Ultimamente, os meios de comunicação burgueses, sobretudo na Europa, se deleitaram com a “milagrosa” mudança de sorte de Portugal. Há apenas sete anos, a economia portuguesa estava à beira do colapso. O país se dirigia para o tipo de agitação social que causou uma situação pré-revolucionária na Grécia e que levou a um enorme movimento de massas na vizinha Espanha.
No início deste ano, Matthew C. Klein, do Financial Times, observou com admiração que agora, em alguns aspectos, “Portugal se parece muito mais com a Alemanha do que, digamos, com a Espanha”.
Em 2017, a economia portuguesa cresceu 2,7%, a taxa mais elevada desde antes da crise. A taxa de desemprego é de 6,7%, mais de 10% abaixo da cifra máxima de janeiro de 2013 depois da crise. O salário mínimo aumentou quase 20% em comparação com o final de 2014 (sem ajuste pela inflação). Ao mesmo tempo, o governo conseguiu reduzir o déficit orçamentário a 2% do PIB, o nível mais baixo em mais de 40 anos. Isto significa que, pela primeira vez na história, Portugal foi um dos poucos membros da Eurozona a cumprir realmente as normas da União Europeia sobre o controle do déficit, o que, no ano passado, o Comissário Europeu de Economia, Pierre Moscovici, qualificou de “uma notícia muito boa e muito importante”. E tudo isso foi logrado por um governo socialista, escorado pelos comunistas, como assinalam alegremente certos setores menos críticos da esquerda.
Ao entrevistar ao líder do Partido Socialista e Primeiro-Ministro, Antonio Costa, em abril, The Economistproclamou:
“Tem muito por que sorrir. Lisboa, um dos destinos turísticos mais atrativos da Europa, está em pleno auge. Os futebolistas portugueses são os campeões da Europa e seus políticos conseguiram um bom número de postos de trabalho internacionais de alto nível. E, sobretudo, é o ganhador de uma aposta política de alto risco”.
Esta imagem otimista da reativação econômica portuguesa está sendo utilizada por todo tipo de comentaristas políticos, desde os liberais até os autodenominados marxistas, como um exemplo brilhante de como gerenciar a saída de uma crise capitalista. O governo de Antonio Costa de alguma forma equilibrou os balanços e aumentou o salário mínimo ao mesmo tempo! Se tão somente outros governos mostrassem a mesma engenhosidade, então não haveria crise na Grécia, Espanha ou Itália. Não haveria nenhuma crise do euro!
O que realmente levou a essa recuperação?
David Stubbs, estrategista da importante firma de capital financeiro JP Morgan, afirma que a recuperação se baseia, de fato, na adesão do governo português às políticas de austeridade do Banco Central Europeu. O próprio governo, junto com muitos outros reformistas, argumenta exatamente o contrário, que a recuperação está se produzindo porque se “atreveram a deixar de lado a austeridade”, como afirmou o New York Times em manchete chamativa. A verdadeira razão da recuperação não é nenhuma destas coisas.
A política econômica deste governo foi em grande medida uma continuação do governo anterior de direita. A maioria das medidas incluídas no orçamento de emergência aprovadas no ponto culminante da crise do euro – que condenou milhões de portugueses ao sofrimento de penúrias esmagadoras – tornaram-se permanentes. Mas esta austeridade imposta pelo BCE foi um fracasso colossal, inclusive do ponto de vista capitalista, em toda a Europa. Só conduziu a um aumento constante da dívida pública, inclusive a uma redução do mercado de investimentos dos capitalistas europeus e – como resultado da pobreza e da miséria causadas por estas circunstâncias – à uma instabilidade política cada vez maior em todo o continente.
É verdade, por outro lado, que em alguns casos isolados o atual governo português se negou a aplicar os ditados das principais instituições capitalistas, incluindo os cortes salariais exigidos ao setor público, bem como uma redução do mínimo legal de férias anuais. Porém, é evidentemente falso, como veremos mais adiante, dizer que “varreram a austeridade para o lado”.
