A organização de jovens Liberdade e Luta publicou em sua página um artigo de Alan Woods, dirigente da Corrente Marxista Internacional, intitulado “Marxismo e anarquismo”. O grupo anarquista Bandeira Negra escreveu um texto contrário ao artigo do camarada Alan, que, por sua vez, redigiu uma resposta às críticas recebidas, em defesa do ponto de vista marxista sobre a questão. Segue a primeira de quatro partes desta resposta
Fui recentemente informado que Bandeira Negra, um grupo anarquista do Brasil, publicou uma resposta ao meu artigo “Marxismo e Anarquismo”, de janeiro de 2012. É evidente que acolhemos as críticas amistosas de qualquer parte do movimento internacional dos trabalhadores. Isso inclui camaradas que aderem aos pontos de vista opostos ao marxismo, o que o anarquismo sempre foi.
Um debate amistoso pode nos ajudar a clarificar nossas ideias e, assim, fortalecer o movimento revolucionário. Considero, no entanto, que as teorias do marxismo, que resistiram à prova do tempo, são suficientemente fortes para refutar qualquer crítica, o que demonstrarei neste artigo.
Contudo, a condição prévia para um debate saudável é uma abordagem honesta do adversário. Meu artigo “Marxismo e Anarquismo” é descrito como “um festival de falácias e falsificações históricas”. Demonstraremos onde residem as falácias e as falsificações históricas e deixaremos ao leitor decidir se as mentiras e falsificações se encontram em meu artigo ou nas afirmações de meus críticos.
Tem o anarquismo uma teoria?
Bandeira Negra expressa grande indignação pelo fato de eu alegadamente negar que os anarquistas têm uma teoria. Na verdade, nunca fiz tal declaração. Ela é, como a maioria das outras declarações a mim atribuídas por nosso crítico, um produto de sua fértil imaginação.
Ele escreve:
“O autor começa falando da importância teórica, como se anarquistas negassem isso!
“Importante lembrar que Mikhail Bakunin reconheceu “O Capital” como uma das melhores obras já feitas e até se dispôs a traduzí-lo. Proudhon, socialista federalista que inspirou o anarquismo, a quem o texto cospe em cima, teve sua obra ‘O Que é a Propriedade?’ considerada um estudo científico pelo próprio Marx”
Estou muito consciente de que o anarquismo se baseia em uma teoria. Meu problema com ela é que é uma teoria muito fraca, cheia de contradições; uma bagunça de velhas ideias tomadas dos socialistas utópicos, particularmente Proudhon, misturada com noções aventureiras e sectárias introduzidas por Bakunin. O verdadeiro pai dessas ideias foi de fato Proudhon.
Apesar da tentativa de Bandeira Negra de encontrar uma citação que tenha por objetivo provar que Marx respeitava as ideias de Proudhon, temo dizer que devemos denunciar esta falácia. Longe de elogiar as ideias confusas de Proudhon, Karl Marx descreveu a maior obra de Proudhon, “Filosofia da Miséria”, como “pobre em geral, se não muito pobre… sua filosofia é absurda – ele produz uma filosofia absurda porque não compreendeu as condições sociais atuais”. De fato, Marx chegou a escrever uma devastadora crítica da obra de Proudhon em “Miséria da Filosofia”.
A debilidade teórica do anarquismo – que Marx expôs com clareza – está precisamente em que repete os equívocos dos socialistas utópicos e, em particular, de Proudhon, o expoente do socialismo pequeno-burguês por excelência. O programa de Bakunin (na medida em que existisse) era uma mistura superficial de ideias tomadas de Proudhon, Saint-Simon e outros socialistas utópicos. Acima de tudo, ele pregava a “abstenção do movimento político”: uma ideia que também tomou de Proudhon.
A verdade é que marxismo e anarquismo são ideologias completamente opostas e mutuamente excludentes. O primeiro é uma teoria científica e uma política revolucionária que refletem os interesses de classe do proletariado. O marxismo se baseia na classe trabalhadora, a única classe genuinamente revolucionária da sociedade. Em contraste, o anarquismo é uma doutrina confusa e a-científica que encontra sua base de classe na pequena burguesia e no lumpemproletariado. Mas não é preciso aceitar minha palavra, vejamos o que Bakunin tinha a dizer sobre essa questão.
Qual era a posição de Bakunin com relação à classe trabalhadora? A partir de uma carta a La Liberté, escrita por Bakunin em 1872, fica muito claro que ele sequer aceita que o proletariado é uma classe e até se refere ao governo aristocrático dos trabalhadores de fábrica sobre o proletariado rural, isto é, o proletariado urbano sobre o campesinato:
“Nós, anarquistas revolucionários que verdadeiramente queremos plena emancipação popular, vemos com repugnância outra expressão neste programa: a designação do proletariado, os trabalhadores, como uma classe e não como massa. Você sabe o que isso significa? Significa nem mais nem menos o governo aristocrático dos trabalhadores de fábrica e das cidades sobre os milhões que constituem o proletariado rural que, na expectativa dos socialdemocratas alemães, se tornarão de fato os súditos do seu chamado Estado Popular. ‘Classe’, ‘poder’… ‘estado’ são três termos inseparáveis, cada um pressupondo os outros dois, e que se reduzem a isto: a sujeição política e a exploração econômica das massas” (ênfase minha).
Na mesma carta ele se refere à “minoria aburguesada” dos trabalhadores urbanos:
“Essa mesma lógica leva os marxistas direta e fatalmente ao que chamamos de socialismo burguês e à conclusão de um novo pacto político entre os burgueses que são ‘radicais’, ou que são forçados a se tornar, e a ‘inteligente’ e ‘respeitável’ minoria aburguesada dos trabalhadores urbanos em detrimento das massas proletárias, não somente do país como também das cidades”.
“Espontaneidade” e a luta política
Uma das principais características que, na prática, sempre caracterizaram todas as tendências anarquistas, começando com Bakunin, foi precisamente a recusa da política e dos partidos políticos. Esse fato bem conhecido é negado de forma indignada por nosso crítico anarquista. Na primeira parte de sua diatribe contra o marxismo, meu crítico também nega categoricamente que o anarquismo seja “espontâneo”. Bandeira Negra começa afirmando que associo anarquismo à “desorganização, algo semelhante à gente perdida correndo em círculos e sem saber para onde ir, sem propostas políticas claras. Isto é obviamente falso”.
Mas espere um minuto, meu amigo. Visto que você está tão ansioso em reivindicar as teorias de Bakunin, o pai-fundador do anarquismo, e visto que você insiste em que leiamos suas obras, vamos ver o que ele tem a dizer sobre a questão da “espontaneidade”:
Em “Socialismo sem Estado: Anarquismo”, uma de suas obras fundamentais [sem data, mas provavelmente de 1873], Bakunin insiste que “a ação espontânea de massas é tudo”:
“Numa revolução social, que em tudo é diametralmente oposta a uma revolução política, as ações dos indivíduos dificilmente contam, enquanto a ação espontânea das massas é tudo” (ênfase minha).
Acredito que essas palavras são tão claras que mesmo Bandeira Negra não terá muita dificuldade para entendê-las. Em apenas duas frases Bakunin elimina todas as “revoluções políticas”, isto é, toda luta por demandas políticas, toda revolução que vise mudar a ordem política da sociedade. Em vez disso, ele apela por uma “revolução social” pura, isto é, uma que instantaneamente varra para longe todas as classes e que estabeleça imediatamente a sociedade anarquista onde não haverá nem poder político, nem estado, nem opressor e oprimido.
Qualquer coisa menos do que isto deve ser rejeitado com desprezo como reformismo miserável – algo que é “diametralmente oposto” ao ideal anarquista de uma “revolução social”. Disso se deduz que a luta por demandas democráticas e a luta dos trabalhadores por demandas salariais e melhores condições devem ser rejeitadas porque não levam à derrubada imediata do capitalismo e de seu estado.
Também se deduz que a luta política, a participação nas eleições, a luta por reformas nos campos da saúde, educação, melhores pensões, a limitação da duração da jornada de trabalho, os direitos das mulheres etc. não são apenas inúteis, mas também prejudiciais, visto que desviam a atenção das massas para longe da luta real – da “revolução social”.
Na carta a La Liberté, Bakunin diz o seguinte com relação a conseguir candidatos eleitos aos parlamentos burgueses:
“Tal é o significado das candidaturas dos trabalhadores aos parlamentos dos estados existentes e da conquista do poder político. Não está claro que a natureza popular de tal poder nunca será outra coisa além de uma ficção? Obviamente será impossível para centenas ou mesmo dezenas de milhares ou de fato somente alguns milhares exercerem este poder efetivamente. Necessariamente terão que exercitar o poder por procuração, confiar este poder a um grupo de homens eleitos para representá-los e governá-los… Depois de um breve momento de liberdade ou de euforia revolucionária, estes novos cidadãos de um novo estado despertarão para se encontrarem novamente como os peões e as vítimas dos novos agrupamentos de poder…”.
Vemos aqui como a teoria anarquista é abstrata na prática. A partir de uma avaliação da natureza limitada da democracia burguesa eles vão ao outro extremo. Aqui é o poder do estado como tal, e não os interesses de classe a que ele serve, que é apresentado como causador de traição ou opressão. De acordo com Bakunin, apenas por ocupar o cargo, independentemente do contexto, de qual classe está fazendo pressão etc., você se transforma em um opressor. Os anarquistas rejeitam a participação nas eleições. Mas a classe trabalhadora lutou durante muito tempo para ganhar o direito de voto e outros direitos democráticos contra a resistência feroz da classe dominante. Entendemos que essas conquistas por si mesmas não podem resolver os problemas fundamentais da sociedade e da classe trabalhadora. No entanto, o problema fundamental não está na própria democracia representativa, mas no poder econômico da burguesia sobre o parlamento – caso contrário, em nosso sistema, os capitalistas também acabariam sendo oprimidos por seus representantes parlamentares. A luta por demandas democráticas desempenhou um papel muito importante no desenvolvimento da consciência e da militância da classe trabalhadora e das massas exploradas em geral.
Os trabalhadores do Brasil entendem isso perfeitamente bem. Não é indiferente para a classe trabalhadora termos o direito de greve e de manifestação, ou o direito de votar nas eleições. Enquanto o capitalismo continuar a existir, a classe trabalhadora é forçada a aproveitar todas as possibilidades legais para promover sua causa. Recusar-se a participar nas eleições seria o mesmo que entregar o poder político aos partidos de nossos inimigos de classe. De que forma a abstenção poderia promover os interesses da classe trabalhadora é um mistério que somente um anarquista pode esperar compreender.
Os marxistas sempre entenderam que a participação na atividade parlamentar contém muitos riscos e perigos. A burguesia desenvolveu ao nível de uma fina arte a corrupção sistemática dos representantes dos trabalhadores no Parlamento. Isto é uma verdade incontestável. Mas, da mesma forma, os patrões desenvolveram todos os tipos de formas de corrupção dos representantes dos trabalhadores nas fábricas, nos conselhos locais e em todos os outros níveis. Devemos nos recusar a eleger representantes, por exemplo, para um comitê de greve por medo de que possam ser corrompidos pelos patrões? Essa linha da argumentação deve logicamente levar à recusa de organizar os trabalhadores, em absoluto.
Marx sobre ação política e organização
É isto que Marx tinha a dizer quanto à rejeição da ação política e da organização:
“N.B. sobre o movimento político: O movimento político da classe trabalhadora tem como objetivo, naturalmente, a conquista do poder político pela classe trabalhadora e, para isto, é naturalmente necessário que previamente se tenha desenvolvido até certo ponto uma organização da classe trabalhadora surgida, por sua vez, das lutas econômicas da mesma.
“Mas, por outro lado, todo movimento em que a classe trabalhadora se apresenta como classe contra as classes dominantes e tenta vencê-las por meio da pressão exterior é um movimento político. Por exemplo, a tentativa em uma fábrica particular ou mesmo em uma indústria particular de obrigar os capitalistas a reduzir a jornada de trabalho mediante greves etc. é um movimento puramente econômico. Por outro lado, o movimento que tem por objetivo fazer aprovar uma lei que estabeleça a jornada de oito horas etc. é um movimento político. E, desta forma, a partir dos distintos movimentos econômicos dos trabalhadores surge em todas as partes um movimento político, isto é, um movimento da classe, que tem por objetivo impor seus interesses de forma geral, sob uma forma que possua uma força de compulsão para toda a sociedade. Se esses movimentos pressupõem certo grau de organização, são, por sua vez, um meio para o desenvolvimento desta organização.
“Ali onde a classe trabalhadora não está ainda suficientemente avançada em sua organização para empreender uma campanha decisiva contra o poder coletivo, isto é, o poder político das classes dominantes, deve-se, de todas as formas, treinar para isso mediante uma agitação contínua e uma atitude hostil com relação à política das classes dominantes. Do contrário, continuará sendo um joguete em suas mãos, como o demonstrou a revolução de setembro na França, e como também o demonstra até certo ponto o jogo dos senhores Gladstone e Cia., inclusive na atualidade” (Marx a Friedrich Bolte, 23 de novembro de 1871, publicada em Marx and Engels Correspondence; International Publishers, 1968).
Reformismo ou revolução?
“Ou seja, a diferença entre a Socialdemocracia e o Marxismo sempre foi muito tênue. A divergência se encontrava única e exclusivamente em como o Partido deveria conquistar o aparato do Estado. Mas uma vez em seu poder, a transformação da sociedade capitalista seria AOS POUCOS, diferente da saída anarquista que, como disse Bakunin, ‘enquanto a teoria político-social dos socialistas antiautoritários ou anarquistas os conduz de modo infalível a uma ruptura completa com todos os governos, com todas as formas de política burguesa, e não lhes deixa outra saída senão a revolução social, a teoria adversa, a teoria dos comunistas autoritários e do autoritarismo científico, atrai e imobiliza seus partidários, a pretexto de tática, em compromissos incessantes com os governos e os diferentes partidos políticos burgueses, quer dizer, leva-os direto ao campo da reação’ [Estatismo e Anarquia]”
Nosso amigo conclui triunfalmente: “O reformismo não é uma negação do marxismo: é seu filho”. Ele tenta retratar Marx e Engels como reformistas, mas a forma como o faz revela seu método de citação completamente desonesto. Bandeira Negra fornece esta breve citação dos “Princípios do Comunismo” de Engels, escrito entre outubro e novembro de 1847: “Os comunistas, portanto, têm de continuamente tomar partido pelos liberais burgueses face aos governos”.
