liderado pelo conservador Kyriakos Mitsotakis do partido Nova Democracia, alçado ao poder nas eleições de 2018 graças à desilusão popular com a traição de Tsipras e da Syriza – enquanto acusa Erdogan de financiar a nova onda imigrante –, reforça os efetivos do exército nas fronteiras depois que centenas de pessoas tentaram atravessar o posto de Kastanies. Militares gregos afirmam ter visto cerca de 300 refugiados do lado turco da fronteira, na região de Evros, um número considerado anormal. Confrontos entre os imigrantes e os soldados gregos têm sido cada vez mais frequentes, tanto nos campos localizados nas ilhas quanto nos postos fronteiriços.
O mesmo acontece pelo Mar Egeu, onde as patrulhas da guarda-costeira grega foram reforçadas por ordem de Mitsotakis. Um vídeo viralizado nas redes sociais mostra um barco-patrulha grego arremetendo contra um bote inflável repleto de imigrantes. As imagens também revelam guardas, em barcos menores, ora agredindo os refugiados, ora tentando perfurar o seu bote com o auxílio de arpões. Em outro momento, disparam tiros de advertência com fuzis na água, porém bem perto da embarcação imigrante. As ilhas gregas orientais têm sido, nos últimos anos, uma das principais vias de entrada de fluxos migratórios que têm como destino a Europa. São centenas de milhares de pessoas fugindo da pobreza e guerras no Oriente Médio, África e Ásia. Parte do acordo entre a UE e o regime turco previa que novos refugiados deveriam permanecer em campos, nessas ilhas, até que fossem deportados para Turquia, para iniciar o processo dos seus pedidos de asilo.
Como expusemos acima, um dos argumentos dos quais Erdogan se utiliza para chancelar a abertura das fronteiras é o temor de que o aumento do fluxo migratório desde a Síria possa lhe trazer distúrbios internos. Nos últimos dias, seus temores se tornaram uma infeliz realidade para seu “colega” grego Mitsotakis. Este, pressionado pela imprensa grega e ridicularizado pela oposição, tem se mostrado incapaz de convencer a opinião pública de que suas medidas policialescas irão, de fato, conter os refugiados.
A população residente nas ilhas de Lesbos e Chios, desesperada com a nova onda, esmagada pela recente crise econômica, pela austeridade e que não enxerga perspectiva de uma pronta solução nas medidas anti-imigração do primeiro-ministro, entrou, na última semana, em estado de rebelião, atacando os canteiros de obras dos novos campos de refugiados, prédios públicos, postos policiais e até quartéis do exército. Além de ter que aumentar as patrulhas nas fronteiras, Mitsotakis teve que deslocar batalhões de choque para os quatro dias de enfrentamento com a população de Lesbos e Chios. A única coisa que o atual governo grego tem a oferecer para os refugiados e para seus próprios governados é repressão policial:
“É o único plano que pode ser implementado.”, disse Mitsotakis em uma reunião de gabinete[1], no último 27 de fevereiro se referindo ao plano anti-imigração e a contenção das rebeliões em Lesbos e Chios.
Mais um reflexo da crise mundial do capitalismo
Os atuais acontecimentos, bem como os de 2015, são resultado do aprofundamento da crise mundial do capitalismo, que se iniciou em 2008 e até hoje não encontra nenhuma perspectiva de solução. Uma das maneiras de a burguesia imperialista e seus sócios manterem sua hegemonia de classe e lucros diante da catástrofe econômica que se aprofunda é a destruição em massa de forças produtivas por meio de guerras. Esses conflitos fomentam as indústrias bélica e de reconstrução e ainda permitem o domínio sobre mercados e recursos naturais. Como nesta atual fase do capitalismo está descartada uma guerra mundial em larga escala, o imperialismo promove dezenas de guerras locais. Uma guerra mundial poderia resultar na destruição do planeta em poucos dias ou na eclosão de vagas revolucionárias como as que varreram o mundo ao final das duas grandes guerras; esse está longe de ser o desejo do imperialismo. Um exemplo de regionalização de conflitos é a guerra na Síria, que todos os anos, desde seu início, produz um número formidável de refugiados, entre outras catástrofes.
A Europa – que enche os seus cofres com essas guerras vendendo armas, munição, equipamentos e suprimentos – se mobiliza mais uma vez para fortificar as entradas do continente. Os governos europeus, funcionários diretos do grande capital, ao passo que aplicam as medidas de austeridade que esfolam os jovens e trabalhadores conterrâneos seus, não poupam recursos públicos para conter a imigração em massa. O governo grego, por exemplo, pretende despender milhões de euros, mais o custo de 4 anos de manutenção, com a absurda instalação de uma barreira flutuante de quase 3 km, entre os litorais grego e turco. Ela se ergueria mais de 48 centímetros acima do nível da água, com luzes e arame farpado. Isso além das despesas geradas pelo aumento do efetivo de tropas do exército, polícia de choque e guarda costeira. Essa barreira oceânica, considerada por especialistas cara demais e pouco eficaz, irá aumentar o sofrimento de quem busca por segurança e socorro enfrentando as águas revoltas do Egeu.