A recuperação da economia portuguesa está vinculada, em primeiro lugar, à maior e mais ampla tendência de crescimento das economias europeias no atual período. Essa tendência não representa absolutamente um crescimento significativo e tem o potencial de reverter, mesmo no curto prazo, sob o impacto de acontecimentos colossais como o início do Brexit ou o início da crise bancária italiana. As cifras do crescimento de Portugal não são exatamente assombrosas e, como David Stubbs comenta com razão, “só porque vás na direção correta, não significa que estejas fora de perigo”.
Em segundo lugar, há um aspecto político da influência da Europa na recuperação de Portugal, que deriva da situação econômica e que a alimenta. Uma declaração do FMI sobre a zona do euro em junho de 2017 dizia: “Os países devem aproveitar o alento que a recuperação oferece para impulsionar as reformas estruturais”. Em sua maior parte, as reformas estruturais continuam significando cortes no nível de vida da classe trabalhadora. No entanto, no caso de Portugal, o momentâneo alívio da crise do euro deu margem para o ajuste de alguns elementos do programa de austeridade que o anterior governo de direita estava realizando.
Talvez ainda mais vital com a crise econômica em toda a Europa dando lugar a um sentimento antissistema no que Donald Tusk chamou de “contágio político”, a última coisa que a classe dominante europeia quer fazer é avivar ainda mais as chamas da revolta popular. Nesta etapa, estão tratando de evitar o confronto aberto – e o estrangulamento de qualquer oposição ao seu programa de contrarreformas. Fizeram isso com o governo de Tsipras há três anos, o que colocou diretamente no cenário as massas gregas.
Portanto, se Antonio Costa quiser suavizar alguns dos cortes que o BCE tentou impor a Portugal, ou mesmo introduzir algumas reformas próprias, no momento estão dispostos a deixá-lo fazer. Ou seja, enquanto seguir na linha geral da austeridade, o que assegurará que o governo estabeleça um orçamento equilibrado a cada ano. E enquanto a situação econômica na Europa não mudar. Inevitavelmente, chegará um momento em que o BCE e o FMI não se mostrarão tão complacentes com as divergências, sequer mínimas, de sua política.
Turismo, mais trabalho prescindível e contabilidade criativa
Paralelamente, com sua base no clima econômico e político imediato da Europa, a principal fonte da recuperação em Portugal foi a indústria do turismo. Em 2017, o número de turistas que visitaram Portugal subiu 12% até os 12,7 milhões. No ano passado, o turismo representou 18,5% do PIB; este ano espera-se que supere os 20%. O turismo é atualmente o maior setor de emprego do país, com em torno de cerca de um milhão de postos de trabalho (mais da quinta parte dos trabalhadores portugueses) que dependem dele. Segundo as projeções atuais, essa cifra subirá a 1,2 milhões de postos de trabalho no prazo de cinco anos. Dessas cifras se depreende claramente que o turismo foi o fator chave do crescimento econômico de Portugal no ano passado e que representou uma parte muito importante da diminuição do desemprego.
Tendo em conta o papel cada vez mais destacado do turismo na economia portuguesa, podemos ver os fundamentos extremamente débeis da recuperação do país. O turismo é uma base incrivelmente pouco confiável para a prosperidade econômica. Em alta escala, depende da renda de que dispõem as classes trabalhadoras estrangeiras, que mal podem se custear, no melhor dos casos. Mesmo sem uma recessão ou crise econômica mundial, está sujeita às tendências de mercado mais efêmeras e imprevisíveis.
De fato, as estatísticas de turismo para o verão de 2018 sugerem que o boom já chegou ao seu ponto máximo. O número de visitantes estrangeiros em julho caiu 3% em comparação com a mesma cifra do ano anterior, enquanto que a cifra de agosto caiu 2%. Com o aumento dos preços em Lisboa, os turistas europeus já estão começando a buscar outros locais mais baratos para escapadas de fim de semana. A queda da libra esterlina também afetou o número de turistas britânicos que buscam férias no estrangeiro. Ademais, o colapso dos preços na Grécia levou sua indústria turística a superar países como a Espanha e Portugal, enquanto que o turismo na Turquia e nos países do norte da África também se recuperou em certa medida depois dos atentados terroristas e da instabilidade política que dissuadiram os visitantes nos últimos anos.
