Sudão: a contrarrevolução ataca

A Revolução Sudanesa foi uma inspiração para trabalhadores, mulheres e jovens de todo o mundo. As mulheres em particular revelaram enorme potencial revolucionário. Tudo o que era progressista na sociedade sudanesa emergiu para mostrar ao mundo que a sociedade pode ser mudada. Mas também havia um lado mais sombrio e este agora levantou sua feia cabeça da forma mais brutal possível. Por que isto está acontecendo?

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Desde a segunda-feira, a mídia social foi inundada com vídeos e fotos de milicianos da reacionária RSF assolando Cartum. Empoleirados na traseira de picapes ou a pé em grupos, milicianos armados têm detido pessoas de forma aleatória, derrubando barricadas, pilhando lojas e espancando ou açoitando manifestantes e estuprando inúmeras mulheres. Ao mesmo tempo, o Conselho Militar de Transição (TMC), interrompendo as negociações com a oposição, anunciou um governo de transição e eleições dentro de nove meses.

A contrarrevolução nunca desperdiça tempo. Desde o início de sua contraofensiva, dia 5 pela manhã, grupos de homens armados, liderados por milicianos da Rapid Support Forces (RSF), perseguiram qualquer um que se parecesse com os revolucionários na capital do Sudão. Pelo menos 100 pessoas foram informadas como mortas e centenas mais feridas até agora, embora os números reais sejam provavelmente muito mais altos. Muitos dos corpos foram lançados no Nilo, como parte de uma campanha para aterrorizar as massas.

Houve também vários informes de mulheres sendo violadas, abertamente nas ruas, por gangues armadas. Segundo uma reportagem, milicianos invadiram uma clínica médica, estuprando as praticantes e batendo em todos os outros. Isto é claramente dirigido como uma mensagem a todas as mulheres sudanesas que ousaram sair e desafiar um sistema que as condenou à mais abjeta opressão durante gerações. Quanto mais poderosa e generalizada é uma revolução, mais sangrenta e brutal deve ser a contrarrevolução para acabar com ela.

A barbárie da Junta

Os líderes da Junta sabem muito bem que a revolução desencadeou forças poderosas de dentro da massa da população, que passaram a perceber sua própria força. Portanto, necessitavam atacar o mais duro possível antes que a revolução tivesse a chance de se reorganizar. Seu objetivo é aterrorizar, desorientar e desmoralizar o movimento, antes que tenha a chance de voltar a se levantar.

Tudo isso foi, evidentemente, cuidadosamente planejado semanas antes, enquanto os milicianos aumentavam lentamente sua presença por toda a cidade. A jornalista Yousra Elbagir do Canal 4 tem uma série muito interessante de tuítes onde ela cita conversas com um membro da agência de inteligência que desertou:

“Finalmente entrei em contato com minha fonte de inteligência (um oficial que desertou do NISS), ele diz:

“’Isso tudo é um ataque planejado pelo RSF, NISS, milícia da Polícia do Povo, Milícia da Segurança do Povo, Milícia da Defesa, Milícia da Segurança Estudantil e pela Milícia Islâmica Abdel Hai. Eles formaram uma força de 10.000’”.

“Ele me perguntou sobre o número atual de mortos (ele não tem nenhum acesso a internet devido ao blackout).

“Quando eu disse 40 pessoas, ele suspirou e disse:

“Isso não é nem um quarto do número de pessoas assassinadas”.

“Ele diz: ‘algumas pessoas foram espancadas até a morte e lançadas no Nilo, algumas foram baleadas várias vezes e lançadas no Nilo e outras foram cortadas com facões e lançadas no Nilo. Foi um massacre’.

“Ele diz que, quando as forças entraram no local do acampamento, entraram na clínica improvisada e estupraram duas médicas.

“Ele diz que as forças em seguida se dirigiram às damas do chá e começaram a bater nelas. Eles gritavam ‘civil ou militar?’ enquanto as espancavam.

“Ele diz que o exército foi retirado do local a partir das 16 horas do domingo. As ordens para sua retirada vieram do Conselho Militar de Transição.

