Depois de quase três décadas no poder, Omar al-Bashir foi derrubado como presidente do Sudão por protestos populares. As massas foram às ruas no que só pode ser descrito como um movimento revolucionário, embora sem liderança ou demandas claras. O próprio Bashir foi preso e está sendo “mantido em lugar seguro” pelos militares.
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Esta manhã, a notícia da remoção de Bashir provocou uma explosão de alegria nas ruas empoeiradas da capital. Algumas pessoas gritavam: “Ele caiu, vencemos”. Perguntado por um repórter da agência de notícias Al Jazeera o que isso significa para ela, uma manifestante respondeu: “Significa tudo”. Outro manifestante disse: “Não é só Bashir que está deixando o cargo. Também se trata de que todo o regime seja derrubado e tudo o que veio com ele e 30 anos de opressão. Então, o que queremos é uma transição à democracia. Queremos um governo civil e a entrega da autoridade e do poder ao povo”.
Da euforia à raiva renovada
Mais tarde, durante o dia, ficou claro que os militares estavam tentando assumir o controle. O Ministro da Defesa, Awad Ibn Ouf, disse que o exército havia decidido supervisionar um período de transição de dois anos a ser seguido por eleições. Enquanto isso, a constituição foi suspensa, foi imposto um estado de emergência para os próximos três meses e um toque de recolher que começa às 10 horas da noite. O governo foi dissolvido, assim como o parlamento e os governos estaduais.
Isso é inaceitável para os principais grupos de oposição, como a Sudanese Professionals Association (SPA) e o movimento da juventude Girifna. Eles estão exigindo um governo verdadeiramente civil e pediram a continuação dos protestos na frente dos quartéis militares. As pessoas estão agora gritando slogans contra o governo militar, contra o estado de emergência e contra o toque de recolher. Pode-se ouvir o povo cantando “Não aceitamos”. As ilusões que existiam no exército, e que foram promovidas pelo SPA e outras forças da oposição, estão se dissipando rapidamente.
Por que o exército interveio para derrubar Omar al-Bashir? Nos últimos dias começaram a aparecer divisões entre os soldados, com oficiais subalternos, de um lado, e as forças de segurança (Serviços Nacionais de Inteligência e Segurança – NISS, e as milícias islâmicas), de outro. O NISS matou cinco soldados que tentavam proteger o povo contra a repressão. Durante dois incidentes, os soldados dispararam contra esses bandidos do estado. Mas também dentro do próprio exército surgiu uma fenda entre os soldados e seus oficiais subalternos e o alto escalão do exército.
Os oficiais de alto escalão claramente temiam uma rebelião dos oficiais de baixo escalão “no terreno”, desde que estão mais próximos do povo. Ansiosos por não perder o controle de seu aparato, temendo a quebra da cadeia de comando, o alto comando do exército necessitava agir e agir rápido. Isso explica por que os generais do exército, os pilares tradicionais do regime de Omar al-Bashir, tomaram a iniciativa de afastá-lo do poder, de prender os principais funcionários do governo e seus familiares e anunciar a formação de um “governo de transição”. Ao fazê-lo, esperam manter intacta a coesão do aparato do estado (garantindo seus privilégios, vantagens e interesses empresariais), para proteger a essência do regime e desativar o movimento de massa.
Reformando a partir de cima, esperam evitar uma revolução a partir de baixo. Mas algumas lições da Primavera Árabe não passaram despercebidas pelas massas no Sudão. Muitos dizem que não querem que os militares cheguem ao poder e roubem sua revolução, como no Egito. As massas no Sudão, assim como na Argélia, querem que todo o regime seja desmantelado. Assim, podemos dizer que uma nova etapa da revolução Sudanesa começou hoje. Depois de tantos sacrifícios, as massas não abandonarão facilmente as ruas por tal resultado.
O regime de Bashir
O regime de Bashir tem sua história de brutalidade. Em 2018, 5,5 milhões de sudaneses sofreram insegurança alimentar. Enquanto isso, Wikileaks revelou em 2010 que Bashir havia desviado 9 bilhões de dólares do dinheiro do petróleo do país para si mesmo e os havia escondido nos bancos do Reino Unido.
Bashir também é o único chefe de estado procurado pelo Tribunal Penal Internacional por crimes contra a humanidade, crimes de guerra e genocídio. Todos esses crimes dizem respeito a sua campanha de limpeza étnica em Darfur a partir de 2003, e que se expandiu subsequentemente aos estados sudaneses de Blue Nile e Southern Kordofan. Enquanto isso, a guerra civil sudanesa, que durou até 2005, levou à morte de aproximadamente dois milhões de pessoas. Pobreza e guerra são, portanto, o legado de Bashir. Ele não se perderá.