A normalização do emprego temporário, estacionário e de curto prazo em Portugal desde a crise do euro está vinculada ao crescimento da indústria turística. Esse tipo de emprego constitui a maior parte da diferença nas cifras do desemprego desde 2013. Em 2008, 10% dos trabalhadores jovens portugueses (16-24 anos) tinham um emprego a em tempo parcial. Em 2015, essa cifra aumentou para 22%. A percentagem de todos os trabalhadores portugueses com contratos de curta duração (seis meses em média) aumentou, no mesmo período, de 22% a assombrosos 67,5%. Esse processo foi fundamental para romper a resistência da classe trabalhadora em Portugal – facilitando a aplicação das medidas de austeridade – e continuou durante o governo atual.
O emprego precário foi o principal ponto de atração para os capitalistas europeus que duplicaram o investimento nos mercados de exportação portugueses no ano passado. As exportações aumentaram de 24% a 40% do PIB, entre 2005 e 2017. Portugal era historicamente um portal para o movimento de mercadorias dentro e fora da Europa devido a sua costa atlântica. Se a isso se somam os salários mais baixos da Europa Ocidental e as massas de mão-de-obra temporária, Portugal se converteu numa perspectiva mais atraente para os investidores em todo tipo de produção, incluída a indústria pesada. Os subúrbios de Lisboa e da Cidade do Porto albergam agora enormes plantas de montagem de automóveis, por exemplo.
O “boom das startups” em Lisboa, por seu lado, consiste em que milhares de engenheiros portugueses recebem um salário inferior ao salário mínimo britânico, estadunidense ou alemão para realizar trabalhos de programação altamente qualificados para multinacionais tecnológicas (ou agências portuguesas que trabalham para multinacionais tecnológicas). Muitos outros milhares de jovens portugueses, bem como outros de toda a Europa, estão trabalhando longas horas com contratos de curta duração nos diversos “call centers” que estão surgindo por toda a cidade, com salários baixos.
Enquanto o turismo e as exportações são os fatores chave na melhora das estatísticas econômicas do país, o governo português também trabalhou duro nas mesmas. Alguns gastos foram excluídos do déficit de 2017, como o resgate de 4 bilhões de euros do banco Caixa Geral, o que, por si só, eleva o déficit até 3% do PIB e supera a linha vermelha da União Europeia. A manipulação das cifras pode ser politicamente conveniente e mantém o fluxo da QE no curto prazo. Mas apenas mascara a imagem real da economia portuguesa, que, inclusive, em termos de estatísticas superficiais não é tão prometedora como se afirma.
Até que ponto a austeridade foi realmente varrida para o lado?
É inegável que o crescimento do turismo e das exportações proporcionou receitas fiscais adicionais ao governo português desde 2015. Contudo, embora tenha utilizado alguns desses fundos adicionais para conter pequenos detalhes do programa de austeridade, os mesmos foram destinados em grande medida para equilibrar o orçamento.
Os aumentos do salário mínimo e do emprego não são a expressão da melhora do nível de vida. Pelo contrário, são uma cobertura de problemas críticos que afetam a vida dos portugueses e que o governo não está fazendo nada para resolver. Os aumentos salariais estão muito atrás dos astronômicos aumentos dos aluguéis nas principais cidades e não fazem nada para combater o açoite do trabalho precário e do subemprego crônico. Esse fenômeno é o verdadeiro meio através do qual se controlou o desemprego.
Ademais, as estatísticas de desemprego se viram favorecidas pela queda da taxa da população ativa (a proporção de portugueses que trabalham ou buscam trabalho). Essa baixou de 62%, em 2010, a 59% em 2014, e não se recuperou desde então. Outro fator é a perda líquida de 200.000 mil pessoas (principalmente jovens) – uma parte considerável da classe trabalhadora – desde o início da crise do euro, que Matthew C. Klein se viu obrigado a assinalar enquanto elogiava a economia portuguesa para o Financial Times. E embora o desemprego juvenil tenha sido reduzido à metade desde o seu máximo em 2013, continua sendo de 20%, igual ao máximo anterior à crise.
