Donald Trump anunciou ontem sua decisão de retirar os EUA do acordo nuclear com o Irã. Em um discurso repleto de mentiras, distorções e pura hipocrisia, ele anunciou que sua administração vai impor o “mais alto nível de sanções econômicas” ao Irã.
Argumentando com uma enxurrada de falsidades sobre as ambições e o comportamento do Irã na região, Trump disse: “(…) está claro para mim que não podemos evitar uma bomba nuclear iraniana sob a estrutura decadente e podre do acordo atual. O acordo com o Irã é essencialmente defeituoso. Se não fizermos nada, sabemos exatamente o que vai acontecer. Em um curto período, o principal patrocinador do terror mundial estará à beira de adquirir as armas mais perigosas do mundo. Portanto, estou anunciando hoje que os EUA vão se retirar do acordo nuclear com o Irã”.
De acordo com as sanções que estão sendo restabelecidas, as empresas estrangeiras terão de 90 a 180 dias para encerrar suas operações no Irã ou serão objeto de sanções em suas operações nos EUA. Esse será um grande golpe para a economia iraniana, que já se encontra em estado lamentável. Desnecessário dizer que a maior parte da pressão vai recair sobre o povo iraniano, que já padece de altos níveis de desemprego e pobreza.
Quem são os agressores?
Pintando um quadro do Irã como um estado terrorista diabólico, Trump acusou o país entre outras coisas de ser “o principal estado patrocinador do terror”, partidário de Al Qaeda e do Talibã e de realizar “atividades sinistras na Síria, no Iêmen e em outros lugares ao redor do mundo”.
O único problema é que os fatos nos contam uma história diferente. Antes da criminosa guerra no Iraque, da intervenção ocidental na Síria e do ataque ao regime de Gaddafi, o fundamentalismo islâmico não tinha pontos de apoio em qualquer desses países. Além de matar milhões de pessoas, a intervenção no Oriente Médio desestabilizou toda a região e levantou o espectro da barbárie jihadista em todos os lugares.
Só no Iraque, mais de 1 milhão de pessoas, conforme informado, morreram em consequência da ocupação do país pelos EUA. A destruição do estado iraquiano depois da invasão americana de 2003 e a implementação de políticas sectárias levaram diretamente à ascensão do fundamentalismo islâmico, que por coincidência foi apoiado pela Arábia Saudita para conter a influência do Irã no país.
Na Síria, a intervenção ocidental foi apoiada pela Arábia Saudita, pelos Estados do Golfo e pela Turquia, que apoiavam forças jihadistas, incluindo a Al Qaeda. Não havia nada de moderado nos chamados rebeldes moderados que o Ocidente apoiou para estrangular a revolução síria e derrubar o regime de Assad.
No Iêmen, os EUA e a Grã-Bretanha estão envolvidos na brutal guerra saudita que está empurrando milhões de homens, mulheres e crianças à beira da inanição. Não é nenhum segredo que essa campanha também se apoia na Al Qaeda, que aproveitou o vácuo de poder no país para estabelecer grandes áreas sob o seu controle no leste do Iêmen.
Do Afeganistão, onde os EUA ajudaram os antecessores da Al Qaeda a tomar o poder, à Síria, onde a CIA e os aliados dos EUA apoiaram organizações jihadistas no sequestro da revolução síria, o imperialismo americano sempre esteve na vanguarda da proliferação jihadista.
Os governantes dos países do Golfo e da Arábia Saudita estavam em clima de júbilo depois do anúncio de Trump. Muhammad bin Salman, príncipe coroado da Arábia Saudita, disse:
“O Irã utilizou os ganhos econômicos do levantamento das sanções para continuar suas atividades de desestabilização da região, em particular através do desenvolvimento de mísseis balísticos e do apoio a grupos terroristas na região”
Essas palavras fedem a hipocrisia. O apodrecido Reino Saudita, um regime cruel e bárbaro baseado na mesma ideologia da Al Qaeda e do Estado Islâmico (EI), é o maior financiador do fundamentalismo islâmico no mundo. Grupos como Al Qaeda e EI não sobreviveriam um só dia sem os bilhões de dólares que fluem da Arábia Saudita.