Como costumam fazer, a citação é retirada do contexto, a frase não está completa e a fonte não é fornecida. Vamos ver o que Engels realmente disse. Em resposta à questão número 25, “Qual a atitude dos comunistas face aos demais partidos políticos de nosso tempo?”, Engels explica o seguinte com relação à Alemanha:
“Na Alemanha, finalmente, só agora está iminente a luta decisiva entre a burguesia e a monarquia absoluta. Como, porém, os comunistas não podem contar com uma luta decisiva entre eles próprios e a burguesia antes que a burguesia domine, o interesse dos comunistas é ajudar a levar os burgueses ao poder tão depressa quanto possível para, por sua vez, derrubá-los o mais depressa possível. Os comunistas têm, portanto, de continuamente tomar partido pelos burgueses liberais face aos governos e se precaverem de partilhar as autoilusões dos burgueses ou de dar crédito às suas afirmações sedutoras sobre as consequências benéficas da vitória da burguesia para o proletariado. As únicas vantagens que a vitória da burguesia trará aos comunistas consistirão:
“(i) em diversas concessões que facilitarão aos comunistas a defesa, discussão e propagação de seus princípios e, com isso, a união do proletariado numa classe estreitamente coesa, preparada para a luta e organizada;
“(ii) na certeza de que, no dia em que os governos absolutos caírem, chegará a hora da luta entre os burgueses e os proletários. Desse dia em diante, a política partidária dos comunistas será a mesma que naqueles países em que já domina a burguesia”.
Como se pode ver, o fragmento de uma frase em itálico acima é o que os nossos amigos anarquistas citam, transformando o seu significado em seu oposto, afirmando que Engels estava defendendo o apoio aos liberais burgueses para sempre. Na verdade, ele está simplesmente afirmando que, na Alemanha de 1847, como a luta era contra a aristocracia feudal, os comunistas apoiariam a burguesia contra o estado feudal, após o que a luta contra a burguesia começaria. Mas por que se preocupar com a citação completa quando uma citação parcial, tirada do contexto, é muito mais útil para distorcer o que Engels disse?
Mas retornemos à situação atual e aos reformistas atuais. Nossa crítica aos reformistas não é porque eles lutam por reformas, mas porque não lutam por reformas; eles capitulam à pressão da burguesia e realizam contrarreformas, reduzindo os padrões de vida para sustentar o sistema capitalista, particularmente no atual período de crise capitalista. A experiência do governo do PT no Brasil ou do governo de Tsipras na Grécia é suficiente para ilustrar este ponto. É elementar que, se formos sérios na conquista da classe trabalhadora para as ideias revolucionárias, devemos nos colocar na vanguarda de todas as lutas para defender e melhorar os padrões de vida, mesmo os mais básicos.
As demandas imediatas das massas não se restringem às questões econômicas, mas inevitavelmente passam para o terreno da política. Aqui, os argumentos tradicionais dos anarquistas entram em conflito direto com os interesses da classe trabalhadora. Quer você goste ou não, até que o capitalismo seja derrubado questões importantes são decididas pelo Parlamento. São aprovadas leis que diretamente afetam as vidas e as condições dos trabalhadores, dos desempregados, dos enfermos, dos velhos, dos jovens e das mulheres. Devemos abandonar a luta cotidiana para mudar as leis no interesse de nossa classe?
Tomemos a questão da votação. Nos dias de Marx os trabalhadores não tinham o direito de votar, e assim a questão da votação era uma questão extremamente importante para a classe trabalhadora. Qual foi a atitude de Bakunin a respeito dessa importante questão?
Aqui está o que ele escreveu, em 1870, em “On Representative Government and Universal Suffrage [Sobre o Governo Representativo e o Sufrágio Universal]”:
“Se um governo composto exclusivamente por trabalhadores for eleito amanhã por sufrágio universal, esses mesmos trabalhadores, que hoje são os mais dedicados democratas e socialistas, amanhã se tornariam os aristocratas mais determinados, os adoradores abertos ou secretos do princípio da autoridade, exploradores e opressores”.
E ele acrescenta mais tarde no mesmo texto:
“O governo representativo é um sistema de perpétua hipocrisia e falsidade. Seu sucesso reside na estupidez do povo e na corrupção da mente pública.
“Isso significa que nós, os socialistas revolucionários, não queremos o sufrágio universal – que preferimos o sufrágio limitado ou um único déspota? De forma alguma. O que defendemos é que o sufrágio universal, considerado em si mesmo e aplicado em uma sociedade baseada na desigualdade econômica e social, não será nada mais que uma fraude e uma cilada para o povo; nada além de uma mentira odiosa dos democratas-burgueses, o caminho mais seguro para consolidar sob o manto do liberalismo e da justiça a dominação permanente do povo pelas classes possuidoras, em detrimento da liberdade popular. Negamos que o sufrágio universal possa ser usado pelo povo para a conquista da igualdade econômica e social. Ele deve ser sempre e necessariamente um instrumento hostil ao povo, no qual de fato se apoia a ditadura da burguesia”.
Bakunin rejeita a participação nas eleições, embora diga que não se opõe “totalmente” à luta pelo sufrágio universal. O que significa este enunciado do tipo desafio da Esfinge? Onde fica a posição de lutar pelo direito ao voto se, então, defendemos a posição de não votar nas eleições? Mas, diz Bakunin, quando os líderes reformistas são eleitos ao parlamento eles sempre traem. Sim, isto é certamente verdadeiro. Trotsky explica que a traição é inerente ao reformismo, e toda a história mostra que este é o caso. Mas isto não esgota a questão de forma alguma. Nós, os marxistas, não somos adeptos da política parlamentar, mas também não acreditamos que seja possível descartar o parlamentarismo simplesmente ignorando as eleições.
A luta eleitoral é apenas mais uma frente da luta de classes. Recusando-nos a participar nesta luta apenas entregamos o poder político em uma bandeja nas mãos de nossos inimigos. De que forma isso serve à causa do socialismo e da classe trabalhadora é impossível de se dizer.
Certamente estamos contra o reformismo, mas não nos opomos a uma participação enérgica nas lutas dos trabalhadores e da juventude por demandas que tendam a melhorar suas vidas sob o capitalismo, porque somente através dessas lutas eles podem adquirir a necessária compreensão da natureza do capitalismo e do estado, da necessidade de se organizarem e da necessidade de uma mudança fundamental na sociedade: a necessidade de uma revolução socialista. A luta pelos direitos democráticos é extremamente importante não só como uma escola de luta, mas também como uma forma de elevar a consciência dos trabalhadores e suas organizações a um nível mais alto.
Tomemos um exemplo da Revolução Russa. A revolução foi travada com base nas três seguintes palavras de ordem: paz, pão e terra. Se analisarmos o conteúdo dessas palavras de ordem veremos, à primeira vista, que não há nada de revolucionário nelas. Também não contêm qualquer elemento de socialismo, e muito menos de anarquismo. Teoricamente, todas essas coisas podiam ser alcançadas sob o capitalismo. Mas na realidade concreta da Rússia de 1917, “paz, pão e terra” somente seriam alcançados através da derrubada do capitalismo e da conquista do poder soviético.
Somente ao tomar essas palavras de ordem e ao ligá-las à ideia do poder soviético, os bolcheviques poderiam ser bem-sucedidos em unir milhões de trabalhadores e camponeses sob a bandeira revolucionária. No caso do Brasil, a luta contra a ditadura nos tempos mais recentes era uma questão fundamental para a classe trabalhadora. Era necessário e correto lutar pelos direitos democráticos e contra a ditadura? Aqui, a importância da luta política fala por si mesma.
Em 2013, o Brasil viveu um movimento de massas de proporções inigualáveis. Como começou esse movimento? Começou por uma luta contra o aumento das tarifas de ônibus em São Paulo. Sem dúvida, nosso amigo anarquista considera que isso é meramente uma demanda reformista e indigna da atenção dos revolucionários sérios. No entanto, de fato, a luta por essa limitada demanda rapidamente se transformou em um movimento de massas com implicações revolucionárias.
Todos esses exemplos mostram como a luta por demandas elementares sobre questões imediatas (“reformas”) serve para levar à frente o movimento dos trabalhadores, conduzindo finalmente o proletariado a conclusões revolucionárias. Mas para o nosso amigo anarquista este é um livro fechado com sete cadeados. Ele levantou uma muralha chinesa separando a luta por reformas da luta pela revolução, e não pode ver a relação dialética entre as duas.
Que atitude deveríamos ter tomado com relação a esse movimento e essa demanda? A lógica do que diz nosso crítico anarquista é que não devemos sujar nossas mãos com reformas tão triviais como a redução das tarifas de ônibus. Melhor seria proclamar a necessidade de uma revolução anarquista. Mas, na realidade, a linha entre a luta por reformas e a luta pela revolução socialista não é tão clara quanto nosso amigo imagina.
A posição apresentada por nosso crítico negligencia o fato de que a classe trabalhadora em geral não aprende dos livros e discursos, mas da própria vida. Os trabalhadores aprendem da experiência prática, particularmente da experiência prática da luta de classes. É somente através da luta cotidiana para avançar sob o capitalismo que a classe trabalhadora adquire a experiência suficiente para se elevar ao nível de tirar conclusões revolucionárias. Se nosso amigo anarquista não pode entender esse fato elementar, sinceramente sentimos muito por ele.
Um ligeiro mal-entendido?
A próxima afirmação feita por Bandeira Negra é tão extraordinária que faz qualquer pessoa esfregar os olhos de espanto para ver se está lendo corretamente. Ele escreve: “Quando as várias experiências revolucionárias de caráter libertário através da história são estudadas, a avaliação de um programa político sério é inegável, alinhado aos interesses da classe trabalhadora e portador de uma disciplina revolucionária”.
Aí o temos. Nosso crítico sustenta que através da história os anarquistas estiveram de fato a favor de formar um partido revolucionário, baseado na “avaliação de um programa político sério, alinhado aos interesses da classe trabalhadora e portador de uma disciplina revolucionária”. A tudo isto dizemos amém!
Se tudo isso é verdade, fica difícil de se ver todo o alarido durante os últimos 150 anos. Parece que as diferenças entre o marxismo e o anarquismo foram somente o produto de um infeliz mal-entendido. Essa é realmente uma boa novidade! Mas será verdade? Para começar, quando as “várias experiências revolucionárias de caráter libertário através da história” são estudadas, a impressão duradoura é de autocontradição e de ecletismo dentro do anarquismo, e não de “um programa político sério”.
Devemos assinalar que a terminologia utilizada por Bandeira Negra é confusa ao extremo. Qual o significado de “a avaliação de um sério programa político”? Aqui estamos brincando de um jogo de esconde-esconde com as palavras. Possui esse famoso “partido político anarquista” um programa político, sim ou não? Se a resposta for sim, é difícil de se ver como essa concepção difere da dos marxistas. Mas, como todos os argumentos utilizados por Bandeira Negra, essa é uma fórmula ambígua, calculada para confundir e não para esclarecer o assunto.
O que é um partido político?
Um partido é uma organização voluntária baseada em princípios definidos e em um programa. A natureza do partido será em grande parte determinada por essas questões de princípio e programa. Um partido reformista basear-se-á naturalmente em princípios reformistas e na política reformista, isto é, uma política concebida fundamentalmente para defender o sistema capitalista ao introduzir certas modificações secundárias. Um partido marxista, pelo contrário, está baseado no objetivo estratégico de derrubada do capitalismo, e seu programa e política serão determinados por este objetivo.
E os anarquistas? Eles se opõem à ideia de organizar os trabalhadores em um partido revolucionário porque tal partido inevitavelmente leva à liderança burocrática e hierárquica. Eles explicam que os partidos são ruins, mas são ineptos para explicar como uma revolução ocorre sem um. Quando se lhes pede que ofereçam uma alternativa concreta, eles nunca oferecem uma resposta direta. Qual a alternativa que eles propõem? Nenhuma organização, em absoluto? Meu crítico indignadamente nega qualquer ideia semelhante.
Ele diz:
“Por fim, o autor se dispõe a divagar sobre a importância do Partido para a experiência política da classe, como se anarquistas rejeitassem isso”
Então, em que pé estamos? Você aceita ou rejeita a necessidade de criação de um partido revolucionário? Sobre esta questão nosso amigo se contorce e finalmente surge com uma formulação que, imagina ele, vai resolver uma contradição insolúvel da teoria anarquista:
“Tanto a organização de massas (movimentos sociais e sindicatos) quanto a organização especificamente anarquista são capazes de desenvolver estratégias e táticas, aprender com a experiência de lutas e se desenvolver rumo ao Socialismo. A hierarquia e a autoridade concentrada em uma ‘elite intelectual superior’ não tem a ver com isso, mas com desejo por poder”.
Nosso amigo anarquista procura confundir a questão. Acontece que ele não quer um partido, mas somente uma “organização especificamente anarquista”. Esta terá uma estrutura, um programa (mesmo um programa político) e se baseará em uma teoria definida. Ela será capaz de “desenvolver estratégias e táticas, aprender da experiência das lutas e evoluir para o socialismo. Mas não terá uma hierarquia e autoridade concentrada em uma “elite intelectual superior”. Desnecessário dizer que não terá nada a ver com qualquer “desejo de poder”.
É difícil tirar algum sentido dessa barafunda de ideias contraditórias, mas faremos o nosso melhor. Em primeiro lugar, salientamos que, como explicado por Bandeira Negra, não somente a “organização especificamente anarquista” como também a organização de massas (movimentos sociais e sindicatos) são capazes de “desenvolver estratégias e táticas, aprender da experiência de lutas e se desenvolver rumo ao socialismo”.
Mas espere um momento! As organizações de massas a que você se refere são precisamente as organizações reformistas burocráticas, como o PT e a CUT, às quais você descreveu sistematicamente nos termos mais negativos, retratando-as como coisas que estão à margem de um ponto de vista revolucionário. Agora, de repente, por razões misteriosas e inexplicáveis, elas se transformaram em organizações que não somente podem desenvolver táticas e estratégias na base da experiência, como também “se desenvolver rumo ao socialismo”.
Se for este o caso, então fica difícil de se ver por que uma “organização especificamente anarquista” é necessária em absoluto. Se os trabalhadores através de suas organizações tradicionais de massas reformistas são capazes de fazer exatamente as mesmas coisas, por que necessitamos existir como uma entidade separada?
As questões se tornam ainda mais confusas quando tentamos analisar o conteúdo da expressão “se desenvolver rumo ao socialismo”. O que isto significa? Supõe-se que estamos a favor da revolução socialista. Não se trata de “se desenvolver rumo ao socialismo”. Isto pressupõe não a revolução, mas uma evolução gradual na direção do socialismo: precisamente a fórmula milenar dos reformistas. Aqui confusão é empilhada em cima de confusão, contradição em cima de contradição. Mas desde quando esse tipo de coisa já incomodou os teóricos do anarquismo?
