Os protestos então se espalhando por todo o interior da Europa, da Polônia à Espanha, Alemanha, Suíça, Romênia e Grécia. Os agricultores organizam-se em um grande movimento e não hesitam em utilizar os métodos militantes mais ousados – em total contraste com os métodos “respeitáveis” a que estamos habituados a ver por parte das lideranças sindicais tradicionais. E eles estão obtendo vitórias, e milhões de trabalhadores estão aprendendo muito com isso.
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A classe dominante foi colocada em estado de alarme.
Sob esta pressão, Ursula von der Leyen1[atual presidente da Comissão Europeia]2 prometeu rejeitar a proposta que tramita no Parlamento Europeu de reduzir pela metade a utilização de pesticidas [proposta que faz parte da chamada Agenda 20303]. Ao mesmo tempo, os governos da França, da Espanha e da Grécia prometeram aumentar os subsídios ao setor agrícola. A França também voltou atrás e desistiu de um planejado aumento do imposto sobre o diesel. Tudo isso graças à pressão dos agricultores, ao mesmo tempo em que os presidentes da França e da Irlanda, Emmanuel Macron e Taoiseach Varadkar, respectivamente, se posicionaram contra o acordo comercial entre União Europeia (UE) e o Mercosul, que previa fortalecer a importação de gêneros agrícolas de países da América Latina [acordo também criticado pelos agricultores, pois baixaria ainda mais os preços no mercado atacadista de alimentos].
A lição clara é: a militância compensa.
Os agricultores constituem apenas uma pequena fração da população – 2,5% na França e pouco mais de 1% em países como a Holanda e a Alemanha. No entanto, armados apenas com seus tratores e formando uma massa de algumas dezenas de milhares, conseguiram não só conter as medidas de austeridade, mas também causaram uma forte divisão entre seus governos locais e na própria União Europeia.
Deixando de lado o conteúdo das suas reivindicações: que exemplo dão aos trabalhadores!
Na Bélgica, Espanha, Polônia, França e Alemanha, as estradas para grandes cidades foram bloqueadas. Grandes portos marítimos como Zeebrugge4 também foram bloqueados. Na Bélgica, os agricultores fecharam estradas ao longo da fronteira holandesa, enquanto os agricultores poloneses, em greve de 30 dias, fizeram o mesmo ao longo da fronteira com a Ucrânia, culpando o aumento do volume de importações ucranianas pela queda de 40% nos preços, no ano passado, dos produtos similares poloneses.
“Quem semeia miséria colhe ira”, dizia um cartaz de um agricultor francês . “Estamos aqui para iniciar um incêndio”, dizia um agricultor belga, enquanto manifestantes ateavam fogo em frente ao edifício que abriga a sede5 do Parlamento da UE [no início de fevereiro]. Ali, cercando toda a sede do parlamento, os agricultores montaram barricadas com centenas de tratores e pneus em chamas; estátuas foram derrubadas e a sede do edifício do parlamento foi bombardeada com pedras e ovos. Também em outros lugares, os tratores sitiaram edifícios governamentais.
Os grandes monopólios supermercadistas e atacadistas também foram alvos dos protestos. Na Bélgica e na França, fardos de feno em chamas tem sido utilizado para bloquear os centros de distribuição das poderosas redes de supermercados Aldi e do Lidl. Agricultores do sudoeste da França prometeram efetuar um “cerco” a Paris, tendo fechado os acessos à capital estacionando dezenas de tratores ao redor do centro de comércio de alimentos Rungis [similar ao Ceasa/Ceagesp] – uma instalação de 2,3 km² conhecida como “a barriga de Paris”. Os agricultores catalães [Espanha] seguiram o exemplo, bloqueando o maior mercado atacadista da Europa em volume de alimentos frescos, situado em Barcelona, bem como o porto de Tarragona [Catalunha, Espanha].
Isto está a um milhão de quilômetros, em palavras e ações, do que costumam praticar os líderes sindicais urbanos, sempre mansos e brandos – incluindo muitos dos próprios líderes sindicais dos agricultores também. O líder do poderoso e multimilionário sindicato dos agricultores franceses FNSEA6, por exemplo, alegou impotência perante as ações dos seus membros: “Estamos tentando apelar à calma e à razoabilidade”.
O que realmente perturba a classe dominante, o que realmente lhes tira o sono, é o medo do exemplo que isso dá.