Os protestos que finalmente levaram a sua derrubada começaram em meados de dezembro de 2018. O governo havia anunciado o fim dos subsídios aos bens básicos. Essa foi uma tentativa de combater a inflação que estava em 122% – a segunda mais alta do mundo.
Essa política foi realizada sob as instruções do FMI em 2017, logo após o governo Obama ter levantado as sanções econômicas ao Sudão. Foi uma tentativa do imperialismo estadunidense de trazer a economia sudanesa para a sua esfera de influência. No entanto, em vez de alcançar um relacionamento confortável com esse criminoso de guerra, o imperialismo estadunidense inadvertidamente desencadeou o movimento que levou à queda de Bashir.
Em 19 de dezembro de 2018, a cidade nordestina de Atbara irrompeu em protestos. Os manifestantes incendiaram a sede do governante Partido do Congresso Nacional. A polícia militar respondeu com gás lacrimogêneo e munição real. Os protestos começaram aqui e só gradualmente se espalharam à capital devido ao intenso bloqueio da segurança.
Desde então, os manifestantes vêm tomando sistematicamente as ruas de todo o país para protestar contra os aumentos dos preços, os cortes dos subsídios aos produtos básicos e a escassez de combustíveis. Uma vez espalhados os protestos à capital, Khartum, as demandas se elevaram ao desmantelamento total do regime de Bashir.
A repressão não sufocou os protestos
A resposta do governo foi impiedosa. Mobilizou a polícia e as forças paramilitares contra os manifestantes que foram espancados e atingidos com munição real, balas de borracha e gás lacrimogêneo. Acredita-se que cerca de 100 pessoas pelo menos tenham morrido, com muitas mais feridas. Desde o sábado passado, 22 pessoas foram mortas, em uma última e desesperada tentativa de Bashir para intensificar a repressão mortal aos protestos. Milhares de pessoas também foram presas pelos serviços de segurança, incluindo acadêmicos da universidade de Khartum, líderes da oposição e jornalistas, todos sem permissão para visitas da família, dos advogados ou médicos.
Em 22 de fevereiro de 2019, o governo declarou um estado de emergência e impôs toques de recolher em alguns locais. Escolas e universidades foram fechadas. Os jornais nacionais foram censurados ou fechados. A internet foi interrompida e várias empresas de telefonia restringiram acesso ao WhatsApp e a outros sites da mídia social.
Contudo, isso não deteve os protestos, que continuaram inabaláveis. Mais recentemente, milhares de pessoas acamparam do lado de fora do QG do exército no centro de Khartum – com mínimas condições de distribuição de água e atenção médica e sob os disparos esporádicos de armas de fogo pesadas a partir dos serviços de segurança – exigindo a remoção de Bashir da presidência. Isso provou ser a palha que quebrou as costas do camelo.
Desde o início, os protestos foram orquestrados pela Sudanese Professionals Association (SPA). Trata-se de uma agrupação ilegal de sindicatos representando principalmente profissionais de classe média, como médicos, engenheiros, professores universitários, professores, jornalistas etc. A filiação ao SPA, embora secreta, foi submetida à repressão cruel de Bashir como resultado.
Essa liderança mostrou-se decidida diante da repressão, mas vaga em suas demandas. Os slogans dos protestos exigiam a queda de Bashir e “liberdade, paz e justiça”. Mas a necessidade de um governo que ponha a classe trabalhadora em primeiro lugar, como a única forma de se resolver os problemas que desencadearam esse movimento em primeiro lugar, ficou ausente das demandas.
No entanto, isso não ocorre por falta de envolvimento da classe trabalhadora nesse movimento revolucionário. Não foi por acaso que os protestos tenham começado em Atbara, que é a base nacional do sindicato dos trabalhadores ferroviários – o maior sindicato do Sudão.
Em 10 de março de 2019, a Aliança pela Restauração dos Sindicatos dos Trabalhadores Sudaneses anunciou que estava se juntando aos protestos para derrubar Bashir. Convocou todos os sindicatos que haviam sido dissolvidos pelo regime a remobilizar suas fileiras e se juntar aos protestos. E, em sua declaração, essa organização assinalou os enormes ataques contra os trabalhadores sob o regime de Bashir, incluindo as privatizações, os aumentos de preços, os cortes em licenças médicas, licenças maternidade e assim por diante.