Para qualquer pessoa com uma compreensão elementar das ideias, essa “organização especificamente anarquista” soa muito como um partido político. E, como qualquer partido político, ele presumivelmente conterá uma divisão de responsabilidades. A menos que se refira a um grupo muito pequeno, como um círculo de discussão, ele necessitará eleger ou selecionar certos indivíduos para assumirem a responsabilidade pelo funcionamento diário da organização (publicações, finanças, propaganda etc.). Além disso, a experiência mostra que os membros mais experientes dessa organização terão mais peso em suas deliberações do que outros e que terão, de fato, um papel de liderança.
Neste ponto, o anarquista protestará de forma vociferante que a celebrada “organização especificamente anarquista” não terá nenhum líder, que todos são iguais, então não haverá necessidade de se eleger uma liderança em absoluto. Tudo o que isso significa na prática é que haverá uma panelinha de pessoas que, na prática, toma todas as principais decisões, mas que não são nem eleitos nem responsáveis perante qualquer forma de controle democrático. Vimos isso muitas vezes em grupos que se reivindicam anarquistas. Isso, na prática, leva ao pior tipo de controle hierárquico: o controle de uma camarilha não-eleita.
Um partido revolucionário não pressupõe necessariamente uma “hierarquia e autoridade concentrada em uma ‘elite intelectual superior’”, nem é guiado por um “desejo de poder”. O Partido Bolchevique sob Lenin e Trotsky foi o partido mais democrático que já existiu. Ele levou a classe trabalhadora ao poder em outubro de 1917 na Rússia. É isso que gera o ódio da classe dominante e fornece uma inspiração aos trabalhadores e à juventude que estão lutando para mudar a sociedade em todos os lugares.
É necessário um partido?
Toda a história da luta de classes durante os últimos cem anos fornece a resposta a essa pergunta. Os marxistas não negam a importância do papel do indivíduo na história, mas apenas explicam que o papel desempenhado por indivíduos ou partidos é limitado pelo nível dado de desenvolvimento histórico e pelo ambiente social objetivo que, em última análise, é determinado pelo desenvolvimento das forças produtivas. Isso não significa – como foi alegado pelos críticos do marxismo – que os homens e mulheres são meros fantoches do funcionamento cego do “determinismo econômico”.
O materialismo histórico nos ensina a olhar para além dos jogadores individuais no palco da história e a buscar as causas mais profundas dos grandes eventos históricos. Mas isso de modo algum nega ou menospreza o papel dos indivíduos na história. Em dados momentos, o papel de um só homem ou mulher pode ser decisivo. A classe trabalhadora necessita de um partido para mudar a sociedade. Se não houver um partido capaz de dar uma liderança consciente à energia revolucionária da classe, esta energia pode ser desperdiçada, da mesma forma como se perde o vapor se não há nenhum pistão para canalizar seu poder.
Marx e Engels explicaram que os homens e mulheres fazem sua própria história, mas que eles não a fazem como agentes livres, sendo limitados por sua posição na sociedade. As qualidades pessoais das figuras políticas – sua preparação teórica, habilidades, coragem e determinação – podem determinar o resultado de uma dada situação. Há momentos críticos na história humana em que a qualidade da liderança pode ser o fator decisivo que oriente o equilíbrio de uma forma ou de outra. Embora os indivíduos não possam determinar o desenvolvimento da sociedade somente pela força da vontade, o papel do fator subjetivo é, em última análise, decisivo na história humana.
O partido revolucionário não pode ser improvisado no impulso do momento, como tampouco se pode improvisar um estado-maior geral ao estalar de uma guerra. Ele tem que ser sistematicamente preparado durante anos e décadas. Rosa Luxemburgo, a grande revolucionária e mártir da classe trabalhadora, sempre enfatizou a iniciativa revolucionária das massas como a força motriz da revolução. Nisso ela estava absolutamente correta. No curso de uma revolução, as massas aprendem com rapidez. Mas uma situação revolucionária, por sua própria natureza, não pode durar muito. A sociedade não pode ser mantida em estado permanente de fermentação, nem a classe trabalhadora em um estado de ativismo candente. Ou uma saída é mostrada a tempo, ou o momento será perdido. Não há tempo suficiente para experiências ou para os trabalhadores aprenderem pelo método da tentativa e erro. Numa situação de vida e morte, os erros são pagos muito caro! Assim, é necessário combinar o movimento “espontâneo” das massas com organização, programa, perspectivas, estratégia e táticas – em uma palavra, com um partido revolucionário liderado por quadros experientes. Não é preciso dizer que esse partido de quadros deve ganhar de forma paciente a confiança das massas através de meios democráticos.
O partido marxista, desde o início, deve se basear na teoria e no programa; o aparato é meramente um meio necessário para colocar esse programa na prática. Tal teoria e programa não surge ao estalar dos dedos, mas nada mais é do que o resumo da experiência histórica geral do proletariado. Sem esta, o partido não é nada. A construção de um partido revolucionário sempre começa com o trabalho lento e laborioso de reunir e educar os quadros, que constituem a espinha dorsal do partido durante toda a sua vida. Esta é a primeira metade do problema, mas somente a primeira metade. A segunda metade é mais complicada: como alcançar a massa dos trabalhadores com nossas ideias e programa? Esta não é, em absoluto, uma questão simples.
Deve um partido revolucionário reproduzir o comunismo?
O principal erro de nosso amigo anarquista é o de imaginar que um partido (ou uma “associação anarquista”) deve reproduzir ao máximo possível a futura sociedade comunista, isto é, uma associação livre de homens e mulheres. Mas isto é um completo equívoco do papel de um partido revolucionário.
Um partido revolucionário é uma ferramenta com o objetivo de derrubar o poder estatal existente. Ele não é, e não pode ser, uma imagem espelhada da futura sociedade que será criada na base da derrubada revolucionária do capitalismo. A plaina de um carpinteiro não se assemelha à cadeira ou mesa que é o produto final de seu trabalho. A espátula da alvenaria não se assemelha a uma parede.
Quando olhamos para a estátua de David de Michelangelo, ficamos sobrecarregados pelo imenso sentimento de humanidade e ardor. É difícil de se acreditar que esta pedra não é um corpo humano; tem-se a impressão de que se a tocarmos, a sentiríamos macia e cálida. No entanto, para criar essa maravilhosa obra-prima, Michelangelo teve que usar um cinzel afiado a partir do aço mais resistente e capaz de cortar a pedra mais dura.
Apesar das diferenças de tempo e assunto, a analogia com um partido revolucionário é precisa. Não é negócio de um partido revolucionário modelar-se na futura sociedade comunista onde toda opressão e coerção serão apenas uma má memória do passado. É nosso dever reunir os elementos mais conscientes e revolucionários da classe trabalhadora e da juventude em uma organização revolucionária disciplinada à qual se submete a tarefa de uma luta implacável para derrubar os opressores, criando as condições necessárias para o estabelecimento de uma sociedade genuinamente humana e democrática.
Na realidade, os anarquistas também querem criar um partido. Mas é um partido que não se adequa às tarefas revolucionárias que a classe trabalhadora enfrenta. Ele é tão inútil para os objetivos revolucionários quanto teria sido para Michelangelo tentar transformar um enorme pedaço de pedra em uma estátua de David usando um pincel em vez de um cinzel.
O papel da liderança
Bandeira Negra escreve:
“O argumento repetitivo de que a classe trabalhadora precisa de líderes não se difere de qualquer discurso da DIREITA que afirma que a igualdade é impossível, porque uns devem mandar e outros obedecer”.
Nosso amigo anarquista fala da classe trabalhadora de uma maneira muito abstrata e ignora completamente a realidade concreta. A classe trabalhadora não é uma massa homogênea, mas é composta de diferentes camadas. Alguns trabalhadores são mais atrasados; outros são mais avançados e com consciência de classe. Alguns são religiosos e se submetem à influência da igreja, enquanto outros se afastaram dos preconceitos religiosos. Alguns organizam sindicatos, outros não.
A realidade da luta de classes – algo que é um claramente um livro fechado para o nosso crítico anarquista – demonstra a completa falsidade da maneira como ele coloca a questão da liderança. Em cada fábrica sempre há um grupo de trabalhadores – uma minoria, em circunstâncias normais – que mantém a organização sindical e se levanta contra os patrões. Esses são os “líderes naturais” da classe trabalhadora.
Mesmo em uma greve de meia hora encontraremos liderança. E esta liderança não é improvisada ao sabor do momento, mas preparada durante todo um período de trabalho e luta. Esses trabalhadores avançados podem ser marxistas, anarquistas, reformistas ou pessoas sem opiniões políticas definidas (embora isto raramente ocorra, na prática). Mas, invariavelmente, serão pessoas que ganharam o direito de dirigir.
Vemos isso em todas as greves. A questão é se a greve é ou não é debatida democraticamente em uma assembleia. Alguns trabalhadores estão a favor da ação de greve e outros, contra. E frequentemente ocorre que uma só intervenção feita por um militante operário pode decidir o assunto. O que é isso senão liderança? O próximo passo é que alguém tem que ir e colocar o caso dos trabalhadores para a gerência. Quando chega o momento de se decidir sobre quem vai à porta do gerente, quem os trabalhadores escolhem? Eles não lançam uma moeda para cima para decidir nem elegem os elementos mais atrasados para defender seus interesses. Eles buscarão os elementos mais determinados e de mais consciência de classe que sejam capazes de representá-los – e, sim, também para dirigi-los. É unilateral interpretar a liderança como apenas impedindo ou pacificando a base. Bons líderes, que existem, também podem inspirar a base para a ação.
Tudo isso é realmente o ABC para qualquer trabalhador com a mínima experiência na luta de classes. Somente pessoas completamente ignorantes do movimento dos trabalhadores ou cegos pelos preconceitos anarquistas podem ter a menor dúvida sobre a importância da liderança ao nível do chão de fábrica.
Como a classe trabalhadora extrai conclusões revolucionárias
A classe trabalhadora não chega automaticamente e em massa a conclusões revolucionárias. Se fosse assim, a tarefa de construção do partido seria redundante. A tarefa de transformar a sociedade seria uma tarefa simples se o movimento da classe trabalhadora ocorresse em linha reta. Mas não é o caso. Durante um longo período histórico, a classe trabalhadora chega à compreensão da necessidade de organização. Através do estabelecimento de organizações, tanto de sindicatos e, em um nível mais elevado, de caráter político, a classe trabalhadora começa a se expressar como uma classe, com uma identidade independente. Na linguagem de Marx, ela passa de uma classe em si para uma classe para si. Esse desenvolvimento ocorre durante um longo período histórico através de todos os tipos de lutas, envolvendo a participação não apenas da minoria de ativistas mais ou menos conscientes, mas das “massas não politizadas” que, em geral, são despertadas à participação ativa na vida política (ou mesmo sindical) somente na base de grandes acontecimentos.
Como vimos, a classe trabalhadora em geral aprende da experiência prática, especialmente da experiência da luta de classes. Muitos trabalhadores passaram pela experiência das greves: conheceram vitórias e derrotas e extraíram certas lições de sua experiência. Consequentemente, os militantes trabalhadores mais experientes possuem o conhecimento necessário para organizar e dirigir uma greve. Eles não necessitam dos conselhos dos revolucionários – sejam marxistas ou anarquistas – para desempenhar esta função.
Contudo, quando se trata de situações revolucionárias, a questão é colocada de forma diferente. Quantos trabalhadores passaram pela experiência de uma greve geral? Não muitos. Mas a greve geral não é o mesmo que uma greve comum. Ela desafia a norma do capital de maneira direta. Quem dirige a sociedade, os patrões ou os trabalhadores? Em outras palavras, ela coloca a questão do poder. Uma greve geral não pode, portanto, ser abordada da mesma forma que uma greve normal. Regra geral, ela ou termina na classe trabalhadora tomando o poder ou em uma derrota decisiva.
No passado, os anarco-sindicalistas pensavam que uma greve geral por si mesma seria suficiente para realizar uma revolução. Mas esta ideia é profundamente equivocada. Os capitalistas podem esperar o tempo necessário para derrotar uma greve geral, mas a capacidade dos trabalhadores de sobreviver sem o pagamento, sem comida para suas famílias, tem limites definidos. Se a greve dura por muito tempo sem resolução, o ânimo dos trabalhadores começará a declinar e a greve será derrotada. Mesmo a greve mais tempestuosa não pode resolver a questão do poder. Vimos isto claramente na França em maio de 1968, onde a maior greve geral da história terminou em derrota. E esse foi precisamente um problema da natureza da liderança. Uma coisa é atacar o sistema e, ao fazer isto, paralisá-lo temporariamente; outra coisa é organizar a completa e detalhada tarefa de dissolver o velho governo, concordando com a sua substituição e, em seguida, organizando a defesa sistemática deste novo regime social. Sem uma organização política distinta, visível à classe trabalhadora e propondo medidas concretas, as greves gerais revolucionárias se pulverizam e o velho regime recupera o seu controle.
As causas da burocracia
Apesar ou mesmo por causa da rejeição generalizada do anarquismo à autoridade e à hierarquia, a teoria anarquista ironicamente não tem qualquer teoria coerente sobre liderança, autoridade ou poder. É assim porque os anarquistas tratam tais fenômenos de maneira abstrata e uniforme, quando na verdade não há tal coisa como “poder” como tal. Os marxistas, enquanto materialistas históricos, reconhecem que o poder emerge da desigualdade material acumulada e das contradições sociais resultantes. É uma ferramenta criada por seu portador – a classe econômica dominante – e é determinada por seus fins, que, em última análise, são fins materiais. A autoridade que os escravos impõem ao seu proprietário quando lutam por sua liberdade não é só diferente, mas também diametralmente oposta à autoridade do proprietário de escravos que os oprime.
O poder estatal surgiu à medida em que o desenvolvimento econômico criou as divisões de classe e serve a essas divisões. Ele é inseparável dos antagonismos sociais e existirá enquanto esses antagonismos existirem. Em vez de explicar isto, os anarquistas se concentram na denúncia do poder da classe dominante como “ilegítimo” e uma mentira, como se toda a história fosse um gigantesco truque miraculosamente imposto às massas por um feiticeiro sinistro. Ao fazer isto, eles mistificam a própria coisa que desprezam. Enquanto proclamam orgulhosamente platitudes tais como “nem deuses, nem amos” ou “somos ingovernáveis”, continuam condenados a serem governados porque não entendem as bases de sua opressão.