Além do emprego, as políticas do governo em matéria de saúde agem como uma referência de suas credenciais de “anti-austeridade”. Desde o ano 2000, a percentagem da assistência sanitária portuguesa financiada por meios privados aumentou gradualmente. Sob o governo de Costa, essa tendência persistiu. O gasto em saúde como percentagem do PIB se reduziu desde o mínimo do governo anterior de 9% a 8,9% em 2017. O número de médicos e enfermeiras que emigram ao estrangeiro tendeu a aumentar ano após ano desde 2011, devido à deterioração das condições no Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Entre 2011 e 2012, como parte do “programa nacional de reestruturação”, o conjunto de taxas ao usuário para o SNS mais do que dobrou. Alguns deles se tornaram proibitivamente custosos. As urgências gerais passaram de 9,60 euros a 20 euros.; a As consultas de atenção primária, de 2,25 euros a 5 euros, o que significa um aumento significativo para as pessoas com problemas de saúde e que são cobradas repetidamente durante um período de tempo. Embora desde então se aplicassem certas reduções e isenções, o aumento dos custos dos produtos farmacêuticos receitados está sendo coberto cada vez mais pelos próprios usuários, incluídos os aposentados e as pessoas com enfermidades crônicas. Depois de quase três anos de governo de Costa, os pagamentos pela utilização do SNS se mantêm quase exatamente nos níveis introduzidos pela austeridade há sete anos.
O gasto em educação também continuou diminuindo constantemente desde 2010, e Costa o reduziu do nível de 3,8%, que herdou, a 3,7% do PIB. Essa queda se viu favorecida pelo êxodo juvenil dos últimos anos, mas os cortes de grande alcance no financiamento das universidades também estão desanimando os jovens para que continuem sua educação.
Embora o gasto com os serviços públicos esteja diminuindo, os níveis de taxação continuam sendo idênticos aos introduzidos pelo governo anterior. Os aumentos dos impostos sobre a renda anunciadas em 2012 representam um ônus desproporcional para os trabalhadores com salários baixos e médios que já estavam doando a mesma percentagem de seus salários em pagamentos da seguridade social que seus gerentes. A única mudança que o governo atual fez foi a de estender a quarta parcela do imposto sobre a renda (a segunda maior) diminuindo seu limite inferior. Isso terá pouco impacto para a maioria das pessoas, exceto nos bolsos de profissionais como médicos, advogados e professores universitários.
Enquanto isso, o imposto de sociedades (das empresas) se mantém em 21% – a taxa mais baixa do Sul da Europa – depois de ter sido reduzido de 25%, em 2014-15. Uma mudança significativa foi a redução do IVA dos restaurantes, que antes estava em 23% e que, em 2016, foi reduzido a 13%, para fomentar a rápida expansão da indústria do turismo. Junto à contração dos serviços públicos e aos altos níveis de impostos que sobrecarregam os trabalhadores – uma continuação das políticas do governo anterior – isso dificilmente indica uma reversão da austeridade.
Deve-se perguntar: como se pode considerar que um governo que quase equilibra o orçamento de uma das economias mais débeis e mais afetadas pela crise da Europa seja “anti-austeridade”?
A explosão social se infiltrou no setor da habitação
A questão da moradia, em particular, chega ao núcleo de uma crise social que está sendo gestada em Portugal e que somente se aprofundou sob este governo. Em 2012, como parte do programa de reestruturação impulsionado pelo BCE e pelo FMI, uma nova lei eliminou os limites do aluguel de longa duração para as pessoas de renda baixa e para os pensionistas. Esses limites máximos foram estabelecidos de alguma forma para proteger os trabalhadores, bem como outras pessoas sem renda, congelando efetivamente sua renda durante décadas.
Sua eliminação provocou milhares de despejos, precipitando a especulação e o desenvolvimento imobiliário nas principais cidades, como Lisboa e Porto, bem como no Algarve. Na medida em que os proprietários e os investidores estrangeiros tentam tirar proveito do auge turístico, cada vez mais prédios de apartamentos urbanos estão sendo remodelados para aluguel durante as férias. Em Lisboa agora é comum ver blocos de apartamentos e albergues Airbnb recentemente renovados, adjacentes às casas arruinadas dos inquilinos locais de longa data. Os proprietários simplesmente estão esperando que terminem seus contratos para aumentar os preços e descartá-los, de forma que essas casas também possam se converter em alojamentos de férias.