É interessante observar que essa medida parte do governo de um país que é um dos elos mais fracos da corrente da União Europeia e que ainda sofre com os efeitos devastadores da recente crise da dívida pública. Mesmo assim, não se pensa em poupança de recursos quando a questão é a defesa da tranquilidade de seus sócios maiores. Comovida com os esforços dos seus “funcionários” gregos, a União Europeia prometeu 700 milhões de euros para somar aos esforços de conter os refugiados. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, após sobrevoar a fronteira greco-turca, garantiu que fornecerá todo apoio necessário ao país que chamou de “escudo da Europa”:
“Nossa prioridade é assegurar que a ordem seja mantida na fronteira externa da Grécia, que também é a fronteira da Europa. (…) Tenho pleno comprometimento em mobilizar todo o apoio operacional necessário às autoridades gregas(…) Aqueles que tentarem pôr à prova a união da Europa vão ficar decepcionados.” (Deutsche Welle (DW) – 4/3/20)
Ao mesmo tempo em que ladram bravatas, tentam aterrorizar os jovens e trabalhadores sussurrando-lhes aos ouvidos que essas pessoas que estão a caminho – vulneráveis e despojadas de tudo – terão alguma condição de roubar seus empregos e gozar de pleno acesso à seguridade social. Esse papel, escroques conservadores como o ex-premier e ministro do Interior italiano Matteo Salvini e o grego Mitsotakis, têm cumprido com eficiência. Esse cenário acaba se mostrando fértil para grupelhos de extrema-direita surgirem das profundezas do lixo da história. São demagogos e a ineficácia do seu programa – repleto de ódio nacionalista, racismo e xenofobia – em resolver essa ou qualquer crise deve ser firmemente desmascarada diante dos olhos da juventude e da classe trabalhadora.
O verdadeiro inimigo é o sistema
Desse jogo de cartas marcadas, a conclusão que se tira é de que não há saída para essa crise humanitária, dentro dos limites do sistema capitalista em sua fase superior. Os políticos do establishment, sejam eles liberais polidos, brutamontes conservadores ou social-democratas reformistas, apresentam sempre as mesmas propostas de guerras, repressão policial e militarização das fronteiras ou “acolhimento” em campos de refugiados superlotados e no meio do nada. Sejam quais forem as suas cores partidárias, eles dão as mãos sempre que é colocada a questão de salvaguardar os interesses dos grandes capitalistas. Correndo por fora, estão os grupelhos fascistas, animados pelo medo e incertezas da população, porém desprovidos de uma base social para lhes apoiar e manchados pelas trágicas experiências históricas. Esses aí, a despeito do discurso populista, em última instância, sempre se puseram a serviço dos donos dos grandes meios de produção: “(…) Se você não os conhece, veja só o quanto vale, esse belo movimento que eles chamam de social. Movimento de milhões, mas de muitos milhões, dos bolsos dos patrões aos bolsos dos assassinos (…)”, como canta o italiano Fausto Amodei em sua paródia antifascista Se non li conoscete.
Dentro desse processo, as maiores vítimas são os refugiados. Neste momento, a poderosa máquina econômica da União Europeia, mesmo combalida pela crise econômica, o Brexit e outras tensões no continente, está lançando mão de todos os seus recursos para trucidá-los; os mesmos parasitas que obrigam os governos a aplicar sua agenda de austeridade, que fomentam guerras, que se nutrem dos juros escorchantes da dívida pública, que descartam toneladas de comida enquanto centenas de milhares morrem de fome. Eles são os verdadeiros inimigos. Os que sustentam esse sistema de exploração que põe em questão a própria existência da humanidade.
Diante disso, ações ativistas e individuais como a da capitã alemã Carola Rackete, que foi presa pela guarda-costeira italiana em 2019, ao desembarcar à força na ilha de Lampedusa 53 refugiados que transportava em seu barco, embora corajosas, não atacam o ponto central do problema. Esse sistema precisa ser superado internacionalmente, por um poderoso movimento que una todos os trabalhadores, independentemente da nacionalidade etc. Somente os trabalhadores, organizados em um partido operário revolucionário, poderão levar a termo o cumprimento desta tarefa histórica: construir por meio do socialismo uma sociedade em que não haverá a exploração do homem pelo homem, dos escombros desse sistema degenerado, garantindo assim o futuro da humanidade. Um mundo onde não haja guerras, fronteiras ou refugiados, onde os povos poderão dispor de si próprios e serem solidários entre si.
Referências:
[1]Associated Press News e Agence France-Presse (AP e AFP) – 28/2/20