Como se explica o fenômeno da burocracia nas organizações dos trabalhadores? Nosso crítico pede ajuda ao reino nebuloso da psicologia:
“Diversas pesquisas na área da psicologia e pedagogia demonstram, por outro lado, que a autoridade e a hierarquia, longe de favorecer, atrapalham. A Experiência de Stanford é um belo exemplo de como a concentração de poder em um indivíduo pode causar problemas”
O Experimento Stanford foi realizado na Universidade de Stanford em agosto de 1971. Ele dividiu um grupo de estudantes voluntários em “guardas de prisão” e “prisioneiros”, para ver como eles reagiriam. Alguns dos “guardas” começaram a abusar dos “prisioneiros”. Muitos criticaram a validade do experimento, na medida em que seu organizador, o professor Philip Zimbardo, participava ativamente ao incentivar os participantes a se comportarem de certa maneira, isto é, ele estava longe de ser objetivo em sua abordagem. Verificou-se também que os traços prévios de caráter dos envolvidos influenciavam mais em seu comportamento que as condições do experimento. Houve tentativas de replicar o experimento que produziram resultados diferentes.
Lançou nosso sábio crítico anarquista essa referência passageira ao Experimento de Stanford para se atribuir uma aura de pessoa conhecedora de tais assuntos? Infelizmente, fez uma péssima escolha, pois tal experimento não tem nada a ver com a liderança das organizações dos trabalhadores. Os trabalhadores que se juntam às organizações de massa não são prisioneiros e os líderes não são guardas de prisão onipotentes.
Nosso crítico anarquista continua:
“A principal reclamação nesse tema é que anarquistas se opuseram ao aparelhamento do Sindicato por um partido pretensamente revolucionário. Oras, basta olharmos para o que ocorre quando Partidos aparelham o Sindicato para perceber o resultado de sempre: estagnação, corrupção, traição de classe e, muitas vezes, sectarismo e autoritarismo. A CUT aqui no Brasil é o maior exemplo disso – central está ligada ao PT, de quem até ontem a Esquerda Marxista fazia parte, lembremos” (ênfase minha)
A insinuação de nosso amigo anarquista é que todas as organizações terminam se tornando uma hierarquia burocrática. É verdade que as organizações como os sindicatos, que são formados sob o capitalismo e inevitavelmente sofrem das pressões do capitalismo, podem degenerar. Os líderes podem se corromper, perder contato com a base e vendê-la. Isto já aconteceu muitas vezes, inclusive no caso da CUT brasileira. No entanto, é completamente falso tratar as coisas dessa maneira geral, como se a história de nosso movimento fosse apenas uma história de burocracia e “traição de classe”. É falso apresentar a relação entre a classe trabalhadora e seus líderes em termos de hierarquia e obediência cega (“uns devem mandar e outros obedecer”). O movimento dos trabalhadores é geralmente democrático. A decisão de ir ou não ir à greve é decidida em assembleias democráticas. Os líderes grevistas são democraticamente eleitos. Se não agem de acordo com a vontade dos trabalhadores, podem ser destituídos e substituídos por outros. “Mandar e obedecer” não entra aqui.
Em vez de apenas denunciar essa degeneração, devemos nos esforçar para entendê-la. Por que degeneram as organizações dos trabalhadores? Por causa do mau caráter dos líderes dos operários? Por que eles têm “desejo de poder”, como nosso crítico anarquista parece acreditar com suas referências à psicologia individual? Será que a degeneração é o resultado inevitável da criação de um partido político e da luta pelo poder político, e que todos os partidos operários sempre traem? Se for este o caso, então a perspectiva para a classe trabalhadora seria realmente desagradável. Nosso amigo anarquista não proporciona nenhuma explicação séria para o fenômeno que tanto deplora. Para se encontrar as razões desta degeneração é necessário buscar não nos domínios enevoados da psicanálise ou nas estruturas formais dos partidos, mas no funcionamento real da sociedade de classes.
As organizações dos trabalhadores não existem no vácuo. Existem na estrutura do capitalismo e sofrem a pressão do capitalismo. Em certas condições, mesmo a melhor organização pode degenerar sob essas pressões, que exercem seu efeito mais poderoso nos estratos dirigentes. A formação de uma crosta burocrática é um reflexo dessa pressão. Não é um produto da liderança em si, mas de uma liderança corrompida pelos capitalistas. Durante um longo período de tempo a classe dominante desenvolveu mecanismos altamente eficientes e sofisticados para subornar e controlar os líderes operários.
Toda organização – as anarquistas, inclusive – sempre contém a possibilidade de degeneração. Enquanto formos obrigados a trabalhar dentro da sociedade capitalista, não podemos escapar das pressões do capitalismo. Naturalmente, não há nenhuma garantia absoluta contra a degeneração de qualquer organização. A vida em geral, e a luta de classes em particular, não nos oferece nenhuma garantia.
A classe trabalhadora tem meios para combater a perniciosa influência da burguesia dentro do movimento dos trabalhadores. É necessário participar ativamente na luta contra a burocracia para expurgar os carreiristas e traidores do movimento e para manter os sindicatos sob o controle da classe trabalhadora. Deixar esta luta de lado não ajuda a causa da revolução socialista, mas serve objetivamente aos interesses da burguesia e de seus agentes dentro do movimento dos trabalhadores, pois deixa as organizações de massa nas mãos de burocratas que, na ausência de pressão vinda de baixo, não terão problemas em capitular à pressão burguesa vinda de cima.
Portanto, em vez de nos abstermos devemos conduzir uma luta sistemática dentro do movimento dos trabalhadores contra a burocracia e exigir que nossos representantes sejam colocados sob o controle da base. Devemos exigir que todos os dirigentes sindicais, vereadores ou membros do Parlamento devam ser eleitos em intervalos regulares e sujeitos à revogação a qualquer momento. Nenhum representante dos trabalhadores deve receber um salário mais alto do que o de um trabalhador qualificado, e todas as despesas devem estar abertas à inspeção das fileiras.
Estes princípios básicos servirão para expurgar os burocratas e carreiristas das organizações dos trabalhadores e para assegurar que nossos representantes reflitam genuinamente os interesses e aspirações da classe, não os seus próprios interesses e ambições.
Os marxistas e as organizações de massa
Para não ser pego de calças curtas, nosso crítico anarquista adiciona insultos à injúria. Ele tem a audácia de afirmar que a traição dos líderes da CNT espanhola durante a Guerra Civil Espanhola estava,
“… mais próxima do marxismo, como vimos na participação trotskista da CMI dentro dos regimes burgueses do PT e do Syriza”
Com relação à nossa participação nas organizações de massa da classe trabalhadora, nosso amigo acha que é um vencedor. Como um garotinho passeando para mostrar a todos os seus sapatos novos, ele repete este fato como se fosse uma maldição condenatória dos marxistas em geral e da CMI em particular. Ao recorrer a esta tática, ele simplesmente desfila a sua ignorância da classe trabalhadora e de suas organizações e sua própria arrogância sectária.
Como uma ranhura repetitiva em um disco de vinil, reitera a mesma e monótono melodia:
“Alan Woods tenta colocar a culpa do descrédito das lideranças nas alas reformistas e burocráticas. Vale ressaltar que a Esquerda Marxista, hoje no Psol, até início de 2015 compunha o Partido dos Trabalhadores (PT). Esses trotskistas não viram problemas em pedir votos para Lula e Dilma mesmo vendo no que o partido havia se transformado.
“A setorial da CMI da Grécia também deu total apoio à eleição de Tsipras, do Syriza, que se recusou a atender o apelo popular e resistir a austeridade exigida pela Troika.
De fato, de ‘burocratas e carreiristas’, Alan Woods entende muito bem”
Esta é uma completa distorção da realidade. Primeiramente, nenhum membro da CMI se juntou a qualquer regime burguês, seja do PT, do Syriza ou de qualquer outro governo. O que é verdade é que em diferentes momentos os marxistas participaram em partidos de massa da classe trabalhadora em diferentes países, lutando lado a lado com as fileiras destas organizações para combater a burocracia e avançar o programa do socialismo revolucionário. Exatamente da mesma forma, os Amigos de Durruti lutaram lado a lado com os trabalhadores anarquistas da CNT contra a política traiçoeira dos líderes anarquistas. Os líderes da CNT, por outro lado, se juntaram a um governo burguês como ministros.
A participação dos marxistas nas organizações de massa do proletariado, longe de ser uma debilidade, representa, junto à sua clareza teórica e intransigência revolucionária, nossa principal força. Nossa participação nessas organizações, longe de representar participação no “regime”, baseia-se na luta implacável contra a burocracia para conquistar os trabalhadores e a juventude. Somente se pode libertar as massas da influência do reformismo estando com elas, passo a passo, na luta viva destas organizações, assinalando a cada passo que os reformistas não podem resolver os seus problemas. A recusa dos anarquistas em sujar as mãos com as organizações de massa dos trabalhadores que pretendem representar é uma mera confissão de impotência: abstencionismo estéril disfarçado sob uma fina camada de demagogia pseudorrevolucionária.
As massas devem testar os partidos e líderes na prática, porque não há outro meio. A massa da classe trabalhadora aprende dessa experiência prática. Não aprende dos livros, não porque careça de inteligência, como imaginam os esnobes de classe média, mas porque carece de tempo; o acesso à cultura e ao hábito da leitura não é algo automático, mas adquirido. Este processo de aproximações sucessivas é, ao mesmo tempo, dispendioso e lento, mas é o único possível. Em cada revolução – não somente a da Rússia em 1917, como também a da França no século XVIII e a da Inglaterra no século XVII – vemos processo semelhante, no qual, através da experiência, as massas revolucionárias, através de um processo de aproximações sucessivas, encontram o seu caminho até a ala mais consistentemente revolucionária. A história de cada revolução é, portanto, caracterizada pela ascensão e queda de partidos e líderes políticos, um processo no qual as tendências mais extremas sempre substituem as mais moderadas até que o movimento percorra o seu curso. Mas só podem testar os partidos e tendências políticas que existem realmente sob uma forma considerável; portanto, se os revolucionários estão para ganhar a liderança da classe trabalhadora no calor dos acontecimentos revolucionários, não há outro meio além da construção de tal organização como parte desta luta viva, que não é nada se não for política.
é, portanto, caracterizada pela ascensão e queda de partidos e líderes políticos, um processo no qual as tendências mais extremas sempre substituem as mais moderadas até que o movimento percorra o seu curso. Mas só podem testar os partidos e tendências políticas que existem realmente sob uma forma considerável; portanto, se os revolucionários estão para ganhar a liderança da classe trabalhadora no calor dos acontecimentos revolucionários, não há outro meio além da construção de tal organização como parte desta luta viva, que não é nada se não for política.
As teorias de Bakunin
Prescindamos dos serviços de interpretação de Bandeira Negra por enquanto e permitamos a Bakunin falar por si próprio. Em “On Representative Government and Universal Suffrage [Sobre Governo Representativo e Sufrágio Universal]”, de setembro de 1870, ele diz:
“Todo o sistema de governo representativo é uma imensa fraude apoiada nessa ficção de que os órgãos executivo e legislativo eleitos por sufrágio universal do povo devem ou mesmo podem representar a vontade do povo. O povo instintivamente busca duas coisas: a maior prosperidade possível junto com a maior liberdade possível para viver suas próprias vidas, para escolher, para agir. Eles querem a melhor organização de seus interesses econômicos junto com a completa ausência de todo poder político e toda organização política, uma vez que toda organização política deve inevitavelmente anular a liberdade do povo. Tal é a aspiração dinâmica de todos os movimentos populares”.
E continua:
“Para corrigir os defeitos óbvios deste sistema, os democratas radicais do Cantão de Zurique introduziram o referendo, a legislação direta do povo. O referendo também é um remédio ineficaz; outra fraude. Para votar inteligentemente sobre propostas feitas pelos legisladores ou medidas avançadas por grupos interessados, o povo deve ter tempo e o conhecimento necessário para estudar essas medidas minuciosamente… O referendo é significativo apenas nas raras ocasiões em que a legislação proposta afeta vitalmente e desperta todo o povo, e as questões envolvidas são claramente compreendidas por todos. Mas quase todas as leis propostas são tão especializadas, tão intrincadas, que somente especialistas políticos podem compreender como elas acabariam por afetar ao povo. O povo, naturalmente, sequer começa a entender ou a prestar atenção às leis propostas e votam por elas cegamente quando instado a fazê-lo por seus oradores preferidos.
“Mesmo quando o sistema representativo é melhorado por referendo, ainda não há controle popular e a liberdade real – sob governo representativo mascarado de autogoverno – é uma ilusão. Devido às suas dificuldades econômicas, o povo é ignorante e indiferente e só fica ciente das coisas que o afetam de perto. Eles entendem e sabem como conduzir seus assuntos cotidianos. Longe de suas preocupações familiares, ficam confusos, incertos e politicamente desconcertados. Eles têm um senso comum saudável e prático quando se trata de assuntos comuns. Estão bastante informados e sabem selecionar dentre eles os funcionários mais capazes. Sob tais circunstâncias, é possível um controle efetivo, porque o negócio público é conduzido sob os olhos vigilantes dos cidadãos e diz respeito de forma vital e direta às suas vidas diárias.
“É por isso que as eleições municipais sempre refletem melhor a verdadeira atitude e vontade do povo. Os governos provinciais e de condado, mesmo quando eleitos diretamente, já são menos representativos do povo. Na maioria das vezes, as pessoas não estão familiarizadas com as medidas políticas, jurídicas e administrativas pertinentes; as que estão além de sua preocupação imediata e quase sempre escapam a seu controle. Os homens encarregados dos governos local e regional vivem num ambiente diferente, muito distante do povo, que sabe muito pouco sobre eles. Não conhecem pessoalmente esses líderes e os julgam apenas por seus discursos públicos, cheios de mentiras para enganar o povo para que os apoie…. Se o controle popular sobre os assuntos locais e regionais é extremamente difícil, logo o controle popular sobre os governos federal ou nacional é totalmente impossível.
“Significa isso que nós, os socialistas revolucionários, não queremos sufrágio universal – que preferimos o sufrágio limitado, ou um único déspota? Não, absolutamente. O que sustentamos é que o sufrágio universal, considerado em si mesmo e aplicado em uma sociedade baseada na desigualdade econômica e social, não será mais que uma fraude e uma cilada para o povo; nada mais do que uma odiosa mentira dos democratas burgueses, o caminho mais seguro para consolidar sob o manto do liberalismo e da justiça a dominação permanente do povo pelas classes proprietárias, em detrimento da liberdade popular. Negamos que o sufrágio universal possa ser utilizado pelo povo para a conquista da igualdade econômica e social. Deve ser, sempre e necessariamente, um instrumento hostil ao povo, sobre o qual se apoia de facto a ditadura da burguesia”.