Comunidades inteiras estão sendo destruídas por esse processo. Em alguns casos, os mais desfavorecidos veem-se obrigados a ir para a rua. Os pensionistas e as famílias trabalhadoras que viveram no mesmo apartamento durante décadas não têm para onde ir. Inclusive as classes médias nas zonas centrais das cidades estão sendo golpeadas. Em um artigo do New York Times cita-se o exemplo de um proprietário de um bar de Lisboa, cujo locador quadruplicou seu aluguel de um ano para o outro, que está sendo desalojado este ano.
Contudo, os jovens são a população mais afetada por esse problema. Um estudo publicado em janeiro de 2017 por Cáritas Europa revelou que a maioria dos jovens não pode alugar ou comprar uma propriedade em Portugal. O estudo explica: “Os preços de uma propriedade em Portugal, comparados ao salário médio, são desproporcionais”. Além de se deslocarem precariamente de um emprego temporário a outro e de que o setor da educação foi devastado pelos cortes de fundos, o jovem português médio permanece com seus pais até os 29 anos de idade.
Longe desse problema ser resolvido, o processo se acelerou sob o atual governo, já que a bolha turística foi inflada. A coalizão liderada pelos socialistas em vez de reverter a lei da liberalização e apoiar os inquilinos contra os proprietários e as grandes empresas, continuou com as mesmas políticas. Essas incluem um programa de “Golden Visa”, que concede permissão de residência aos especuladores imobiliários não europeus que compram ou investem em propriedades de valor superior a um determinado nível (normalmente superior a 500.000 mil euros).
Sob a crescente pressão vinda de baixo, que incluiu várias ocupações de alto impacto, o governo tomou algumas medidas para amortecer os piores efeitos sociais da situação da moradia. Uma emenda aprovada à lei de 2012 aumenta a permanência de um inquilino que não paga a três meses de ser despejado. Enquanto isso, os pensionistas e as famílias de baixa renda, que ainda alugam através dos antigos contratos de aluguel, têm agora um período de transição prolongado antes de que se permita aos proprietários impor novos preços. Portanto, pelo menos agora esses grupos demográficos têm tempo de se preparar para que lhes tomem seus lares ou, no caso dos pensionistas, lhes foi dada a oportunidade de morrer antes de serem expulsos.
Para manter sua posição nas pesquisas de opinião, o governo busca atrasar a explosão social que está sendo gestada sobre a situação da habitação. Não fizeram nada a respeito da grande quantidade de despejos que ocorreram e que continuam ocorrendo. Enquanto continuar a orgia da especulação imobiliária, a explosão que está se preparando – para este governo e o próximo – será cada vez maior.
O papel do Bloco de Esquerda e do PCP
O governo socialista conta com o apoio do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista Português para aprovar leis no parlamento. Essa posição deixa margem para que se exerça uma enorme pressão a partir da esquerda. O PCP controla a maioria dos maiores sindicatos de Portugal, enquanto que o Bloco, pelo menos durante um tempo, teve um apoio eleitoral significativo entre os jovens.
Sem esses partidos, o chamado governo de “esquerda” de Portugal não existiria. Poderiam utilizar o poder que surge desta situação para forçar uma verdadeira derrota das medidas de austeridade impostas desde a crise do euro e , ademais, para obter verdadeiras reformas para os trabalhadores e jovens portugueses. De fato, no ano passado, o Financial Times advertiu que a recuperação portuguesa poderia causar “uma crise das boas notícias”, o que poderia levar os partidos de esquerda a exigir mais a seus sócios de coalizão.
Apoiar-se no movimento da classe trabalhadora demonstraria o poder real nas mãos do PCP, cujos laços históricos com as massas portuguesas são muito mais profundos que os do Partido Socialista. E o Bloco poderia traduzir o apoio eleitoral que recebeu por seu discurso radical durante as campanhas eleitorais em um movimento de sua base de jovens, para forçar mudanças nas políticas de emprego, educação e habitação.
