Nos últimos dias, cidades e vilas por todo o Marrocos testemunharam movimentos em massa envolvendo estudantes universitários e jovens desempregados. Como todos os movimentos sérios e profundamente enraizados, este foi marcado pela participação massiva de mulheres jovens, que estiveram na linha de frente e trouxeram consigo altos níveis de militância. O movimento foi recebido com calorosa simpatia por todas as camadas dos pobres, não apenas porque suas reivindicações são legítimas, mas porque as massas estão furiosas e procurando um ponto de referência para se reunir.
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Este movimento é uma prova do tumulto e da instabilidade na sociedade marroquina, na qual a classe dominante tenta manter as coisas unidas através da repressão e apoiando-se nos reformistas e líderes sindicais conservadores. Como Trotsky escreveu certa vez:
“As atividades revolucionárias ou semirrevolucionárias dos estudantes significam que a sociedade burguesa está passando por uma crise profunda.” (Leon Trotsky, Os Problemas da Revolução Espanhola)
A centelha
O atual movimento eclodiu em protesto contra a decisão do ministro da Educação de estabelecer uma série de condições absurdas para aqueles que desejam se inscrever para fazer o teste necessário a fim de se tornar um professor no setor público. A mais significativa delas foi o estabelecimento do limite máximo de 30 anos de idade para o emprego. Além disso, os professores do setor privado (cuja remuneração é menor) foram impedidos de participar, a menos que seus empregadores dessem o seu consentimento, como se os professores fossem escravos de seus patrões.
Exigir uma nota alta de 12,5 como pré-requisito para se candidatar a se tornar um professor no setor público serve ainda mais à máfia da educação do setor privado, que manipula a pontuação e infla as qualificações para atrair alunos com salários mais altos. As novas regras que proíbem os professores do setor privado de se candidatarem a empregos no setor público remetem à era da servidão, em que o senhor feudal decidia o destino de quem trabalhava em seu feudo, obrigando-os a buscar seu consentimento antes de qualquer decisão.
Estas novas medidas também refletem uma “solução” tecnocrática tacanha para os fundos de pensão assolados pela crise, ao excluir a inscrição de professores mais velhos em idade de aposentadoria. Em vez de criar novos empregos para atender à crescente necessidade de professores, médicos e enfermeiras em toda a sociedade, o Estado está reduzindo o número de empregos que cria para economizar dinheiro. Atualmente, os cargos recém-criados nem mesmo substituem os perdidos por aposentadoria ou morte.
Além disso, devemos notar que a crise dos fundos de pensão também é resultado das pilhagens do rei e das empresas de seus amigos. Foi exacerbada pela recusa de sucessivos governos em pagar esses fundos, bem como pelas administrações corruptas que os saqueavam.
Causas
A recente luta é a maior e a mais envolvente desde o Movimento 20 de fevereiro, que eclodiu em 2011, na esteira da Primavera Árabe. Já se estendeu a todas as grandes cidades, particularmente aquelas que incluem as universidades (Tânger, Tetuão, Oujda, Casablanca, Fez, Rabat, Safi, Agadir, Marrakesh, Meknes etc.). Isso mostra, mais uma vez, a capacidade de luta e o desejo de mudança entre os jovens das classes trabalhadoras.
Embora a causa imediata deste movimento tenha sido uma decisão ministerial, existem muitos fatores de grande alcance que empurraram as massas, e especialmente a juventude, para o caminho da luta.
A crise já era profunda antes mesmo da pandemia, que a agravou. Somente no decorrer de 2020, o crescimento econômico caiu mais de 7% e a taxa de pobreza atingiu 11,7%. A maneira criminosa como a classe dominante lidou com a pandemia tornou as condições das massas mais difíceis do que nunca. Todo o peso da crise foi lançado sobre os ombros dos trabalhadores por meio de demissões em massa e aumento dos preços, enquanto toda assistência era concedida aos capitalistas, incluindo isenções de impostos e a retirada das leis anticorrupção. Isso permitiu que uma minoria de parasitas, chefiada pelo rei, sua família e outros grandes capitalistas, acumulasse fortunas ainda maiores.