Aqui a natureza utópica do anarquismo se destaca com muita clareza. Esse esquema não tem nada a ver com a sociedade moderna ou com a atual classe trabalhadora. Ele é o produto de uma economia de pequenos produtores, vivendo em comunidades isoladas com pouco ou nenhum contato entre eles: isto é, a sociedade feudal.
Mas o mundo moderno não consiste de pequenas e isoladas comunidades locais, e sim de enormes cidades e fábricas, um mundo em que nem mesmo o maior estado-nação pode sobreviver a menos que participe no mercado mundial. A tarefa da revolução burguesa era romper a limitação do feudalismo, destruir as barreiras impostas pelos pedágios locais, as barreiras alfandegárias e os impostos e estabelecer o estado-nação. E, apesar da terrível natureza opressiva do capitalismo, esta era uma missão historicamente progressista.
A tarefa da revolução socialista agora é varrer todas as barreiras nacionais, abolir o estado-nação e alcançar o socialismo mundial. A globalização significa a dominação esmagadora do mercado mundial, que é o elemento mais decisivo no mundo do século XXI. Também é a condição material para a criação de uma futura federação socialista – cuja consecução constitui a grande tarefa histórica do proletariado. No longo prazo, as melhores garantias de êxito do comunismo serão sua construção sobre uma base altamente produtiva, de modo que haja abundância material para todos e não uma luta pela escassez, e a eliminação dos antagonismos nacionais. Ambos exigem uma revolução mundial.
O que Bakunin diz sobre isto? O que Bakunin está dizendo é que nas grandes cidades com centenas de milhares ou milhões de habitantes a democracia real é impossível. Desse ponto de vista, sufrágio universal (votar nas eleições) é ou fútil, ou reacionário, ou ambos. As eleições são apenas uma fachada hipócrita que disfarça a tirania da classe dominante.
A inevitável conclusão é que o comunismo somente é possível (e só em grau relativo) em comunidades de tamanho pequeno e médio onde a democracia cara-a-cara pode ser posta na prática. Não é de admirar que Bakunin encontrou o seu maior apoio entre os relojoeiros e artesãos suíços e na Espanha e Itália, onde o capitalismo ainda não tinha raízes firmes.
Além disso, a ideia de que a democracia somente pode florescer em pequenas comunidades locais é falsa. Não faltam burocracia, carreirismo e corrupção nas prefeituras locais, nas pequenas aldeias assim como nas grandes cidades. E o que dizer sobre as grandes fábricas? Vimos em muitas greves como a democracia dos trabalhadores pode florescer nas grandes fábricas. Nos pequenos locais de trabalho, em contraste, os trabalhadores têm dificuldade em criar um sindicato. E o representante sindical em um pequeno local de trabalho é muito provável que seja um fantoche dos patrões. A ideia de que não pode haver burocracia em pequenos círculos onde todos se conhecem entre si é risível. Pode-se ter burocracia em um clube de futebol ou em um círculo de tricô de senhoras idosas. E sim, você pode ter burocracia em um círculo anarquista de cinco pessoas que gastam seu tempo discutindo sobre os males da hierarquia.
Pode-se argumentar que na sociedade atual os trabalhadores têm uma melhor compreensão das maquinações dos políticos nacionais e das grandes questões como a austeridade que dos obscuros detalhes do governo local. Do ponto de vista dos trabalhadores, ao contrário do argumento dos economistas burgueses, ser pequeno enfaticamente não é bonito.
“Antiautoritarismo”
Bandeira Negra nos informa que,
“O anarquista russo Mikhail Bakunin que sempre lutou contra a centralização do poder é acusado de ser ditador” (ênfase minha)
Estamos legitimamente surpresos de que a pessoa que se diz tão versada na teoria e na história do anarquismo não tenha consciência de que Bakunin, longe de se opor à centralização do poder, estabeleceu uma organização que era extremamente centralizada, hierárquica e controlada com mão de ferro por um só indivíduo: Mikhail Bakunin, ou, como ele gostava de ser chamado na época, o “cidadão B”.
A acusação de autoritarismo e de tendências ditatoriais pode, com muito maior justiça, ser dirigida contra Bakunin do que contra Marx. É interessante notar que as estruturas “autoritárias” da Internacional contra as quais Bakunin protestava de forma tão veemente em 1871 e 1872 foram introduzidas na Internacional sob moção dos partidários de Bakunin, com o apoio de Bakunin. Isso foi num momento em que ele estava com o objetivo de ganhar o controle da Internacional. Somente quando o seu plano fracassou, Bakunin de repente descobriu o caráter “autoritário” da estrutura e das regras da Internacional.
Os métodos de Bakunin ficaram completamente expostos pelo notório caso de Nechayev. Nechayev era um jovem fanático, um revolucionário aventureiro que apareceu em Genebra na Primavera de 1869 alegando ter escapado da Fortaleza de Pedro e Paulo. Ele também alegou representar um comitê todo-poderoso que derrubaria a Rússia czarista. Tudo isto era pura invenção. Ele nunca esteve na Fortaleza de Pedro e Paulo e o comitê nunca existiu.
No entanto, Bakunin ficou impressionado com “o jovem selvagem”, “o jovem tigre”, como ele costumava chamar Nechayev. Nechayev era um discípulo devotado de Bakunin. Mas, diferentemente de seu mestre, Nechayev sempre se caracterizou por uma consistência de ferro. Bakunin havia pregado que o lumpemproletariado era o verdadeiro portador da revolução social. Ele considerava os criminosos como elementos desejáveis de recrutar para o movimento revolucionário. Assim, era lógico que seu discípulo Nechayev concluísse que era necessário organizar um grupo de lúmpens com o propósito de “expropriação” na Suíça.
No Outono de 1869, Nechayev retornou à Rússia com o plano de estabelecer um grupo bakuninista ali. Não há dúvida de que ele foi com o total apoio de Bakunin. Levou com ele uma autorização escrita de Bakunin que declarava que ele era o “representante acreditado” de uma suposta Aliança Revolucionária Europeia – outra invenção de Bakunin. Ele até fez um apelo aos oficiais do exército czarista pedindo-lhes que se colocassem incondicionalmente à disposição do “comitê”, embora de fato este não existisse.
Essa organização bakuninista era absolutamente hierarquizada e ditatorial. Tudo era decidido por Nechayev e nenhuma dissidência era permitida. Quando um membro do grupo de Nechayev, um estudante chamado Ivanov, começou a duvidar da existência do comitê secreto, Nechayev o assassinou. Isto levou a numerosas prisões. O julgamento de Nechayev iniciou-se em São Petersburgo em julho de 1871 e todo o horrível caso foi publicamente exposto. Havia mais oito acusados, a maioria estudantes. O próprio Nechayev fugira convenientemente para Genebra, onde estava sob a proteção de seu líder e professor Bakunin.
O caso Nechayev causou muitos danos ao movimento na Rússia e internacionalmente. Afetou a Internacional porque Nechayev deixou as pessoas acreditarem que estava agindo em seu nome, quando na verdade ele estava operando em segredo como um agente de Bakunin. Mais tarde, para explicar esse miserável assunto e absolver Bakunin de sua responsabilidade pessoal por ele, alegou-se que Bakunin caíra sob a influência de Nechayev, que o enganou e o usou para os seus próprios objetivos.
Mas foi Bakunin quem lhe forneceu documentos falsos que pretensamente seriam da Internacional e que foram assinados por ele. Foi Bakunin quem escreveu a maior parte, senão todas, das proclamações e manifestos do não-existente comitê e foi Bakunin quem defendeu Nechayev depois que ele fugiu da cena do seu crime, descrevendo o assassinato do desafortunado Ivanov como “um ato político”. Enquanto isso, a maioria dos estudantes que foram levados a julgamento foi sentenciada a longos períodos de prisão ou a uma morte em vida nas minas da Sibéria.
Pan-Eslavismo
Para sujar ainda mais a água, nosso crítico anarquista também traz a questão do Pan-Eslavismo. Agora ninguém pode contestar o fato de que Bakunin era um dedicado defensor dessa tendência, que ele via como um movimento revolucionário. Marx e Engels, pelo contrário, denunciaram-na como um fenômeno contrarrevolucionário.
Bandeira Negra mais uma vez nos regala com uma de suas inumeráveis semicitações arrancadas do contexto e apresentadas de forma completamente falsa e desonesta. Ele escreve:
“Marxistas normalmente acusam Bakunin de paneslavista, no entanto este nunca disse algo que soasse como Engels ao afirmar que ‘À verborreia sentimental sobre a fraternidade, que aqui nos é oferecida em nome das nações contra-revolucionárias da Europa, nós respondemos que o ódio à Rússia foi e continua a ser a primeira paixão revolucionária dos alemães’ e que ‘nós só podemos assegurar a revolução se recorrermos ao mais decidido terrorismo contra esses povos eslavos’. Também pede ‘Luta, ‘luta implacável de vida ou morte’, contra o eslavismo que atraiçoa a revolução, luta de aniquilamento e terrorismo sem contemplações, não no interesse da Alemanha, mas no interesse da revolução’. Não sendo o suficiente, ‘A guerra generalizada que rapidamente se desencadeará há-de reduzir a pó essa liga particularista dos eslavos e há-de apagar até o nome de todas essas pequenas nações obstinadas. A próxima guerra mundial não só fará desaparecer do globo terrestre as classes e as dinastias reacionárias, mas igualmente povos reacionários inteiros. E também isto será um progresso’. (Engels, Democratic Pan-Slavism, The Magyar Struggle)”
O propósito aqui é apresentar Engels como um racista e antieslavista. Mas qualquer um que quiser ler o texto completo de Engels, que está facilmente disponível na internet (ver “Democratic Pan-Slavism”, fevereiro de 1849), verá que não há nenhum racismo.
Engels assinala corretamente que os movimentos nacionais dos eslavos do sul estavam sendo utilizados como uma fachada para as intrigas contrarrevolucionárias do czarismo russo. Não há absolutamente nenhuma dúvida de que este era o caso no momento em que Engels estava escrevendo. O czar posava como o Pai dos Eslavos, como seu protetor na Europa, particularmente nos Bálcãs.
A cínica falsidade do chamado pan-eslavismo é demonstrada pelo fato de que uma das mais importantes nações eslavas, a Polônia, foi brutalmente esmagada sob o calcanhar do czarismo russo. Para os poloneses, o czar não era nem um protetor nem um libertador, mas um tirano sanguinário. Na Revolução de 1848-1849, o czar se utilizou dos serviços dos eslavos do sul (os croatas) para afogar o movimento em sangue.
Quando as revoluções de 1848 ocorreram em muitos países europeus, a Rússia em particular foi o baluarte da reação, e é claro que Engels está se referindo ao regime czarista russo, não ao povo russo como tal. O racismo antieslavo e antirrusso não entrou nisso. Vamos reproduzir todo o parágrafo de onde nosso anarquista brasileiro toma sua citação.
“Às frases sentimentais sobre fraternidade que nos estão sendo oferecidas aqui em nome das nações mais contrarrevolucionárias da Europa, respondemos que o ódio aos russos foi e ainda é a primeira paixão revolucionária entre os alemães; que a ele foi acrescentado o ódio dos tchecos e croatas à revolução, e que somente pelo uso mais determinado do terror contra esses povos eslavos podemos, junto aos poloneses e magiares, salvaguardar a revolução. Sabemos onde os inimigos da revolução estão concentrados, isto é, na Rússia e nas regiões eslavas da Áustria, e sem frases delicadas, nenhuma alusão a um indefinido futuro democrático para esses países pode nos deter de tratar nossos inimigos como inimigos”.
Não é ao povo russo que Engels considera como um inimigo, mas ao papel contrarrevolucionário da Rússia czarista. E ele nomeia os poloneses como uma das principais nações revolucionárias. Mas estes também são eslavos! Mais tarde a situação mudou radicalmente, com o desenvolvimento de um movimento revolucionário na própria Rússia. Em anos posteriores há muitos textos em que Marx e Engels olhavam com entusiasmo para os desenvolvimentos na Rússia, à medida em que a situação mudava.
Aqui está o que Engels escreveu em seu artigo de 1857, “Russia and the Social Revolution [A Rússia e a Revolução Social]”, publicado em Volksstaat em 21 de abril de 1875:
“A trajetória futura da Rússia é da maior importância para a classe trabalhadora alemã porque o atual império russo é o último grande centro de apoio de todas as forças reacionárias na Europa Ocidental. Isto ficou comprovado de forma conclusiva em 1848 e 1849. Como a Alemanha fracassou em criar uma insurreição na Polônia em 1848 e em declarar guerra contra o czar russo (como tinha sido exigido por Neue Rheinische Zeitung desde o início), este mesmo czar pôde em 1849 esmagar a revolução húngara que tinha penetrado nos muros de Viena; pôde, em 1850, tomar assento no julgamento em Varsóvia acerca da Áustria, da Prússia e dos pequenos estados alemães; e pôde, finalmente, restabelecer o velho Bundestag Alemão. E há somente alguns dias – no início de maio de 1875 – o czar russo recebeu a homenagem de seus vassalos em Berlim e, assim, comprovou que ele ainda é hoje, como o foi há vinte e cinco anos, o árbitro da Europa. Assim, nenhuma revolução na Europa Ocidental pode ser definitiva e finalmente vitoriosa enquanto o atual estado russo existir ao seu lado. A Alemanha é o seu vizinho mais próximo. A Alemanha deve receber o primeiro choque dos exércitos da reação russa. A derrubada do estado czarista russo e a dissolução do império russo é, portanto, uma das primeiras condições para a vitória final do proletariado alemão”.
Alguns anos mais tarde, em 1885, em uma carta a Vera Zasulich, ele escreveu:
“Estou orgulhoso de saber que a juventude russa tem um partido que aceita francamente e sem ambiguidades as grandes teorias econômicas e históricas de Marx e que rompeu resolutamente com todas as tradições anarquistas e levemente eslavófilas de seus predecessores…. O que sei ou acredito saber sobre a situação na Rússia me faz pensar que os russos se aproximam rápido de seu 1879. A revolução deve estalar aí dentro de um tempo; pode estalar a qualquer dia. Nessas circunstâncias, o país é como uma bomba carregada a que só se necessita acender a mecha” (Engels. “Carta à Vera Ivanovna Zasulich em Genebra. Londres, 23 de abril de 1885”. in: Correspondência Marx-Engels. Moscou, 1982. p. 361-363).