“Quando se aceita a ação ‘violenta’ de alguns”, advertiu o antigo ministro da Agricultura francês, “não se deve surpreender se outros começarem a seguir o exemplo.”
Com 15 mil policiais mobilizados para conter os distúrbios na França, o sindicato da polícia francesa alertou o governo de que é urgente “encontrar o extintor de incêndio social, apagar o fogo e tentar acalmar a situação”. Se isso não acontecer, poderá ocorrer a adesão de “outros setores”, o que “paralisaria o sistema”.
É precisamente por isso que a classe dominante passou a fazer concessões. Eles precisam desarticular esse movimento, pois sentem que estão sentados em cima de um barril de pólvora. Este exemplo tem todo o potencial para se espalhar.
A turbulência política que se seguirá
Este movimento está cheio de implicações políticas perigosas para a classe dominante.
No ano passado, o Movimento Agricultores-Cidadãos Holandeses (BBB)7 jogou para escanteio todos os outros partidos e passou a liderar as pesquisas eleitorais. Não foi o programa reacionário do partido, mas os métodos dos agricultores, aos quais o partido estava ligado, que pesaram na balança: eles estavam preparados para “tirar as luvas” [termo referente ao boxe, quando a luta esportiva se transforma em briga de verdade] e partir para um ataque frontal contra os odiosos governantes e as instituições da classe dominante.
Com as eleições europeias marcadas para Junho, a classe dominante em toda a Europa teme que se espalhe uma instabilidade semelhante nas urnas.
A extrema-direita, desde o partido Reagrupamento Nacional8 da França até à AfD9 na Alemanha, tenta tirar proveito da situação. Ironicamente, os seus programas não oferecem nada aos agricultores. A AfD, por exemplo, há muito que se opõe aos subsídios agrícolas. Embora os programas protecionistas da direita possam atrair os agricultores, ironicamente a promessa da extrema direita de reduzir a migração não corresponde de forma alguma aos interesses dos agricultores, já que o segmento, incluindo os pequenos agricultores, dependem completamente da exploração de mão de obra barata dos imigrantes.
Mas se há uma proposta política poderosa para a extrema direita nas próximas eleições, é a oposição à guerra na Ucrânia, que aumentou os custos dos combustíveis e levou à entrada de cereais ucranianos baratos para o mercado da UE.
Estes protestos ilustram claramente o quão estúpida é a política do imperialismo ocidental: ao patrocinar uma guerra por procuração e simplesmente invencível contra a Rússia, gerou graves consequências contra eles mesmos. Não conseguiram paralisar a Rússia, mas conseguiram criar sérios problemas internos para si próprios. O imperialismo norte-americano, em particular, se empenha em avançar com entusiasmo com esta guerra, já que está longe das suas fronteiras, mas para as classes dominantes europeias está gerando uma grande quantidade de problemas.
No entanto, prevemos antecipadamente com confiança que, se a extrema direita fizer avanços, muitos da chamada “esquerda” tirarão conclusões erradas. Lamentarão a ascensão do “fascismo”, ignorando completamente o ponto principal: que a própria esquerda abandonou o campo de disputa.
Em toda Europa grande parte da chamada “esquerda” andou de braços dados com sua “própria” classe dominante em relação à questão da Ucrânia. Na Alemanha, a esquerda e os sindicatos deram as mãos aos odiados bancos e corporações, e aos políticos liberais, para se contraporem à AfD. Eles são responsáveis. Eles permitiram que o argumento demagógico da extrema direita sobre um suposto establishment “de esquerda” ganhasse ares de credibilidade. Eles (essa dita “esquerda”) devem ser eliminados em favor de uma luta de classes, sob a liderança revolucionária dos trabalhadores.
Os comunistas devem deixar isso claro. Podemos usar o exemplo dos agricultores para mostrar: a militância compensa, e com uma atitude igualmente ousada por parte das organizações de trabalhadores urbanos, sob a liderança adequada, a justa ira da sociedade poderia ser canalizada para longe da extrema direita e orientada numa direção revolucionária, contra o próprio sistema capitalista.
Agricultores esmagados
Na verdade, os defensores de direita do capitalismo – tanto liberais como de extrema direita – nada podem fazer para aliviar as pressões que oprimem os pequenos agricultores.