Por exemplo, a fortuna da família do atual primeiro-ministro e amigo próximo do rei, Aziz Akhannouch, aumentou em quase 25 bilhões de dirhans (mais de US$ 2,7 bilhões) desde o início da pandemia, de acordo com a Oxfam. A revista Forbes também confirmou que – apesar das dificuldades do ano passado – a fortuna pessoal de Akhannouch, “de repente“, saltou US$ 900 milhões entre abril de 2020 e maio de 2021, elevando seu patrimônio líquido para US$ 1,9 bilhão.
Como Marx explicou: “O acúmulo de riqueza em um polo é, portanto, ao mesmo tempo, acúmulo de miséria, agonia do trabalho escravo, ignorância, brutalidade e degradação mental, no polo oposto”. Em nenhum lugar isso está mais claro do que no Marrocos de hoje.
No mesmo período, de acordo com o Alto Comissariado para o Planejamento, a taxa de desemprego subiu para 12,7%, antes de cair mais recentemente para 11,8%. Mas atingiu a cifra de 31% entre os jovens com idades entre 15 e 24 anos, 18,7% entre os jovens com diploma e 16,5% entre as mulheres. Ao mesmo tempo, uma grande proporção dos empregados continua a trabalhar em condições adversas. De acordo com a mesma comissão, o número de pessoas subempregadas (incluindo as que trabalham abaixo da sua qualificação e com rendimentos insuficientes) ultrapassava um milhão em nível nacional.
Também houve aumentos de preços significativos, que não se refletem nos números oficiais, mas são sentidos de forma aguda pelas massas. De acordo com o Alto Comissariado para o Planejamento, os aumentos no preço dos alimentos básicos, entre setembro e outubro de 2021, totalizaram 4,7% para vegetais, 2,7% para carne, 1,4% para peixes e frutos do mar; 1% para óleos de cozinha e 0,7% para leite, queijo, ovos, café e chá. A mesma tendência pode ser observada para outros produtos essenciais – especialmente combustíveis, cujo preço aumentou 3,2%. Enquanto isso, o transporte público aumentou os preços em 6,2%.
Em suma, os fatores que alimentaram essa explosão social vão além de uma decisão ministerial. Eles estão enraizados na situação nacional geral. Este fato foi expresso nos slogans levantados pelos manifestantes, que vão muito além da decisão do ministro da Educação, denunciando a classe dominante e seu Estado por suas políticas de austeridade e repressão, assim como por sua corrupção endêmica.
Os slogans do Movimento 20 de fevereiro foram ressuscitados, além de: “Liberdade, Dignidade, Justiça Social” e: “Este é um Estado corrupto”. No Marrocos, devido à ausência de direitos democráticos, muitos jovens se organizam em “Ultras” (grupos de apoio a times de futebol). Eles são conhecidos por entoar canções muito radicais e até revolucionárias focando a repressão estatal, a pobreza etc. Os slogans revolucionários dos Ultras do futebol também puderam ser ouvidos nesses protestos.
Os reformistas e os dirigentes sindicais
Os líderes reformistas observam esse novo movimento com terror e confusão. Eles expressaram pesar pelas ações do governo por ameaçar a “estabilidade” e criticaram a decisão “equivocada” do ministro da Educação como “nem constitucional nem legal“! Acusam-no de “não levar em conta a situação imediata em que vive Marrocos a nível econômico e social” e perguntam:
“O Ministro enlouqueceu? Ele não vê que a situação está repleta de muitos fatores explosivos e que é mais seguro não provocar a classe trabalhadora, especialmente a juventude, com decisões como esta?”
Os reformistas são criaturas estúpidas e fracassadas, que realmente acreditam que é possível viver em uma sociedade de classes sem que a classe dominante realize ataques contra a classe trabalhadora e os pobres, especialmente em um período de profunda crise como a que atravessa o capitalismo, tanto local quanto globalmente. E quando eles testemunham tais ataques, eles se voltam para o povo e dizem: “Se os capitalistas continuarem a atacar vocês, vocês, trabalhadores e camponeses, devem ser razoáveis e educados e se abster de responder, a fim de preservar os interesses da nação.” Acima de tudo eles valorizam a “estabilidade”.
Mas a classe dominante, em contraste com os reformistas, sabe que a luta de classes é o elemento determinante da sociedade e, portanto, incessantemente afia e melhora a eficácia de seu aparato de repressão, as prisões e leis que protegem seus interesses. Como resultado, esses setores são os únicos que não sofreram cortes no orçamento e, de fato, receberam ainda mais recursos.