Antissemitismo
Não satisfeito em acusar Marx e Engels sem a menor base de serem antieslavos, Bandeira Negra agora volta a mergulhar nas profundezas das já turvas águas de sua diatribe antimarxista. Agora ele nos informa, sem se ruborizar, que Karl Marx era um antissemita. O pequeno detalhe de que o próprio Marx era judeu não parece preocupar o nosso amigo minimamente. Evidentemente ele se baseia nos velhos jornalistas que diziam: “Não deixe os fatos estragarem uma boa história”. Vamos ver agora como ele realiza esta última façanha de acrobacias intelectuais. Ele escreve:
“Por fim, deixemos a opinião de Marx sobre judeus em A Questão Judaica, para responder sobre a acusação de antissemitismo: ‘Só então pôde o judaísmo impor seu império geral e alienar o homem alienado e a natureza alienada, convertê-los em coisas venais, em objetos entregues à sujeição da necessidade egoísta, à negociação e à usura.’; ‘A emancipação social do judeu é a emancipação da sociedade do judaísmo.’”
Nosso anarquista brasileiro não é o primeiro a afirmar que Marx era antissemita. Muitos escritores anticomunistas de direita tentaram fazer o mesmo, usando exatamente o mesmo método, isto é, citando erroneamente “A Questão Judaica” de Marx (1843). Mas qualquer um que se dê ao trabalho de ler o texto de Marx verá que, de fato, é uma poderosa defesa dos direitos dos judeus. Foi escrito como uma polêmica contra Bruno Bauer, que questionava “como podem os judeus obter direitos civis até que os próprios alemães obtenham direitos civis?”. Marx estava a favor de se dar plenos direitos de cidadania aos judeus, quer renunciassem ou não ao judaísmo.
Marx escreve:
“O judeu alemão enfrenta, de fato, a carência de emancipação política em geral e a assim chamada cristandade do Estado. Para Bauer, a questão judaica tem, contudo, um alcance geral, independentemente das condições alemãs específicas. Trata-se das relações entre religião e Estado, da contradição entre as cadeias religiosas e a emancipação política. A emancipação da religião se coloca como condição tanto para o judeu que se quer emancipar politicamente quanto para o Estado que o emancipa e deve, ao mesmo tempo, ser emancipado”.
Bruno Bauer era da opinião de que os judeus tinham que renunciar ao seu judaísmo, isto é, deixar de ser judeus, antes de lhes serem concedidos plenos direitos políticos. Marx era da opinião oposta.
Mais adiante lemos no texto de Marx:
“A emancipação política do judeu, do cristão e do homem religioso em geral é a emancipação do Estado do judaísmo, do cristianismo e, em geral, da religião”.
Aqui nosso crítico – mais uma vez – tenta lançar poeira em nossos olhos citando Marx completamente fora do contexto. Desnecessário dizer, as citações acima provam absolutamente fora de qualquer dúvida que Marx não era antissemita. No entanto, é preciso perguntar: por que ele teve de trazer esse argumento absurdo sobre o alegado antissemitismo de Marx? A razão é óbvia. Bandeira Negra deseja desviar a atenção do fato estabelecido de que, em seus ataques contra Marx, Bakunin desceu ao mais baixo nível de antissemitismo.
Por exemplo, ele escreveu em 1872:
“É possível que Marx chegue teoricamente a um sistema de liberdade ainda mais racional do que o de Proudhon – mas ele não tem o instinto de Proudhon. Como alemão e judeu, ele é autoritário da cabeça aos pés. Daí vêm os dois sistemas: o sistema anarquista de Proudhon ampliado e desenvolvido por nós e liberto de toda a sua bagagem metafísica, idealista e doutrinária, aceitando a matéria e a economia social como a base de todo desenvolvimento na ciência e na história. E o sistema de Marx, o chefe da escola alemã de comunistas autoritários” (Citado por James Joll em seu livro “The Anarchists” a partir do texto “Bakunin und die Internationale in Italien”, de Nettlau. Londres, 1964. p. 90. Ênfase minha).
Este não é um exemplo isolado, embora geralmente Bakunin preferisse atacar Marx como um alemão, apelando para os preconceitos nacionais dos franceses em particular, na sequência dos horrores da Guerra Franco-Prussiana. A Conferência de Londres da IWA tinha dado ao Conselho Geral autoridade para renegar todos os alegados órgãos da Internacional que, como o Progress e o Solidarité no Jura, discutiam questões internas da Internacional em público. Os bakuninista mudaram o nome de Solidarité para La Révolution Sociale, que imediatamente começou um ataque feroz contra o Conselho Geral da Internacional, que é descrito como o “Comitê alemão liderado por um cérebro à la Bismarck”.
Foi uma tentativa escandalosa de jogar com os preconceitos antigermânicos dos franceses. Marx escreveu a um amigo estadunidense:
“Refere-se ao imperdoável fato de que nasci alemão e que, de fato, exerço uma influência intelectual decisiva sobre o Conselho Geral. Nota bene: o elemento alemão no Conselho Geral é numericamente dois terços mais fraco do que o inglês e o francês. O crime é, portanto, que os elementos inglês e francês sejam dominados (!) em questões de teoria pelo elemento alemão e considerem este domínio, isto é, da ciência alemã, útil e mesmo indispensável” (Marx a Friedrich Bolte. Nova Iorque, 23 de novembro de 1871).
Deixamos em silêncio as acusações igualmente absurdas de que Marx, além de ser racista, antieslavo e antissemita, também era imperialista (!). A vida é realmente muito curta e já estamos cansados de nadar nas águas sujas do insulto e da calúnia. Retornemos por um momento a questões políticas sérias.
O estado e a revolução
Na luta contra o estado capitalista, os anarquistas argumentam que não necessitamos absolutamente de um estado: a classe trabalhadora meramente derrubará o capitalismo e procederá diretamente para organizar-se espontaneamente em uma livre associação de produtores. Esta é uma ideia muito agradável, mas não tem absolutamente nada a ver com a realidade. Ela negligencia uma série de fatos importantes, fatos que devem ser conhecidos por qualquer pessoa que leve a revolução a sério.
Concordamos com os anarquistas que o estado burguês é um instrumento monstruoso de opressão, um parasita gigantesco e inchado que suga o sangue vital da sociedade. Não pode haver nenhuma questão de reforma do estado. Ele deve ser derrubado, destruído e completamente erradicado. Sobre isto não há nenhuma diferença entre nós. Também concordamos que na futura sociedade comunista não haverá nenhum estado. O estado será dissolvido e substituído por uma forma inteiramente diferente de organização em que homens e mulheres livres determinarão seu próprio destino de forma harmoniosa.
Sim, concordamos sobre tudo isso. Mas coloca-se a questão: como alcançar esse objetivo? Como ir de “A” para “B”? A essa questão nosso amigo anarquista nunca proporcionou uma resposta satisfatória. Vamos colocar a questão concretamente.
A classe dominante durante séculos ergueu um aparato formidável – o poder estatal – para defender seu domínio de classe. E toda a história nos mostra que a classe dominante nunca entregará o seu poder, riqueza e privilégios sem luta. Os banqueiros e capitalistas possuem um poder centralizado baseado no exército, na polícia e nos serviços de inteligência, na mídia, no sistema educacional, na igreja, nas prisões, no judiciário etc. Todas essas coisas serão usadas na tentativa de impedir que os trabalhadores tomem o poder em suas próprias mãos. Esses são os fatos da vida.
Deve ser evidente para qualquer pessoa pensante que a derrubada do estado existente não será uma tarefa fácil. Requer cuidado, planejamento e preparação. Naturalmente, a revolução não pode ser feita por qualquer pequeno grupo de conspiradores (o mito vendido pelos oponentes burgueses da Revolução de Outubro de que ela foi um “golpe” organizado por Lenin e Trotsky é um absurdo, além de não resistir à menor análise). As revoluções são feitas pelas massas e pelo movimento das massas.
Como tantas vezes na história um numeroso exército composto de valentes e dedicados lutadores foi derrotado por uma força disciplinada muito menor de soldados profissionais liderados por oficiais experientes e competentes? É suficiente percorrer as páginas da Guerra Gálica de César para se encontrar a resposta a esta pergunta. Simplesmente confiar na iniciativa das massas – embora seja crucial para o êxito da revolução e para o estabelecimento de um estado democrático dos trabalhadores – não será suficiente para derrubar e derrotar as forças centralizadas e disciplinadas à disposição da classe inimiga.
Alguns anarquistas contrapõem a isso a ideia de uma milícia federal dos trabalhadores para defender a revolução, na qual cada grupo local goza de autonomia e não existe nenhum “centro autoritário” para comandar. Mas as revoluções não são coisas simples. A burguesia se utilizará de todos os meios à sua disposição para confundir as massas. Encontrará pontos de apoio nas camadas mais conservadoras da população. Mesmo a mais democrática e popular das revoluções dos trabalhadores encontrará camadas que simpatizam com a contrarrevolução em minorias da classe trabalhadora. A burguesia tentará se utilizar de tais pontos de apoio em sua luta contra a revolução. Em tais circunstâncias, como, por exemplo, uma guerra civil revolucionária, deve a revolução manter-se à margem e permitir que essas minorias apoiem ativamente a “autonomia” da contrarrevolução para sabotar a revolução? De fato, tal situação demonstra que nas condições modernas não pode haver nenhuma autonomia real. Qualquer grupo que exercite sua “autonomia” para minar a revolução está, de fato, impondo sua autoridade à revolução, pelo menos na medida em que tenham algum êxito. Por essas razões, o poder revolucionário deve ser centralizado e altamente coordenado – na condição de que este centro esteja sob o controle democrático dos trabalhadores revolucionários.
Para derrotar o estado burguês, o proletariado necessita construir seu próprio exército – um exército revolucionário. Lenin explicou que o estado, despido de tudo o que não é essencial, são corpos de homens armados. Para derrubar o estado burguês, os trabalhadores devem organizar seu próprio poder estatal, baseado nos órgãos democráticos de controle dos trabalhadores e nas milícias dos trabalhadores. Este não tem nada a ver com o monstruoso e opressivo estado dos latifundiários e capitalistas. Mas é absolutamente necessário contrapor a essa monstruosidade a alternativa de um estado dos trabalhadores.
A Revolução Espanhola
A Revolução Espanhola de 1931-1937 é mais um exemplo trágico das consequências da falta de liderança em uma situação revolucionária.
Sobre o papel da CNT na Revolução Espanhola, nosso crítico novamente põe palavras em minha boca ao escrever que: “Ele [Alan Woods] alega que a CNT falhou em não promover a Revolução e compor um governo burguês. Concordamos completamente. Não é a toa que qualquer anarquista hoje em dia concorda plenamente com as posições de Durruti”.
Bandeira Negra, de fato, afirma ser um admirador do grande revolucionário espanhol José Buenaventura Durruti. Mas Durruti agiu não como um anarquista, mas como um bolchevique. Ele organizou um exército revolucionário e travou uma guerra revolucionária contra os fascistas. Se sua política fosse seguida pelos líderes da CNT, a revolução poderia ter tido êxito não apenas na Catalunha como também no restante da Espanha. Foi por esta razão que ele foi assassinado.
A sabedoria retrospectiva é, naturalmente, a mais barata de todas. É muito fácil lutar as velhas batalhas e ganhá-las todas sem disparar um tiro. Mas o que tem de se explicar aqui é: como o maior movimento anarquista do mundo pôde trair a classe trabalhadora e destruir a revolução espanhola? Assim como a conduta de Kropotkin em 1914, isso é descartado por nosso crítico como um “erro da CNT”, um simples erro que todos podem cometer, como esquecer um guarda-chuva no ônibus ou calçar meias de cores diferentes pela manhã.
Com essa lábia insincera, espera-se que se engula o fato de que os líderes da principal organização dos trabalhadores da Espanha no momento da verdade se juntaram ao governo burguês, traíram a revolução e até mesmo ordenaram aos trabalhadores de Barcelona entregar as armas e se render indefesos nas mãos da contrarrevolução stalinista.
Mas não se preocupe com isso. Nosso amigo anarquista tem uma explicação pronta e muito conveniente à mão. A conduta dos líderes da CNT, veja você, “foi justamente trair um dos princípios anarquistas, a não participação no Estado”. Esta é uma “explicação” que não explica nada, em absoluto. Pelo contrário, foi precisamente a aplicação da teoria anarquista do estado que foi responsável pela derrota na Catalunha.
Os anarquistas simplesmente rejeitam o estado em geral e por princípio. À primeira vista esta posição parece muito revolucionária. Mas, na prática, acaba sendo precisamente o oposto. Para provar esse ponto devemos passar da teoria do anarquismo a sua prática. Em 1936, os trabalhadores anarquistas – o setor mais corajoso e revolucionário da classe trabalhadora espanhola – se levantaram em insurreição em Barcelona e esmagaram os fascistas que estavam se preparando para se juntar à rebelião de Franco.
Em um curto espaço de tempo os trabalhadores estavam no controle. As fábricas foram ocupadas sob controle operário e o único poder em Barcelona eram as milícias armadas dos anarquistas da CNT e do POUM de esquerda. Como resultado das ações heroicas dos trabalhadores anarquistas em Barcelona, a reação fascista foi esmagada. O velho estado burguês ficou balançando no ar sem nenhum apoio. Na realidade, o poder estava nas mãos da classe trabalhadora armada. Tudo o que se necessitava era que a CNT prendesse o governo burguês e declarasse que o poder estava nas mãos da classe trabalhadora.
O fato foi reconhecido por Companys, o presidente da Generalitat, o governo nacionalista burguês da Catalunha. Ele convidou os líderes anarquistas ao seu escritório e se dirigiu a eles nos seguintes termos: “Bem, cavalheiros, parece que vocês têm o poder. Vocês deveriam formar o governo”. Os líderes anarquistas, de forma indignada, recusaram essa proposta alegando que se opunham a todos os governos. Este foi o erro fatal que destruiu a revolução.
Seria uma questão simples convidar os trabalhadores para eleger representantes dos comitês de fábrica e das milícias dos trabalhadores para um conselho central que assumisse o controle da sociedade e que apelasse aos trabalhadores e camponeses do restante da Espanha a seguir o seu exemplo. Mas não fizeram isso. Em vez disso, permitiram que o governo burguês de Companys continuasse a existir, dando-lhe tempo suficiente para construir uma base com a assistência dos stalinistas e logo organizar uma contrarrevolução e esmagar os trabalhadores.