À medida que o capitalismo oscila de uma crise para outra, a classe trabalhadora é obrigada a pagar a conta. Mas não são apenas os trabalhadores que sofrem. O peso esmagador dos grandes bancos, das empresas de energia e dos supermercados, a perturbação do comércio, a inflação e o aumento das taxas de juro ameaçam destruir as camadas médias dos pequenos agricultores e dos pequenos empresários.
Esta é precisamente a camada sobre a qual a classe dominante costuma repousar em tempos “normais”. Não é uma coincidência que o campo – onde a vida normalmente flui em correntes mais tranquilas e onde o tradicionalismo é mais forte – seja o lugar onde os partidos burgueses conservadores e os democratas-cristãos em toda a Europa estejam mais profundamente enraizados.
Este terreno está agora mudando sob seus pés. O fato de mesmo os agricultores estarem em movimento deve provocar arrepios na espinha de qualquer estrategista a serviço do capital. A fermentação nessas camadas intermediárias é um sinal precoce de grandes explosões que estão por vir. Mas os agricultores, eles próprios pequenos capitalistas, não podem desafiar sozinhos o domínio do grande capital.
Na Europa, o capitalismo certamente infligiu golpe em cima de golpe contra os pequenos e médios produtores agrícolas. A inflação os está esmagando. A guerra por procuração do imperialismo ocidental na Ucrânia fez subir o custo do diesel e da energia. Enquanto isso, as elevadas taxas de juro estão a provocar uma onda de falências de agricultores hipotecados.
Ironicamente, grande parte da política da classe dominante europeia tem como objectivo tentar conter a agitação da classe trabalhadora, mantendo a inflação baixa… à custa dos pequenos agricultores.
Esta é a razão (e não a “solidariedade”, como afirmam) que as portas da UE foram abertas aos cereais ucranianos baratos. Entretanto, a classe dominante da Europa está tentando atrair importações de alimentos ainda mais baratos, avançando nas negociações comerciais com os países produtores de alimentos do Mercosul, na América Latina.
Não são as grandes redes de supermercados e atacadistas que sofrem: muito pelo contrário. A sua posição de monopólio lhes dá alguma margem de manobra para manter artificialmente os preços elevados para os consumidores quando as pressões inflacionárias começam a diminuir, ao mesmo tempo em que utilizam o excesso de importações baratas para fazer baixar os preços ao comprarem dos milhares de pequenos e médios agricultores locais.
Assim, embora a inflação dos preços dos alimentos tenha permanecido acima de 7,5% para os consumidores em toda a UE no último trimestre de 2023, os preços praticados pelos produtores caíram, na verdade, 9% ao ano até ao final de 2023, baixando aos níveis anteriores à guerra na Ucrânia. Os monopólios da energia, dos supermercados e do comércio atacadista embolsam grande parte dessa diferença.
Entretanto, a crise geral – e, não esqueçamos, a corrida armamentista! – faz aumentar a dívida pública. Quem vai pagar essa conta? Os trabalhadores, por meio da austeridade, mas também os pequenos agricultores, através de cortes nos subsídios agrícolas. Mesmo antes da crise, 80% dos subsídios estabelecidos pela Política Agrícola Comum (PAC) da UE foram direcionados para os 20% de agricultores mais ricos.
São os agricultores mais pobres, que trabalham 60 horas por semana, que acabarão por falir. E agora, a UE diz a estes mesmos agricultores que devem reduzir o uso de pesticidas e fertilizantes e também diminuírem suas áreas de plantio por razões de proteção ambiental. Mas o mercado obriga os pequenos agricultores a aplicarem métodos agrícolas nocivos ao ambiente, a fim de resistirem a à pressão competitiva imposta pelos gigantes do agronegócio. Na verdade, apenas 15 empresas multinacionais de carne e laticínios são responsáveis por emissões de metano equivalentes a 80% de toda a UE.
Naturalmente, quando os pequenos agricultores sentem que estão sendo punidos injustamente, ficam naturalmente predispostos à influência do discurso negacionista de direita sobre as mudanças climáticas. No entanto, ironicamente, as alterações climáticas pesam sobre os agricultores, através de secas e incêndios florestais, que tiveram um impacto particularmente devastador na Grécia e noutros locais no último ano.