Em vez disso, a direção de ambos os partidos, em diferentes graus, logrou até agora reverter esta posição. Encolhem-se de medo com a ideia de serem considerados culpados do colapso do governo, levantando uma débil oposição e o mais silenciosamente possível para não perturbar a paz, enquanto votam orçamentos cujo objetivo declarado é a redução do déficit à custa da classe trabalhadora portuguesa.
Certamente, tanto o Bloco quanto o PCP desempenharam um papel em certas alterações menores das políticas do governo anterior, como as novas leis do aluguel. Mas o caráter mínimo dessas reformas só serve para expor as limitações da direção desses partidos, cuja ideia de impor a vontade das massas portuguesas ao governo é a de prolongar a vigência dos avisos de despejo.
Os dirigentes do Bloco, em particular, demonstraram sua hipocrisia neste sentido. Enquanto os ativistas do Bloco se tornam visíveis nas ocupações espontâneas de inquilinos em toda Lisboa, um vereador de alto nível, que representa o partido, foi desmascarado como um proprietário que se aproveita do aumento dos aluguéis. Enquanto o seu partido se pronunciava publicamente contra os ataques aos inquilinos e seus direitos, esse vereador estava aumentando o aluguel de sua própria propriedade, forçando efetivamente o despejo de seus inquilinos.
Parte da razão por que a resolução foi aprovada sem qualquer oposição real é que, além das diferentes camadas da burocracia, o Bloco perdeu em grande medida a base de ativistas que tinha. Os membros, ou rejeitaram a relação cordial entre a direção do partido e o governo, ou adotaram esta posição, negando a necessidade de um ativismo partidário independente. Se o partido for em frente com a aliança eleitoral, é provável que sua base eleitoral se divida de forma similar.
Por seu lado, o PCP prestou um grande serviço ao Partido Socialista ao manter sob controle o movimento dos trabalhadores, assegurando-se de que as greves do setor público, em particular, não saiam de controle.
Militância na base e liderança débil
Dito isso, um dos maiores conflitos trabalhistas na história da docência em Portugal foi liderado por FenProf, um sindicato dominado pelo PCP. Mestres, professores e universitário participaram de uma série de greves contra a baixa remuneração, a precariedade e a semana de trabalho de 35 horas, entre março e julho. A participação alcançou os 70% e, ante a ausência de sindicatos oficiais de estudantes em Portugal, a alta participação de jovens universitários e pessoal eventual foi particularmente notável. Também houve uma grande manifestação pública no centro de Lisboa em maio. Contudo, apesar da combatividade das bases, muitos se queixaram de que a direção não mostrou o caminho a seguir.
A linha seguida foi a transmitida aos trabalhadores portugueses em geral desde 2015 pela hierarquia sindical. Em poucas palavras, é importante que os trabalhadores cumpram com o seu dever saindo à luz e deixando claras suas reivindicações, mas também é importante que nenhuma ação ponha em risco o governo. Uma vez que a disputa chegou a certo ponto é necessário que todos aceitem o seu lugar, vão para casa e fiquem agradecidos de que o PCP mantenha o governo sob controle, trabalhando arduamente para mudar a opinião do primeiro ministro, aqui e ali, sem seu nome.
Em outros locais, uma greve militante de SEAL, o sindicato nacional de trabalhadores portuários contra uma campanha brutal de destruição dos sindicatos realizada pelos patrões da indústria, bem como contra as condições de trabalho precárias, esteve em curso desde maio. Essa greve se caracteriza pela vergonhosa falta de solidariedade, tanto em palavras quanto em ações, por parte dos dirigentes de outros sindicatos dirigidos pelo PCP, especialmente se se leva em consideração que ambas as razões da greve são temas generalizados de toda a classe trabalhadora portuguesa.
Em primeiro lugar, demonstrou além de toda dúvida a debilidade de sua direção, exatamente quando parece ter ocorrido uma verdadeira oportunidade de exercer pressão direta sobre a classe dominante portuguesa. No caso da greve dos professores, a débil direção de FenProf levou alguns trabalhadores a abandonar o sindicato completamente e a se unirem ao recém-formado sindicato independente STOP, que se beneficiou em grande medida das vacilações do executivo de FenProf, dominado pelo PCP.