Se os anarquistas não gostavam da palavra “estado”, poderiam tê-lo chamado de comuna ou de qualquer outra palavra que quisessem. Na Rússia ele foi chamado de poder soviético. A palavra que se usar é bastante imaterial. Mas o que é absolutamente necessário em uma revolução é que a classe trabalhadora derrube o velho estado e tome o poder em suas próprias mãos. Recusar-se a fazer isso inevitavelmente leva à contrarrevolução e ao restabelecimento do velho e opressivo poder estatal. Isto é precisamente brincar irresponsavelmente de revolução.
Foi esse realmente um “erro trágico” resultante de uma falha na aplicação da teoria anarquista do estado? Longe disso! Os líderes anarquistas se recusaram a organizar um estado dos trabalhadores precisamente por conta de seus preconceitos anarquistas contra “todos os estados em geral”. Na verdade, estavam levando a teoria anarquista do estado ao pé da letra. Eles rejeitaram a política pensando que o controle operário nas fábricas simplesmente significava que eles tinham uma “nova economia social” e que não necessitavam tomar o poder. Defendiam uma greve geral de massas como uma alternativa à política. Como a greve geral vai continuar a desmantelar o velho governo, o exército, a polícia etc. e a organizar uma nova forma de sociedade e uma economia publicamente reconhecida e aceita é sempre deixado vago, naturalmente.
Para piorar as coisas, os mesmos líderes anarquistas que se recusaram a estabelecer o poder estatal dos trabalhadores entraram posteriormente no governo burguês como ministros – o mesmo governo que estrangulou a revolução em maio de 1936. É um fato que os líderes anarquistas, como Federica Monseny (que foi Ministra da Saúde do governo republicano), foram pessoalmente a Barcelona persuadir os trabalhadores anarquistas a depor suas armas. As duas traições estão ligadas – seu fracasso em apoderar-se do poder sobre uma base revolucionária os levou a unir-se mais tarde, em desespero, ao governo burguês que combatia sem muita vontade os fascistas de Franco. Isto é uma traição elevada ao enésimo grau.
Hoje em dia, anarquistas como Bandeira Negra criticam o comportamento dos líderes da CNT por entrar em um governo burguês como uma traição dos princípios anarquistas. O que não sabem e não podem explicar é como a CNT, tendo o poder ao seu alcance, permitiu que o poder escapasse entre os seus dedos e passasse para as mãos da contrarrevolução. Foi esta a verdadeira traição à revolução e à classe trabalhadora. E ela flui diretamente das falsas e desastrosas teorias do anarquismo.
A revolução egípcia
Se a Revolução Russa mostra a importância da liderança no sentido positivo, muitas outras experiências mostram a mesma coisa de forma negativa e trágica. Penso principalmente na magnífica revolução egípcia, onde as massas se movimentaram espontaneamente, sem um partido ou liderança, para derrubar o regime tirânico de Mubarak.
Temos aqui, por um lado, um exemplo maravilhoso do poder de um movimento espontâneo de massas envolvendo milhões de pessoas. Por outro lado, vemos cruelmente expostas as limitações de tal movimento. As massas mostraram uma coragem tremenda ao confrontar um regime brutal e ditatorial, arriscando suas vidas pela causa da revolução. Tiveram êxito na derrubada primeiro de Mubarak e depois de Morsi.
Nesse último caso, 17 milhões de pessoas saíram às ruas. Esse movimento na verdade não tem nenhum paralelo na história. As massas egípcias derrubaram o governo. Mas o que aconteceu depois? Na verdade, o poder estava nas ruas esperando que alguém o recolhesse. Mas, na ausência de uma força dirigente, de um partido e liderança revolucionários, as massas permitiram que o poder escorregasse através de seus dedos. Em vez de um governo dos trabalhadores e camponeses, o Egito terminou em uma ditadura militar brutal.
Se houvesse no Egito naquele momento um partido revolucionário como o Partido Bolchevique, toda a situação teria sido diferente. Seria uma questão simples eleger delegados a partir dos locais de trabalho e das aldeias, unindo-os em um comitê revolucionário e proclamando um governo revolucionário. Mas isto não foi feito e a revolução se transformou em contrarrevolução com as mais trágicas consequências para o povo do Egito. Por quê? Somente por causa da falta do que os marxistas chamam de fator subjetivo: o partido e a liderança.
Poderiam as massas egípcias adquirir experiência suficiente para tirar as necessárias conclusões para a tomada do poder sem um partido? A própria pergunta se responde. Não o fizeram porque não tiveram o luxo do tempo para obterem uma compreensão clara do que era necessário. Sem a necessária liderança, as massas estavam confusas, hesitavam e não sabiam o que fazer com o poder que estava em suas mãos.
Ao contrário das confiantes afirmações de Bandeira Negra, as massas egípcias não “evoluíram para o socialismo”. Em vez disso, foram entregues de mãos e pés atados à terna misericórdia da contrarrevolução. E a mesma coisa foi vista, mais de uma vez, na história dos últimos cem anos de um país a outro. Nosso amigo anarquista não pode ver nada disso. Mas, no caso, não há ninguém mais cego do que aquele que não quer ver.
A “ditadura do proletariado”
Ao descrever o estado de transição entre o capitalismo e o socialismo, Marx falou da “ditadura do proletariado”. Este termo levou a um sério mal-entendido. Hoje em dia, a palavra ditadura tem conotações que eram desconhecidas para Marx. Numa época que conheceu os horríveis crimes de Hitler e Stalin, ela evoca visões de pesadelo de um monstro totalitário, de campos de concentração e polícia secreta. Mas essas coisas ainda não existiam sequer na imaginação nos dias de Marx. Para ele, a palavra ditadura vinha da República Romana e se referia às emergências em tempos de guerra em que as regras normais eram temporariamente anuladas.
O ditador romano (“aquele que dita”) era um magistrado extraordinário (magistratus extraordinarius) com autoridade absoluta para executar tarefas além da autoridade normal de um magistrado. O cargo era originalmente chamado de Magister Populi (Mestre do Povo), isto é, Mestre do Exército dos Cidadãos. Em outras palavras, era um papel militar que quase sempre implicava em dirigir um exército em campanha. Uma vez concluído o período assinalado, o ditador renunciaria. A ideia de uma ditadura totalitária como a de Stalin na Rússia, onde o estado oprimiria a classe trabalhadora no interesse de uma casta privilegiada de burocratas, teria horrorizado Marx.
Na realidade, a “ditadura do proletariado” de Marx é meramente outro termo para o domínio político da classe trabalhadora ou uma democracia dos trabalhadores. Marx baseou sua ideia da ditadura do proletariado na Comuna de Paris de 1871. A Comuna foi um episódio glorioso na história da classe trabalhadora mundial. Aqui, pela primeira vez, as massas populares, com os trabalhadores à frente, derrubaram o velho estado e, pelo menos, começaram a realizar a tarefa de transformar a sociedade.
Marx e Engels elaboraram um balanço completo da Comuna, assinalando os seus avanços bem como os seus erros e deficiências. Estas podem ser quase totalmente rastreadas nas falhas da liderança. É verdade, como declara Bandeira Negra, que os seguidores de Marx na Comuna formavam uma pequena minoria. Os líderes da Comuna formavam um grupo misto, que variava de uma minoria de marxistas a elementos mais próximos ao reformismo ou ao anarquismo.
Uma das razões do fracasso da Comuna foi que ela não lançou uma ofensiva revolucionária contra o governo reacionário que tinha se instalado em Versalhes. Isso deu tempo às forças contrarrevolucionárias para se reagruparem e atacarem Paris.
Sem nenhum plano claramente definido de ação, sem liderança ou organização, as massas exibiram um grau surpreendente de coragem, iniciativa e criatividade. No entanto, em última análise, a ausência de uma audaz e perspicaz liderança e de um claro programa levou a uma derrota terrível. Mais de 30 mil pessoas foram massacradas pela contrarrevolução. A Comuna foi literalmente sepultada sob uma montanha de cadáveres.
Violência e Socialismo
Qual é a posição anarquista sobre a questão da violência revolucionária? Aqui, mais uma vez, nosso amigo anarquista tenta confundir o assunto dizendo-nos algo que já sabíamos, que existem tantas teorias anarquistas quanto há pessoas que se dizem anarquistas:
“Ao longo da história, de fato, existiram alguns anarquistas insurrecionalistas, que defendiam o uso do terrorismo como forma de transformação social. Mas sempre foram minoria.
“A maioria das forças libertárias se dedicaram a construir amplos movimentos de massas, como o Sindicalismo, e a fortalecê-lo até as condições de desencadear uma Revolução. Nunca foi negado o uso da violência como ferramenta revolucionária de transformação social”
Bom, como ficamos então? Os anarquistas estão a favor de uma violência revolucionária ou não estão? Continuamos tão sábios agora como nos encontrávamos no início. Mas uma coisa é clara e já foi dita por Bakunin, a classe trabalhadora não deve tomar o poder, porque se o fizer, invariavelmente cairá na armadilha do “autoritarismo”:
“Vamos perguntar, se o proletariado vai ser a classe dominante, sobre quem ele governará? Em suma, permanecerá outro proletariado que será subjugado a este novo governo, a este novo estado. Por exemplo, a ‘ralé’ camponesa, que, como se sabe, não goza da simpatia dos marxistas que a consideram um nível inferior de cultura, provavelmente será governada pelo proletariado fabril das cidades. Ou, se este problema for abordado nacionalmente, os eslavos serão colocados na mesma relação subordinada ao vitorioso proletariado alemão em que este último agora se coloca em relação à burguesia alemã” (“Estatismo e Anarquia”. Bakunin, 1873)
Agora é lógico que, quando a classe trabalhadora tomar o poder, será impossível para todos os trabalhadores exercerem este poder diretamente. No entanto, isso não apresenta um problema insuperável, sob uma condição: que aceitemos o princípio de eleições democráticas, em que a minoria aceita as decisões da maioria. Reconhecidamente, esse princípio democrático está longe de ser perfeito. Mas é a melhor solução que evoluiu historicamente e ninguém até agora, e muito menos Bakunin e seus seguidores, propuseram uma solução melhor.
Bandeira Negra insta-nos a “buscar a institucionalização da democracia direta cara-a-cara”. Seria útil se ele escrevesse em inglês (ou português) claro, para que nós, mortais comuns, pudéssemos entender o que está sendo dito. Do que consiste essa maravilhosa “democracia direta cara-a-cara”? Supostamente, significa que os indivíduos devem conversar uns com os outros.
Não temos nada contra essa ideia, que realmente existe há muito tempo. Mas, tendo exercido a “democracia direta cara-a-cara” durante um razoável espaço de tempo, como resolver as diferenças de opinião? Infelizmente, não temos nenhuma alternativa senão erguer as mãos a favor ou contra. E a maioria deve decidir.
Da mesma forma, uma vez que todos não podem participar diretamente da sociedade governante, no fim somos obrigados a eleger pessoas em quem confiamos para representar nossos interesses. Que sempre existe um risco de que essas pessoas não façam isso adequadamente é evidente. Mas existem medidas concretas que podem ser tomadas para limitar esse risco ao mínimo.
Primeiramente, todas os cargos devem ser eleitos por períodos restritos com o direito de revogação. Segundo, a remuneração recebida pelos funcionários eleitos não deve ser maior do que o salário de um trabalhador qualificado. Não deve haver exército permanente ou força policial, mas o povo armado, isto é, uma milícia dos trabalhadores. Por último, mas não menos importante, no grau em que seja possível, as tarefas de administrar a sociedade devem ser desempenhadas por todos, em turno. Esta última condição, no entanto, dependerá do desenvolvimento das forças produtivas e da elevação do nível cultural da sociedade.
Para retornar à questão da violência revolucionária, Bandeira Negra reclama amargamente que o programa de “O Estado e a Revolução” de Lenin é “plagiado do anarquismo”. E protesta que “o povo em armas foi uma posição anarquista”. Se é assim, então seguramente nosso amigo anarquista deveria estar feliz. De fato, a cada passo ele parece estar dizendo: veja, não há realmente nenhuma diferença entre nós; você diz que necessitamos de um partido revolucionário, nós também! Você diz que necessitamos de uma organização disciplinada, nós também! Você diz que os líderes da CNT não deviam ter se juntado a um governo burguês, nós também! E, quanto a “O Estado e a Revolução” de Lenin, isso é puro anarquismo!
E apesar de todo esse acordo, Bandeira Negra ainda não está contente. Insiste em que há um desacordo fundamental entre marxismo e anarquismo. E não está enganado. O problema surge porque ele está fazendo um jogo de esconde-esconde com as ideias. Longe de esclarecer as diferenças entre anarquismo e marxismo, diferenças que são muito claras e conhecidas por todos, exceto, pelo que parece, por Bandeira Negra, ele tenta confundir o assunto encobrindo as diferenças em vez de revelá-las drasticamente. O resultado é um verdadeiro rito de confusão. Com esse método nunca ninguém pode aprender qualquer coisa.
Para levar seu rito de confusão ainda mais longe por seu alegre caminho, tendo nos dito que “O Estado e a Revolução” de Lenin tinha sido copiado, palavra a palavra, de textos anarquistas, ele agora nos informa que, na realidade, as ideias de Lenin e Trotsky não têm nada a ver com anarquismo, que o que elas realmente significavam – estava esperando por isto! – era um estado totalitário:
“Tarefas administrativas com caráter rotativo e eleição de delegados com mandato revogável eram pautas anarquistas, enquanto Lênin, Trotski, Stalin e os próprios Marx e Engels sempre favoreceram a centralização do poder em uma casta burocrática e autoritária”
Aliás, Bandeira Negra nem mesmo está correta quando diz que a ideia de um povo armado foi tomada dos anarquistas. Na verdade, essa ideia foi apresentada antes de 1914 no programa da Internacional Socialdemocrata, onde figura como uma demanda democrática. Foi realizada na prática por Trotsky depois da Revolução de Outubro, quando ele formou o Exército Vermelho, que representava as forças armadas dos trabalhadores e camponeses da República Soviética.
Aliás, durante a Guerra Civil Espanhola, Durruti, o grande herói revolucionário, organizou um Exército Vermelho ao longo de linhas muitos similares ao organizado por Trotsky. Durruti travou uma guerra revolucionária, varrendo toda Aragão, tomando a terra, fuzilando os padres e latifundiários, coletivizando e armando os camponeses. Sua conduta foi, portanto, autoritária ao extremo. Em suma, ele agiu como um bolchevique e não como um anarquista.
Naturalmente, os historiadores burgueses odeiam Trotsky e Durruti exatamente por essa mesma razão. Eles eram revolucionários e agiam como tal. Eles lideraram uma luta militar bem-sucedida contra o inimigo de classe e distribuíram golpes contra a contrarrevolução. É por isso que Durruti é sempre descrito como um “bandido violento” e Trotsky como um “monstro sanguinário”.