O ministro realmente perdeu a cabeça?
A classe dominante, e seu representante na pessoa do ministro da Educação, realmente “enlouqueceu” e deu um passo inesperado? De jeito nenhum! Não devemos esquecer que Benmoussa é um ex-ministro do Interior e agente francês, com cidadania francesa e, portanto, possui fontes de informação e assessores suficientes para não fazer um movimento aleatório e irracional.
Acreditamos que haja três explicações para ele dar esse passo neste momento específico:
- A classe dominante enfrenta uma profunda crise do capitalismo. Precisa lançar ataques contra os trabalhadores na forma de políticas de austeridade brutais, sempre que o equilíbrio de poder o permitir.
- Não existe uma força de esquerda militante e organizada capaz de liderar qualquer resistência, e as lideranças sindicais são meros servidores do sistema. Eles não se atreverão a tomar nenhuma medida para obstruir essas políticas. Em vez disso, pedirão calma e tentarão conter os trabalhadores.
- A classe dominante sabe que está sobre um vulcão que pode entrar em erupção a qualquer momento; então, eles procuram antecipar e neutralizar a erupção que se aproxima. Eles estão usando as mesmas táticas dos bombeiros, que, antes da temporada de incêndios florestais, tendem a acender fogos controlados para poder evitar grandes conflagrações, ou pelo menos para reduzir sua intensidade e propagação. A ignição de incêndios controlados permite a queima de galhos inflamáveis e ervas daninhas, o que lhes dá uma ideia dos pontos críticos que podem representar um perigo, e outros dados necessários para lidar com um grande incêndio, quando ele começ Isso é exatamente o que o Estado está fazendo hoje. Procura exaurir o movimento de massas em lutas separadas e isoladas, a fim de extingui-los um a um e evitar que se unam em um único movimento de massas.
Os representantes da classe dominante estão mais conscientes desta situação do que a míope esquerda reformista. O ministro da Justiça, Abdel Latif Wehbi, disse em um recente comunicado à imprensa: “As próximas decisões e procedimentos causarão alvoroço e, se não houver alvoroço sobre essa decisão, acontecerá com outra decisão”. Assim, eles estão ansiosos para implementar suas políticas reacionárias gradualmente e absorver o choque do “alvoroço” com esse procedimento e, em seguida, reprimi-lo, antes de passar para o outro procedimento, e assim por diante.
Naturalmente, isso não significa que eles estejam completamente no controle da situação. Ao contrário, a possibilidade de a situação escapar de seu controle é muito grande, e é isso o que assusta os reformistas, talvez até mais do que a classe dominante. Especialmente porque o que estamos testemunhando são lutas “espontâneas” que estão fora do controle da burocracia dos sindicatos e partidos reformistas, que estão abertos a negociações com a classe dominante. Para limitar esse perigo, estão se certificando de que o movimento não tenha uma direção, nem um ponto de referência, nem uma organização que o una. Combinado com uma certa quantidade de repressão e concessões, isso dá à classe dominante a melhor chance de vitória sobre o movimento no final.
Os partidos reformistas de esquerda estão engajados, consciente ou inconscientemente, na implementação das políticas reacionárias dos capitalistas. Com relutância organizam batalhas dispersas e frequentemente só as fazem sob pressão de suas bases. Isso quando não se limitam a escrever declarações de solidariedade vazias.
Para tornar essas lutas realmente eficazes, elas precisam ser unificadas, com o estabelecimento de organizações democráticas de base nos bairros, locais de trabalho e universidades. Estas devem estar ligados localmente, regionalmente e nacionalmente, permitindo-lhes ter um programa de demandas transitórias para se reunir. Essas demandas devem estar conectadas com as lutas cotidianas dos trabalhadores, e, por sua vez, com a necessidade da classe trabalhadora de tomar o poder, que é a única solução séria e duradoura para os problemas de austeridade, exploração, repressão e ataques às condições de vida e de trabalho de todas as pessoas que trabalham nas cidades e vilas.