Em Israel, Benjamin Netanyahu também estava de humor eufórico depois do anúncio de Trump:
“Israel se opôs ao acordo nuclear desde o início porque dissemos que, em vez de bloquear o caminho do Irã até uma bomba, o acordo na verdade pavimentava o caminho do Irã a um verdadeiro arsenal de armas nucleares e isto dentro de alguns anos”
Ele esquece convenientemente de dizer que os únicos países que têm armas nucleares no Oriente Médio são Israel e os EUA (com armas nucleares instaladas na Turquia). Ao contrário do Irã, Israel vem atacando continuamente outros países, lançando golpes no Líbano, na Síria, no Egito e, naturalmente, nos territórios palestinos, que se converteram em uma prisão do povo palestino. Desde o início da guerra civil na Síria, Israel esteve bombardeando locais no país e apoiou grupos islâmicos em suas fronteiras contra o Hezbollah. Netanyahu está determinado a provocar uma guerra com o Irã, mais do que qualquer outra coisa para desviar a atenção dos casos de corrupção e da crescente oposição contra ele.
A reimposição de sanções ao Irã não é nada menos que uma declaração de guerra ao país e seu povo, que devem enfrentar consequências severas. Ao contrário do ocidente e seus aliados na região, o Irã não atacou outro país nos tempos modernos. O imperialismo dos EUA, por outro lado, tem sido a força mais reacionária e contrarrevolucionária na região desde a II Guerra Mundial. Junto aos seus fantoches em Riad e Jerusalém, os EUA foram o bastião da reação contra todos os povos do Oriente Médio.
Depois da Guerra do Iraque em 2003, devido ao colapso do regime de Saddam, a influência do Irã aumentou na região. Com os dedos queimados pelas derrotas no Iraque e no Afeganistão, de onde o imperialismo dos EUA teve que se retirar com uma conta de US$ 1 trilhão em despesas e uma oposição massiva à guerra em casa, a opção de intervenção militar direta, com soldados em solo, foi temporariamente descartada. O resultado mais tangível disso foi a retumbante derrota do imperialismo dos EUA na Síria, onde os grupos apoiados pelos iranianos formam agora a força mais poderosa em solo.
Foi sobre essa base que o acordo nuclear com o Irã foi alcançado em 2015. Vendo a mudança no equilíbrio de forças, os EUA necessitaram da ajuda do Irã para estabilizar a região. Mas é exatamente esse fato que Trump é incapaz de aceitar. Ladeado pelo furioso falcão anti-Irã e novo Conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, e pelo Secretário de Estado, Mike Pompeo, Trump está determinado a voltar o relógio para a época em que os EUA podiam entrar e sair de qualquer país do Oriente Médio como desejassem.
O mesmo vale para Netanyahu e Mohammad bin Salman. O que querem dizer quando apontam para o “comportamento agressivo do Irã” não é que o Irã esteja atacando realmente outros países, mas que a presença do Irã restringe suas capacidades de atacar e intervir em qualquer país que desejem. Mas nada disso será mudado por uma nova rodada de sanções. Pelo contrário, a declaração de guerra econômica ao Irã só vai levar a uma maior instabilidade, da qual os EUA podem sair derrotados.
Trump ressaltou que a experiência da Coreia do Norte mostra que seu método funciona, mas se seu método mostra algo, é o oposto. Longe de forçar a Coreia do Norte à mesa de negociações, foi a Coreia do Norte, um país pequeno e pobre, que, ao adquirir bombas nucleares, logrou forçar o estado mais poderoso do mundo à mesa de negociações depois de décadas de agressão e sanções. Se há aqui alguma lição para o regime iraniano, esta seria que devia ter adquirido uma bomba nuclear ainda mais cedo. Tenhamos a segurança de que é exatamente isso o que os partidários da linha dura em Teerã vão defender.
EUA vs Europa
A declaração de Trump causou grande consternação nos países europeus, que estavam fazendo importantes investimentos no Irã. Além de importantes acordos petrolíferos assinados por empresas francesas e italianas de petróleo, as empresas europeias Airbus e ATR fecharam negócios no valor de mais de US$ 22 bilhões. As potências europeias estavam confiantes na perspectiva de novas incursões no grande mercado do Irã, em sua maior parte inexplorado. O presidente francês, Macron, tuitou:
“A França, a Alemanha e o Reino Unido lamentam a decisão dos EUA de abandonar o JCPOA. O regime de não-proliferação nuclear está em jogo”
A chanceler alemã, Angela Merkel, a primeira-ministra do Reino Unido, Theresa May, e Macron emitiram uma declaração conjunta depois de um contato telefônico trilateral na sequência do anúncio de Trump. Os três países disseram que “continuariam comprometidos em garantir que o acordo seja mantido” e que “garantiriam que isso continue sendo o caso, inclusive assegurando os contínuos benefícios econômicos ao povo iraniano que estão vinculados ao acordo”.