“Os veículos do exército que guardavam as entradas foram substituídos pelos veículos da Rapid Support Forces (…)

“Ele viu soldados do exército em lágrimas. Oficiais de escalão médio e baixo disseram-lhe que o Conselho Militar de Transição não os representava.

“Houve, a quatro dias atrás, ordens vindas do alto para despojar o exército de suas armas. Alguns invadiram armazéns de armas e os encontraram vazios”.

Ao mesmo tempo em que essa suja operação está sendo realizada, o TMC anunciou que está implementando um governo de transição e organizando eleições dentro de nove meses. Claramente, isto visa minar a alternativa política proposta pela liderança do movimento, que vinha insistindo em um período de transição mínimo de três anos (!) sob um “governo tecnocrático”. O problema com esta demanda é que ela não satisfaz as necessidades das massas que desejam democracia agora e não dentro de três ou quatro anos.

A demanda por um período de três anos surgiu originalmente quando o regime estava levantando a ideia de um período de quatro anos. Ao oferecer eleições rápidas, o TMC está agora habilmente tentando se mostrar mais democrática do que a Associação Profissional Sudanesa (SPA), que tem sido a principal força por trás da revolução até agora.

Também estão tentando isolar as camadas mais radicais e revolucionárias do movimento. O partido Ummah, um partido burguês islâmico semilegal que até agora fazia parte das Forças para a Liberdade e Mudança (FFS), lideradas pelo SPA, mostrou sinais de reconciliação com o regime e se manifestou em apoio das eleições. Isso somente vai revelar sua verdadeira face como uma oposição conservadora, antirrevolucionária e leal do velho regime.

Com o poder nas mãos do TMC, no entanto, nunca haverá eleições totalmente abertas e democráticas. Se as eleições forem organizadas, isso somente ocorrerá depois que a camarilha dominante as manobrasse e manipulasse cuidadosamente, para garantir seu total controle do poder. Seriam eleições com uma oposição esmagada, com o controle total da mídia e dos sistemas legais e de justiça nas mãos do TMC, destinados a beneficiar Hemeti, Burhan e todo o resto das forças reacionárias.

O núcleo da contrarrevolução é formado por várias milícias reacionárias, em particular o RSF, que supostamente conta com milhares de tropas armadas em Cartum, recrutadas de camadas tribais criminosas e atrasadas. Esses jovens, frequentemente adolescentes, são recrutados das camadas mais baixas, mais oprimidas e analfabetas da sociedade e transformados em reacionários fanáticos. Isto revela a hipocrisia das potências ocidentais, como os EUA e a Grã-Bretanha, que estão derramando lágrimas de crocodilo sobre esses acontecimentos, enquanto o RSF é, de fato, a principal força mercenária que luta no Iêmen, apoiado pelos EUA e os britânicos e liderados pelos sauditas. Além do Iêmen, muitos soldados do RSF participaram nas atrocidades em Darfur e em outras partes do Sudão. Hoje, esses homens formam a tropa de choque da contrarrevolução, cães raivosos lançados para “limpar o convés” para a classe dominante restabelecer seu domínio.

Além disso, há chefões rurais, chefes tribais e outras figuras similares entre as quais Hemeti andou fazendo campanha, que lhe proporcionam soldados de infantaria. Essas camadas privilegiadas estão aterrorizadas com a revolução porque a veem como um desafio direto a sua forma bárbara e primitiva de governar. Hemeti esteve acumulando apoio entre essas camadas conservadoras tradicionais, apresentando-se com um defensor da “ordem e da tradição” contra os radicais “ateus” e imprudentes envolvidos na revolução. Finalmente, a contrarrevolução é apoiada pelo Egito e pela Arábia Saudita, cujas classes dominantes estão igualmente aterrorizadas com o poder da revolução, que estava se tornando uma inspiração em toda a região.

A revolução se detém, a reação toma a iniciativa

A Revolução Sudanesa foi uma revolução das mais fortes e sem dúvida a mais bem organizada na história recente da região. A valentia das massas sudanesas, com as mulheres pesadamente oprimidas na linha de frente, foi uma inspiração para as massas trabalhadoras em todas as partes. O SPA, em particular, desempenhou um papel fundamental, organizando ações radicais e tentando ampliar a luta. O heroísmo das pessoas que encabeçam o SPA não pode ser subestimado.