Esperamos que os burgueses reacionários escrevam dessa forma sobre líderes revolucionários, mas é um pouco desanimador encontrar o mesmo tipo de calúnias contra Trotsky nos escritos de gente que se descreve como revolucionária. Bandeira Negra não pode resistir à tentação de repetir as calúnias contra Trotsky que pegou dos historiadores burgueses.
Como não temos mais espaço para lidar com mais calúnias de Bandeira Negra, remetemos o leitor ao livro que escrevi há muitos anos junto com o já falecido Ted Grant, “Lenin e Trotsky, o que eles realmente defendiam”, onde respondo a essas calúnias em detalhe.
Marxismo e o Estado
O Estado moderno é um monstro burocrático que devora uma colossal parcela da riqueza produzida pela classe trabalhadora. Os marxistas concordam com os anarquistas que o estado é um instrumento monstruoso de opressão que deve ser eliminado. A questão é: como? Por quem? E o que o substituirá? Essa é a questão fundamental para qualquer revolução.
Em um discurso sobre o anarquismo durante a Guerra Civil que se seguiu à Revolução Russa, Trotsky resumiu muito bem a posição marxista sobre o estado:
“A burguesia diz: não toquem no poder do estado; ele é o sagrado privilégio hereditário das classes educadas. Mas os anarquistas dizem: não toquem nele; ele é uma invenção infernal, um dispositivo diabólico, não têm nada a fazer com ele. A burguesia diz: não toquem nele, ele é sagrado. Os anarquistas dizem: não toquem nele, porque é pecaminoso. Ambos dizem: não toquem nele. Mas nós dizemos: não somente toquem nele, tomem-no em suas mãos e coloquem-no para trabalhar por seus próprios interesses, para a abolição da propriedade privada e a emancipação da classe trabalhadora” (Leon Trotsky. “How The Revolution Armed”. Vol. 1, 1918. Londres: New Park, 1979)
Generalizando a partir da experiência da Comuna de Paris, Marx explicou que a classe trabalhadora não pode simplesmente basear-se no poder estatal existente, mas deve derrubá-lo e destruí-lo. A posição básica foi sublinhada em “O Estado e a Revolução”, onde Lenin escreve: “A ideia de Marx é que a classe trabalhadora deve romper, quebrar a ‘maquinaria estatal existente’, e não se limitar a se apoderar dela”.
Contra as confusas ideias dos anarquistas, Marx argumentava que os trabalhadores necessitam de um estado para superar a resistência das classes exploradoras. Mas esse argumento de Marx foi distorcido tanto pelos burgueses quanto pelos anarquistas. A classe trabalhadora deve destruir o estado (burguês) existente. Sobre essa questão, concordamos com os anarquistas. Mas e então? Para realizar a construção socialista da sociedade, é necessário um novo poder. Chamá-lo de estado ou de comuna é indiferente. A classe trabalhadora deve organizar-se e, assim, constituir-se como o principal poder na sociedade.
A classe trabalhadora necessita de seu próprio estado, mas será um estado completamente diferente de qualquer outro estado já visto na história. Um estado que represente a vasta maioria da sociedade não necessita de um enorme exército permanente ou força policial. De fato, não será um estado em absoluto, mas um semi-estado, como a Comuna de Paris. Longe de ser um monstro totalitário burocrático, ele será muito mais democrático do que a mais democrática república burguesa – certamente muito mais democrático do que a Suécia de hoje.
Comentando sobre “O Estado e a Revolução” de Lenin em seu livro “A Revolução Traída”, Trotsky escreveu:
“As mesmas considerações audaciosas sobre o Estado da ditadura do proletariado encontraram, um ano e meio após a tomada do poder, a sua expressão acabada no programa do Partido Bolchevique e, nomeadamente, nos parágrafos referentes ao exército. Um estado forte, mas sem mandarins; uma força armada, mas sem samurais! A burocracia militar e civil não resulta das necessidades da defesa, mas de uma transferência da divisão da sociedade em classes para a organização da defesa. O exército é um produto das relações sociais. A luta contra os perigos exteriores supõe, e isto é imanente ao estado operário, uma organização militar e técnica especializada que não será em caso algum uma casta privilegiada de oficiais. O programa bolchevique exige a substituição do exército permanente pelo povo armado.
“Desde sua formação, o regime da ditadura do proletariado deixa de ser o de um ‘estado’ no velho sentido da palavra, isto é, de uma máquina feita para manter na obediência a maioria do povo. Com as armas, a força material passa diretamente, imediatamente, para as organizações dos trabalhadores, tais como os sovietes. O estado, como um aparelho burocrático, começa a desaparecer desde o primeiro dia da ditadura do proletariado” (Leon Trotsky. “A Revolução Traída”. Capítulo 3, O Socialismo e o Estado)
A Revolução Russa
Para os marxistas, a Revolução de Outubro de 1917 representa o acontecimento mais importante da história humana. Pela primeira vez, com exceção do breve, mas heroico episódio da Comuna de Paris, a classe trabalhadora tomou as rédeas do poder estatal, descartou as relações de propriedade capitalistas e iniciou o processo de transformação socialista. A revolução representou uma enorme vitória para a classe trabalhadora, quando as fábricas passaram às suas mãos; para os camponeses, quando a terra passou às suas; para as mulheres, que viram pela primeira vez uma igualdade jurídica plena na Rússia; para as minorias nacionais e étnicas, em particular os judeus, que haviam sofrido muito com o chauvinismo grã-russo do regime czarista autocrático.
O estado dos trabalhadores estabelecido pela Revolução Bolchevique em 1917 não era nem burocrático nem totalitário. Pelo contrário, antes que a burocracia stalinista usurpasse o controle das massas, ele foi o mais democrático estado que já existiu. Os princípios básicos do poder soviético não foram inventados por Marx ou Lenin. Eles se basearam na experiência concreta da Comuna de Paris, mais tarde elaborada por Lenin.
Os Sovietes de Deputados dos Trabalhadores e Soldados eram assembleias eleitas compostas não por políticos profissionais e burocratas, mas por trabalhadores comuns, camponeses e soldados. Não era um poder alienígena pairando sobre a sociedade, mas um poder baseado na iniciativa direta do povo, vinda de baixo. Suas leis não eram como as leis promulgadas por um poder estatal capitalista. Era um tipo de poder completamente diferente do que geralmente existe nas repúblicas democráticas burguesas parlamentares do tipo que ainda prevalece nos países avançados da Europa e da América.
Engels há muito explicou que, em qualquer sociedade em que a arte, a ciência e o governo são monopólio de uma minoria, essa minoria usará e abusará de sua posição em seus próprios interesses. Lenin viu logo o perigo da degeneração burocrática da Revolução em condições de atraso generalizado.
Lenin era inimigo jurado da burocracia. Ele sempre enfatizou que o proletariado somente necessita de um estado que seja “constituído de tal forma que imediatamente comece a morrer e que não possa deixar de morrer”. Um verdadeiro estado operário não tem nada em comum com o monstro burocrático que existe hoje e menos ainda com o que existia na Rússia estalinista. As condições básicas para a democracia dos trabalhadores foram estabelecidas em “O Estado e a Revolução”:
- Eleições livres e democráticas com o direito à revogação de todos os funcionários.
- Nenhum funcionário receberá um salário mais alto do que o salário de um trabalhador qualificado.
- Nenhum exército permanente ou força policial, mas o povo armado.
- Gradualmente, todas as tarefas administrativas a serem realizadas, em rodízio, por todos. “Cada cozinheiro deve ser capaz de ser primeiro-ministro – Quando todos são ‘burocratas’ por turnos, ninguém pode ser um burocrata”.
Foram estas as condições estabelecidas por Lenin, não para o socialismo pleno ou comunismo, mas para o primeiro período de um estado dos trabalhadores – o período da transição do capitalismo ao socialismo. Esse programa de democracia operária está diretamente direcionado contra o risco da burocracia. E, por sua vez, formou a base do Programa do Partido de 1919.
A transição ao socialismo – uma forma superior de sociedade baseada na democracia genuína e na abundância para todos – somente pode ser alcançada através da participação ativa e consciente da classe trabalhadora no funcionamento da sociedade, da indústria e do estado. Não é algo que seja gentilmente cedido aos trabalhadores por capitalistas ou mandarins burocráticos de bom coração. Toda a concepção de Marx, Engels, Lenin e Trotsky baseava-se nesse fato. Qualquer um pode ver que esse programa é totalmente democrático e é a própria antítese da ditadura burocrática. O socialismo, como o entendem os marxistas, ou é democrático ou não é nada.
Marx explicou há muito que em qualquer sociedade onde a necessidade é generalizada, “toda a velha porcaria renasce”. Foram essas as condições que deram origem à burocracia – uma grossa camada de funcionários e carreiristas que empurraram os trabalhadores com os cotovelos para o lado e conquistaram posições privilegiadas no Estado e na indústria. Lenin advertiu repetidamente contra os perigos da burocracia – não somente no Estado como também no próprio partido.
A verdadeira razão para a degeneração burocrática da Revolução Russa não foi algum “pecado original” do bolchevismo, mas o isolamento da Revolução em condições de atraso material e cultural. Isto, por sua vez, foi o resultado da traição dos líderes da socialdemocracia europeia. Mas tratar disso em detalhes leva-nos muito além dos limites da presente polêmica.
Sob condições de atraso espantoso, a Revolução Russa sofreu um processo de degeneração burocrática. A contrarrevolução stalinista destruiu o regime democrático estabelecido por Lenin e Trotsky em 1917. Ao contrário do mito frequentemente espalhado pelos burgueses reacionários e também pelos anarquistas, stalinismo e bolchevismo são fenômenos mutuamente incompatíveis. A prova disto foi o fato de que Stalin, para consolidar seu regime burocrático e totalitário, teve que exterminar fisicamente todos os líderes do partido de Lenin.
O que fracassou na União Soviética não foi o socialismo ou o comunismo em qualquer sentido reconhecido por Marx, Lenin ou Trotsky, mas uma caricatura burocrática e totalitária de socialismo. Esta certamente fracassou e estava destinada a fracassar. A queda da União Soviética foi prevista no início de 1936 por Trotsky em seu livro “A Revolução Traída”. Ele ressaltou que a burocracia stalinista não ficaria satisfeita com seus salários e privilégios inchados e que inevitavelmente tomaria o caminho da restauração capitalista. Foi isto precisamente o que ocorreu.
O anarquismo hoje
Os anarquistas imaginam que são mais revolucionários porque clamam por uma revolução social aqui e agora. Mas, de forma dialética, em sua impaciência para realizar uma revolução social quando as condições para ela estão ausentes, eles se encontram, na verdade, reduzidos às impotentes “ações diretas” de pequenas minorias isoladas das massas da classe trabalhadora que não levam a parte alguma, combinadas com a defesa de “pequenos feitos” em nível local e de demagogias pseudorrevolucionárias.
Sob a influência do pós-modernismo burguês, estão obcecados com a linguagem, tentando garantir que todos falem “sem nenhum traço de opressão ou hierarquia” em sua língua. Assim, “revolução social” é reduzida a demagogia vazia e radicalismo terminológico. Ao abolir a hierarquia da linguagem, eles imaginam que a aboliram de fato, enquanto o mundo real os ultrapassa sem sequer notar essa extravagante “revolução”, e a hierarquia, a exploração e a opressão continuam bem felizes como antes.
Para qualquer pessoa como eu, que tem respeito e admiração sinceros pelos antigos trabalhadores anarquistas, como os antigos militantes operários da CNT, que eram revolucionários genuínos, traídos por seus líderes anarquistas, o anarquismo moderno representa um espetáculo verdadeiramente deprimente. Os antigos trabalhadores anarquistas talvez tenham se enganado em algumas de suas ideias, mas eram revolucionários e lutadores de classe até a medula. O que temos hoje é somente uma falsificação do artigo genuíno, uma coisa sem qualquer substância real, sem nenhuma raiz no movimento dos trabalhadores, nenhuma ideia clara, nenhuma noção de tática ou estratégia, cujo único papel é espalhar a confusão nas mentes de uma camada de jovens radicalizados que está tentando encontrar um caminho revolucionário. O anarquismo não é o caminho à revolução, mas apenas um beco sem saída.
Na ausência de um forte partido revolucionário, uma camada de jovens que deseja mudar a sociedade cai inicialmente sob a influência das ideias anarquistas. A maioria deles logo chega à compreensão das limitações das ideias e táticas anarquistas. Para eles, o anarquismo é uma espécie de escola preparatória que finalmente levará ao marxismo. Nós, os marxistas, estendemos nossa mão em sinal de amizade a esses jovens. Lutaremos junto com eles contra o inimigo comum. Mas também explicaremos pacientemente a diferença entre anarquismo e marxismo e polemizaremos contra as ideias e táticas incorretas que não podem levar os trabalhadores e a juventude a uma revolução socialista vitoriosa.
Com pesar, devemos terminar este interessante encontro com o anarquismo citando as palavras do velho Bakunin: “Quem não quiser a liberdade, mas o estado, não deve brincar de revolução”. Mas é isto precisamente o que significa o anarquismo. Quem quiser levar a sério o trabalho revolucionário deve ir além das limitações e confusões do anarquismo e adotar o único ponto de vista revolucionário consistente: o ponto de vista do marxismo.
Estamos firmemente convencidos de que há muitos grupos de jovens que se consideram anarquistas, que têm uma atitude séria em relação à revolução e desejam aprender. Mas a revolução é tanto uma ciência quanto uma arte que devem ser estudadas com a mesma atenção minuciosa que os oficiais de um exército burguês estudam a história da guerra para desenvolver táticas e estratégias.
Nós marxistas estamos lutando pela criação de um exército internacional do proletariado. A Corrente Marxista Internacional está continuando as grandes tradições revolucionárias de Marx, Engels, Lenin e Trotsky. Nosso programa é o programa da Revolução Bolchevique e da Internacional Comunista.
Também reivindicamos a esse grande revolucionário espanhol e mártir da classe trabalhadora, Buenaventura Durruti, que representava o melhor elemento do anarquismo – o elemento que se aproximava do bolchevismo e de fato era indistinguível dele. Apelamos a todos os anarquistas sérios que desejem lutar pelo socialismo mundial a se juntar a nós, debater e discutir conosco e finalmente fundir-se em uma poderosa tendência revolucionária proletária em escala mundial.
O único caminho à revolução é o caminho que leva à construção de uma organização revolucionária dos trabalhadores, um partido marxista e uma Internacional. É isto o que a Corrente Marxista Internacional oferece aos trabalhadores e à juventude do Brasil.
Londres, 5 de abril de 2017.