Para os cachorrinhos de estimação britânicos do imperialismo dos EUA e para Macron, que andou no mês passado lambendo as botas de Trump, o anúncio veio como um balde de água gelada. No entanto, independentemente do quanto os europeus desejem permanecer no acordo, a estrutura das sanções dos EUA tornará muito difícil, senão impossível, manter o acordo nuclear com o Irã. Isso aumenta as crescentes tensões entre os EUA e a Europa. Desnecessário dizer que essa divisão somente vai enfraquecer o ocidente e fortalecer a posição do Irã.
Irã
O cúmulo da demagogia grosseira do discurso de Trump foi quando ele apelou ao povo iraniano dizendo que “o povo da América está com vocês”. Mas o que está claro para cada homem, mulher e criança no Irã hoje é que o governo dos EUA nunca será confiável.
O presidente iraniano, Hassan Rouhani, tentou aproveitar esse estado de ânimo imediatamente depois do discurso de Trump:
“O Irã é um pais que adere aos seus compromissos. E os EUA são um país que nunca aderiu aos seus compromissos. Nossa história nos últimos 40 anos, e mesmo antes disso, indicou que os americanos, falando de sua abordagem em relação ao povo da região e ao povo do Irã, sempre adotaram uma abordagem hostil”
O efeito das novas sanções vai ser devastador para a economia iraniana, que já se encontra em mau estado. Desde janeiro a moeda iraniana mergulhou para uma baixa recorde de 65 mil rials por dólar, caindo de 57,5 mil no final de abril e de 42,89 mil no final de 2017. Alguns experts acreditam que a moeda iraniana pode cair até 110 mil rials por dólar americano, levando a uma inflação em espiral que vai afetar os mais pobres mais que todos.
O efeito disso será o fortalecimento da facção linha dura do regime, que poderá dizer “eu avisei”. Enquanto isso, o movimento de oposição em ascensão, que está nas ruas desde janeiro, se verá minado, uma vez que as pessoas se unirão em apoio ao regime contra o imperialismo americano.
Nenhum plano
Na verdade, não parece haver qualquer plano ou proposta alternativa realista para substituir o acordo nuclear. Isso foi assinalado por muitas figuras importantes do establishment, não somente nos EUA como também em Israel. O Secretário de Defesa dos EUA, James Mattis (que disse uma vez que os três principais problemas de política externa dos EUA eram “o Irã, o Irã e o Irã”), disse que considerava o acordo atual “bastante sólido”.
Enquanto isso, o Chefe do Estado-Maior Conjunto, general Joseph Dunford, disse que o “Irã está cumprindo suas obrigações” no Plano de Ação Conjunto Global (JCPOA) e que uma decisão dos EUA de abandonar o acordo “teria impacto na disposição de outros de assinar acordos”. Declarações semelhantes foram feitas por centenas de pessoas dentro das instituições políticas, de inteligência e militares dos EUA. Na verdade, a oposição à quebra do acordo foi um elemento-chave na demissão do general H. R. McMaster e de Rex Tillerson do círculo íntimo de Trump.
Enquanto Benjamin Netanyahu estava falando de “milhares” de “arquivos nucleares secretos” revelando que o Irã estava rompendo o acordo, o chefe de gabinete das forças de defesas de Israel, general Gadi Eisenkot, disse que o acordo “com todas as suas falhas, está funcionando”. Declarações similares foram feitas por dezenas de autoridades de segurança israelenses, incluindo o ex-primeiro-ministro Ehud Barak, que disse que abandonar o acordo seria um erro.
Mas para Trump e Netanyahu isso não interessa. Suas ações estão determinadas por considerações extremamente estreitas e míopes. Netanyahu está lutando por sua própria sobrevivência política e deve provocar um conflito militar com o Irã para conseguir isso. Mas, ao avançar nessa direção, ele não está apenas jogando gasolina nas chamas que ardem na Síria, no Iraque e no Líbano, também está, até certo ponto, desestabilizando o próprio Estado de Israel. Além disso, o Irã não é a Faixa de Gaza, que está sendo morta de fome há décadas. O Irã é uma potência militar e industrial relativamente forte, o que pode tornar difícil até mesmo para Israel enfrentá-lo em um confronto militar direto.
Trump é um jogador fanfarrão. Pensa que pode intimidar e obrigar o Irã a fazer um acordo com ele, mas, assim como os israelenses, pode ter uma surpresa. Diferentemente dos EUA, de Israel ou da Arábia Saudita, que não têm mais a capacidade de desdobrar grandes quantidades de tropas em outros países da região, o Irã tem centenas de milhares de milicianos devotados e endurecidos pela batalha, que vão desde o Golfo Pérsico até o Mediterrâneo. Em última análise, este será o fator decisivo e os EUA mais uma vez terão que recuar. Enquanto isso, as ações de Trump vão levar a ainda mais instabilidade e sofrimento para as massas do Oriente Médio.