Algumas vozes da esquerda – tendo notado a influência da extrema direita nestes movimentos – afirmam que este é um movimento puramente reacionário, e que não podemos oferecer nada aos agricultores. Em grande parte da Europa, a extrema direita é certamente dominante, com muitos “sindicatos” que reúnem pequenos agricultores e grandes empresas do agronegócio sob o mesmo guarda-chuva e sob o domínio político dos gigantes empresariais.
Mas os protestos destes agricultores são tudo, menos equilibrados. O agronegócio esteve claramente por trás dos protestos dos agricultores sobre o nitrogênio10 nos Países Baixos no ano passado e a influência da extrema direita foi notória. Mas na Catalunha, a situação do campo é tal que o movimento é dominado por pequenos e micro agricultores, cujo sindicato se inclina claramente para a esquerda.
Para os pequenos agricultores, só a classe trabalhadora – ao tomar o poder e nacionalizar os grandes bancos, as empresas de energia, os supermercados, os atacadistas e os gigantes do agronegócio – pode oferecer-lhes uma vida segura e digna. Uma economia planejada que produza de acordo com as necessidades, em harmonia com o ambiente, pode oferecer condições muito melhores aos pequenos agricultores do que os bancos privados e os supermercados que pretendem esmagá-los para obter lucro.
Quando os atacadistas e os bancos forem nacionalizados sob um plano de produção – e são destas principais alavancas da economia que os comunistas querem assumir o controle, e não as pequenas empresas e as pequenas explorações agrícolas – será possível à sociedade oferecer bons preços e crédito barato aos pequenos produtores. Poderíamos prestar toda a assistência que só uma economia planificada pode prestar, para implementar métodos agrícolas sustentáveis e ecológicos.
Só o comunismo pode oferecer uma saída. Costumava-se argumentar que as camadas médias e pequeno-burguesas da sociedade, como os agricultores, nunca aceitariam o comunismo porque é demasiado “extremo”, demasiado “radical”, demasiado “militante”, e isso os assustaria. Pois bem, agora os agricultores mostraram que estão bastante preparados para utilizar os métodos mais militantes, mais extremos, mais radicais. Só estes métodos funcionarão – não apenas para os agricultores, mas para milhões de trabalhadores urbanos.
Há uma lição aí se os líderes do movimento trabalhista estiverem dispostos a aprendê-la. E se não, deveriam afastar-se em favor daqueles que aprenderam esta lição.
TRADUÇÃO DE ALEX C.
Notas:
1 Ursula Gertrud von der Leyen (nascida em Bruxelas, Bélgica, em 1958) é uma política alemã e atual presidente da Comissão Europeia desde 2019. Von der Leyen é filiada à União Democrata-Cristã (CDU), partido de centro-direita do qual é uma das vice-presidentes. Foi a primeira mulher no cargo de ministra da Defesa da Alemanha, entre 2013 e 2019, depois de liderar os ministérios do Trabalho e dos Assuntos Sociais, entre 2009 e 2013, e da Família, da Terceira Idade, das Mulheres e da Juventude, entre 2005 e 2009. É luterana, licenciada em economia e doutora em Medicina. (fonte: Wikipedia)
2 Texto entre colchetes [ ] são notas do tradutor.
3 Agenda 2030 é um plano global estabelecido pela ONU (Organização das Nações Unidas) em setembro de 2015, quando representantes dos 193 Estados membros reuniram-se em Nova Iorque e estabeleceram 17 objetivos de desenvolvimento sustentável, entre eles a diminuição de uso de pesticidas e a diminuição de produção de gases relacionados ao efeito estufa (dióxido de carbono e nitrogênio, principalmente).
4 Cidade portuária da Bélgica
5 A sede do Parlamento Europeu fica em Bruxelas, na Bélgica. É o poder legislativo da União Europeia, composto por 705 eurodeputados, eleitos a cada cinco anos pelos cidadãos de cada um dos 27 Estados-membro.
6 Fédération Nationale des Syndicats d’Exploitants Agricoles – (Federação nacional dos sindicatos dos operadores agrícolas)
7 Partido político de direita fundado em 2019.
8 Rassemblement National – partido Francês de extrema direita, surgido em 2018 a partir do Front National (Frente Nacional).
9 Alternative für Deutschland – Alternativa para a Alemanha, partido de extrema-direita fundado em 2013.
10 Proposta governamental que propõe a redução do rebanho pela metade e o fechamento das grandes fazendas a fim de se alinhar à diretriz da UE em reduzir as emissões de nitrogênio.