No entanto, faltou uma coisa e era um plano real de como avançar. Embora seja verdade que a revolução tenha sufocado completamente a classe dominante, tecnicamente, o movimento não derrubou Omar al-Bashir. Este foi o momento chave quando o SPA poderia ter organizado um movimento de greve generalizado, apelado às fileiras do exército para que se pusesse de seu lado de forma organizada e tomado pacificamente o poder sem nenhum derramamento de sangue!

Em vez disso, o TMC, que entrou no vácuo de poder que foi criado, removeu Bashir e arrebatou a vitória das mãos das massas. A principal razão que tornou isso possível foi que os líderes do SPA não tinham nenhum plano concreto para tomar o poder. Na sequência da queda de Bashir, o SPA não ofereceu qualquer alternativa além de negociar com o TMC, que se compunha de gente do regime de Bashir.

 

Por que, devemos perguntar, era necessário negociar com o TMC? Que papel isso desempenhou na revolução? O fato é que o único papel que as forças por trás do TMC desempenharam foi o de jogar com o tempo e atacar a revolução. Apesar disso, o SPA aceitou muitas das exigências do TMC, como o de reter o seu controle sobre as forças armadas e o Ministério da Defesa.

Durante as “negociações”, era demasiado claro que o TMC não estava interessado em alcançar qualquer tipo de acordo. Em vez disso, esteve jogando com o tempo até que finalmente deixou a mesa de negociações em 15 de maio depois que os protestos foram atacados pelas forças do RSF e várias pessoas foram assassinadas. E ainda assim os líderes do SPA não apontaram nenhuma nova saída além das negociações.

Na semana passada, como informamos, o movimento alcançou seu ponto mais alto quando o SPA organizou uma greve geral massiva. Esta foi a primeira greve geral política devidamente organizada durante anos e colocou claramente a questão do poder na agenda. Por todo o país, estava claro que uma situação de poder dual havia se desenvolvido, com o Estado e o SPA competindo pelo controle. De fato, todos os principais ministérios estavam seguindo a liderança do SPA durante a greve, assim como outros setores como os trabalhadores aeroviários, os trabalhadores portuários e assim por diante. A classe trabalhadora e os pobres haviam se levantado.

Nesse ponto, emitir um apelo para que as fileiras do exército se organizassem e se juntassem ao movimento, conectando os comitês de soldados e de trabalhadores em nível nacional e tomando a infraestrutura chave estratégica do país, teria sido uma operação relativamente fácil e poderia ter levado a uma transição relativamente pacífica. Milícias reacionárias como a RSF seriam facilmente desarmadas pelas massas armadas, apoiadas pelos soldados rasos.

Em vez disso, o que aconteceu foi que a greve terminou, com o SPA ameaçando segui-la com outra greve geral. Durante dois meses desde a queda de Bashir, as massas permaneceram mobilizadas nas ruas sem nenhum plano claro de ação. Aos seus olhos, mesmo que tenham finalmente organizado uma greve política geral muito poderosa e bem-sucedida, não se chegou a nenhum ganho concreto. Em tal conjuntura, a desmoralização pode começar a se instalar, em particular entre as camadas pequeno-burguesas e mais atrasadas politicamente. Tendo chegado a tal ponto, você avança ou recua; você não pode ficar parado.

A revolução deve derrotar a contrarrevolução!

Como explicou Trotsky em seus Escritos Militares:

“… se as premissas da revolução estão presentes, isto é, se existe uma situação revolucionária, se existe uma classe que está interessada na revolução e que constitua uma força decisiva, mas não existe um partido, uma organização que possa liderá-la, ou se este partido é fraco, se não tem um plano claro, então a mais favorável situação revolucionária pode terminar em fracasso”. (…)

“Uma revolução é uma combinação de acontecimentos gigantescos, uma revolução não pode ser fixada para um dado momento, não se podem distribuir papeis nela de antemão; mas quando uma situação revolucionária é criada, a classe revolucionária se confronta então com uma tarefa prática: ‘Tomar o poder!’ (…) Se se deixar escapar o momento, a situação pode mudar radicalmente e a desintegração pode se instalar entre as fileiras da classe revolucionária, com a perda da confiança em sua própria força…”. (A Situação Internacional e o Exército Vermelho. IV. Os acontecimentos na Alemanha no Outono de 1923)