Negociando em vez de lutar
Os dirigentes sindicais, em vez de trabalhar para se engajar nesses movimentos, organizando-os e dando-lhes palavras de ordem e um plano de ação; em vez de convocar greves gerais para paralisar o país para forçar a classe dominante a deter seu último ataque, bem como todos os outros ataques aos trabalhadores e pobres; todos correram para se encontrar com o ministro da Educação e tentar persuadi-lo a retirar sua decisão, a fim de preservar o que eles chamam de “estabilidade”.
Eles se consideram sensatos e racionais. Eles também se consideram mais capazes de proteger a estabilidade do sistema da classe dominante do que os próprios representantes da classe dominante, e isso os fez implorar ao ministro para que se retratasse da decisão. O ministro os tratou com o desprezo que merecem, expressou-lhes que sua decisão era definitiva e despediu-se deles sem oferecer nem mesmo o suficiente para que resgatassem sua credibilidade diante de suas fileiras.
Qual foi a resposta dos dirigentes sindicais? Eles denunciaram esta resposta insultuosa e resolveram organizar uma luta? Eles convocaram a classe trabalhadora, especialmente os trabalhadores da educação, a se engajar na batalha e a fazer uma greve geral até que a decisão seja anulada? Eles lançaram pautas econômicas e políticas para ampliar seus horizontes, dando-lhe uma perspectiva clara e táticas corretas? Não, eles simplesmente emitiram declarações nas quais relataram o que “disseram” ao ministro e o que o ministro “disse” a eles, como se fossem meros jornalistas ou observadores neutros. Ou melhor, como se fossem seus meninos de recados, encarregados de transmitir suas mensagens, e não dirigentes sindicais com qualquer interesse ou opinião sobre o assunto.
Essas damas e cavalheiros perderam toda a conexão com a luta, eles até a veem como um perigo, e sua tarefa passou a ser a de aconselhar gratuitamente os representantes da classe dominante sobre a melhor maneira de preservar o status quo e evitar uma explosão da situação.
Eles temem mais às massas do que aos sucessivos ataques contra a classe trabalhadora. Eles nunca revidam, não importa o quão severos sejam os ataques, mas acordam rapidamente quando são confrontados com uma reação das massas: não para dar uma expressão de luta a esses movimentos, mas para contê-los e para garantir que permaneçam em canais seguros para a classe dominante.
Esses dirigentes se tornaram um freio absoluto, perderam toda a legitimidade e devem ser expurgados do movimento sindical como condição necessária para qualquer luta bem-sucedida.
Avançar!
Para derrotar o governo, a classe trabalhadora deve construir uma greve geral capaz de paralisar o país e colocar a classe dominante de joelhos. Mas a classe trabalhadora ainda não é capaz de fazer isso. Suas forças estão acorrentadas por uma burocracia sindical reacionária integrada ao aparato estatal e ainda não se recuperaram totalmente do choque da pandemia, que resultou em terrível aumento do desemprego e trágica perda de vidas. Assim, é natural que os jovens, os estudantes e os desempregados estejam na linha de frente contra as políticas de austeridade e os ataques.
Nós, marxistas, apoiamos essas lutas e conclamamos a classe trabalhadora a se engajar nelas com firmeza e sinceridade. Também apelamos aos jovens para que participem das organizações democráticas, em níveis local, regional e nacional. Devem enviar delegados a todos os bairros operários, fábricas, universidades e escolas, para que sua luta seja a causa de todos os trabalhadores. Este é o caminho para a vitória.
As lutas atuais, independentemente do resultado final, são arautos dos eventos revolucionários que estão por vir. Elas são uma evidência de que a sociedade burguesa atravessa uma crise profunda, e também uma evidência do grande potencial de luta da juventude. Esta é a fonte do nosso otimismo e confiança na vitória final.
Apelamos aos jovens revolucionários, àqueles que realmente querem quebrar o ciclo vicioso da derrota pelo desgaste devido à ausência de direção e organização, a se juntar aos marxistas para construir a direção revolucionária da classe trabalhadora. Precisamos de um programa político radical que possa atrair todos os movimentos de massa em todo o Marrocos para uma campanha unificada, que acabará por levar a uma luta para derrubar o Estado burguês reacionário e o sistema capitalista que ele defende. Isso lançará as bases para a construção de uma sociedade socialista. Este é o projeto que nós, da Corrente Marxista Internacional, propomos a você. Nós o convidamos a nos ajudar a realizá-lo.
TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.
PUBLICADO EM MARXIST.COM