Foi assinada uma Declaração de Liberdade e Mudança pedindo a derrubada de Bashir, não só pela SPA, mas também por um grupo chamado de Forças de Consenso Nacional, que inclui o Partido Comunista Sudanês. Banners e cartazes da Associação dos Desempregados do Sudão também foram vistos nas manifestações.
Mulheres revolucionárias na vanguarda
Significativamente, foi relatado que até 70% dos manifestantes são mulheres. Isso não é por acaso. As revoluções anteriores do Sudão foram iniciadas por mulheres e elas sempre tiveram um papel decisivo. Como nos lembra a jornalista Zeinab Mohammed Salih, “Os protestos das mulheres não são um fenômeno novo no Sudão. Em 1946, 10 anos antes da independência, a primeira mulher médica do país, Khalida Zahir, foi às ruas contra o domínio britânico, sendo presa e açoitada”. Elas também têm muito a ganhar com o fim da ditadura e das leis obscurantistas. Todos os anos, entre 40.000 e 50.000 mulheres são presas e açoitadas por vestirem “roupas obscenas” (calças), enquanto 90% das mulheres sudanesas são genitalmente mutiladas. Um movimento que mobiliza as camadas mais oprimidas e marginalizadas da sociedade, como o são as mulheres sudanesas, é um movimento genuinamente revolucionário.
Sob qualquer regime repressivo, o movimento revolucionário inicial tende à unidade através de linhas de classe. Das camadas mais oprimidas às organizações da classe trabalhadora, aos liberais de classe média, todos podem apoiar a demanda de dar um fim à ditadura.
No entanto, o que importa agora é que as organizações da classe trabalhadora não sejam apanhadas na euforia que vem com a derrubada de um tirano. Devemos lembrar que o que causou esses protestos foram as terríveis condições de vida que são uma consequência direta do funcionamento da economia capitalista, e a faísca que acendeu o pavio foi a lista de medidas draconianas exigidas pelo FMI.
Se é para enfrentar os problemas fundamentais da sociedade sudanesa, o que se requer é um governo dos trabalhadores, baseado em uma democracia dos trabalhadores nas cidades e locais de trabalho, aliados à população rural pobre. Tal governo rejeitaria as exigências do imperialismo, seja dos EUA, da China, da Arábia Saudita ou de qualquer outro poder. Tal governo administraria a economia com base nas necessidades em vez do lucro. Esta é a única forma de se assegurar a paz e o pão para o povo sudanês comum.
Nenhuma solução sob o capitalismo
Desde janeiro, antigos aliados de Bashir estiveram lutando para se cobrirem diante desse movimento. Em 1 de janeiro de 2019, alguns dos grupos e partidos menores aliados do regime exigiram que um governo de transição assumisse o controle até as próximas eleições em 2020, quando Bashir deveria renunciar.
Enquanto isso, as potências imperialistas estão observando o Sudão como falcões. A China há muito que tem um interesse econômico significativo no Sudão, que foi um dos primeiros países africanos em que investiu pesadamente. Como mencionado acima, os EUA recentemente tentaram tirar o Sudão da China e devolvê-lo a sua própria esfera de influência. Entretanto, foi à Rússia e à Arábia Saudita que Bashir recorreu para apoio diante desses protestos no início do ano. Todos esses abutres estarão colocando suas garras nessa situação caótica, tentando trabalhar pelo resultado mais favorável aos seus próprios interesses imperialistas.
A conversa atual é sobre um conselho de transição, que represente “todos os elementos da sociedade sudanesa” para administrar os assuntos durante alguns anos até que uma eleição geral possa ser convocada. Seria simplesmente uma tentativa de ganhar tempo para os gangsters fazer alianças, distanciar-se dos crimes do passado e logo continuar a administrar o país no interesse das grandes empresas e deles mesmos. Nada seria resolvido para a maioria das pessoas.
Agora é o momento para as organizações da classe trabalhadora no Sudão atacarem de forma independente. Não podemos ter nenhuma confiança nesse conselho de transição. O poder está nas ruas do Sudão. Foram as mobilizações de massa que forçaram Bashir a deixar o poder e que dividiram o exército. O poder deve ser transferido à classe trabalhadora em aliança com a população rural, através de conselhos e organizações locais.
Devemos aprender as lições da história do Partido Comunista Sudanês. Em 1964, e mais uma vez em 1969, esse partido apoiou movimentos e golpes que estabeleceram governos que falavam em nome de “todos os elementos da sociedade sudanesa”, mas que depois proibiram e atacaram brutalmente os comunistas e ativistas da classe trabalhadora. A lição é que os trabalhadores e pobres rurais devem se valer por si mesmos, com um programa independente que exija todo o poder para os trabalhadores. Este é o único caminho a seguir agora.