É isso a que nos arriscamos a ver agora no Sudão. O fato é que, enquanto a contrarrevolução se preparava, a revolução não o fez. Hemeti passou os últimos meses construindo uma base política, consolidando-a como um inimigo da revolução, preparando-a para a tomada do poder. Enquanto isso, o SPA se recusou a construir um partido e se declarou uma força não-política! Hemeti manteve o controle das armas, enquanto o SPA se recusou a armar os manifestantes, mesmo quando sabiam que um ataque estava chegando. Ao SPA se apresentaram várias oportunidades para tomar o poder, mas não o fez. Hemeti então interveio de forma decisiva, reunindo todas as suas forças para dar um decisivo e poderoso golpe contra a revolução assim que viu o momento adequado.

Claramente, o objetivo dos homens do velho regime é dar um fim à Revolução Sudanesa, que, na sua opinião, toleraram durante muito tempo. Estavam aterrorizados com o poder da greve geral, mas também são astutos o suficiente para perceber que a revolução havia alcançado um ponto em que não sabia para onde ir em continuação. Viram sua chance e se moveram de forma rápida e decisiva. A iniciativa passou das mãos da revolução às mãos da contrarrevolução. Já vimos isso muitas vezes na história. As melhores oportunidades, como explicou Trotsky, podem ser perdidas.

Um dos principais generais de Franco, depois da derrota da revolução na década de 1930, declarou: “É necessário espalhar o terror. Temos de criar a impressão de domínio, eliminando sem escrúpulos ou hesitação todos aqueles que não pensam como nós”. Estas palavras explicam o que está acontecendo hoje no Sudão.

O poder estava ali para ser tomado na semana passada, mas quem estava ali para levantar essa palavra de ordem? A liderança emitiu apelos para que tudo se mantivesse “pacífico”, desarmando assim o movimento e entregando-o aos açougueiros do velho regime que estão muito felizes por ter essa “paz!”

No entanto, ainda não estamos no final da Revolução Sudanesa. A repressão atual pode ser o chicote da contrarrevolução que incita a revolução. O que acontecer nos próximos dias vai mostrar o caminho que vai seguir. Também é difícil de se avaliar o estado de ânimo no terreno. A internet foi bloqueada pelo regime, uma medida claramente dirigida para impedir a organização do movimento, mas também para impedir a divulgação de notícias. Existem alguns informes de protestos esporádicos nos bairros da capital e em outras cidades, mas também existem informes da repressão brutal se espalhando para outras partes do país.

As heroicas e corajosas massas do Sudão mostraram ao mundo mais uma vez – como seus irmãos e irmãs do Egito e da Tunísia em 2011 – que o mais despótico dos regimes pode ser derrubado quando os trabalhadores se levantam. Elas deram uma resposta aos cínicos e céticos, que sempre estão prontos a apontar o dedo para o “baixo nível de consciência das massas”. É “baixo” até que – dialeticamente – se torne alto. A ira reprimida das massas mais cedo ou mais tarde sobe à superfície e, quando isso acontece, parece surpreender todo mundo. Para os marxistas, no entanto, não há nenhuma surpresa, pois olhamos profundamente abaixo da superfície para os processos moleculares que ocorrem entre as massas oprimidas.

No entanto, o ponto é que não é suficiente que a ira venha à tona. Uma vez que as massas empreendam o caminho da revolução, precisam de uma liderança que esteja à altura das tarefas colocadas pela situação. Isso está faltando no Sudão. E agora as massas estão pagando um preço alto. A contrarrevolução golpeou.

Ainda não estamos prontos para tocar o réquiem da revolução. As massas mostraram uma enorme resiliência, e elas ainda podem se levantar e reagir. O que se deve fazer é abandonar todas as ilusões de que a revolução pode negociar com seus carrascos. É ou a vitória da revolução ou sua derrota nas mãos da contrarrevolução. Não há meios-termos.

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