Embora a situação política em Portugal se encontre claramente em ponto baixo, existe o desejo de um enfoque mais combativo no plano industrial. Isso é particularmente válido no caso das camadas que recentemente foram arrojadas nas precárias condições de trabalho, que ajudaram a melhorar as estatísticas de desemprego do governo, como o demonstra uma greve massiva pelo emprego e pelos direitos sindicais por parte dos trabalhadores temporários e subcontratados em 15 de novembro. SEAL, por seu lado, aprovou uma moção para a filiação dos trabalhadores portuários ocasionais de Setúbal ao seu sindicato pouco depois de que esses trabalhadores deram o exemplo a seus camaradas já sindicalizados.
Mas o comitê executivo da principal federação sindical, a CGTP, dirigida pelo PCP, não faz mais do que falar das lutas desses trabalhadores, ao mesmo tempo em que elogia o governo por reduzir o desemprego. A CGTP não se engajou até 15 de novembro, sob a enorme pressão das bases de alguns de seus sindicatos filiados. As outras lutas realizadas nos últimos três anos sugerem que seu papel consistirá na limitação do alcance das medidas adotadas. Portanto, os líderes do PCP estão perdendo mais uma vez a possibilidade de exercer uma enorme pressão sobre o governo, o que poderia empurrá-lo a realizar as reformas genuínas que as massas de trabalhadores eventuais necessitam desesperadamente.
Como o Bloco manteve sua posição nas pesquisas no momento (embora sem ganhar outros pontos), a percentagem do PCP na realidade caiu desde as eleições de 2015. As lições de ter-se aliado a um partido socialdemocrata e de ter aprovado passivamente suas políticas anti-trabalhador se encontram entre os escombros dos partidos comunistas de toda a Europa, sobretudo na história do próprio PCP. Se ambos os partidos de esquerda continuarem nessa linha, em vez de serem culpados pela derrubada do governo, serão objeto de acusações muito mais graves quando a recuperação de Portugal se esgotar.
Embora ser abertamente crítico de um governo popular e aparentemente estável a partir de dentro possa ser um ato polêmico neste momento, isso não destruirá a base de apoio ou a credibilidade de um partido. As repetidas traições aos interesses de classe sobre os quais se constrói esse apoio, o farão. Se o PCC e o Bloco são vistos como se estivessem atados de mãos e pés a esse governo, com a menor diferença entre eles e o Partido Socialista, quando a popularidade do governo começar a desmoronar, junto com a situação econômica em Portugal, cairão com ele. A classe trabalhadora portuguesa tardará muito a voltar a confiar neles.
O futuro imediato de Portugal
Em seu estudo sobre a juventude portuguesa, Cáritas Europa sugeriu de forma preocupante que a combinação de condições de trabalho precárias e condições de vida inacessíveis supõe uma ameaça para “o futuro do país”. Que se façam tais advertências em um momento em que a economia portuguesa parece estar em alta, no contexto mais amplo de um equilíbrio político e econômico extremamente frágil em toda a Europa, deveria preocupar seriamente a classe dominante portuguesa.
Antonio Costa tem assegurada sua reeleição como primeiro ministro nas eleições gerais do próximo ano, seja através de uma maioria parlamentar ou de uma coalizão com o Bloco. Mas é mais do que provável que uma crise chegue por qualquer meio durante seu segundo mandato. Pelo menos o turismo será paralisado, senão estancado, devolvendo muitos dos agora empregados em situação precária às cifras do desemprego e ameaçando fazer explodir a bolha imobiliária especulativa que está sendo inflada atualmente. A crise da habitação que se avizinha pode explodir nos próximos anos.
E, talvez mais importante, a União Europeia poderia submergir na crise mais profunda de sua história nesse momento, arrastando a economia portuguesa com ela. Embora não seja assim, a continuação de uma recuperação em escala europeia significaria uma redução das políticas do BCE da Expansão Quantitativa (QE), deixando Portugal preso na mesma espiral de dívidas impagáveis que o levou à borda do desastre no início desta década.
Para a esquerda, estas coisas deveriam ser um sinal para se preparar para as lutas monumentais que chegarão antes do que indica a relativa estabilidade da situação atual. Isto não significa subordinar os objetivos políticos ao êxito de um governo cujas políticas (por mais radicais que sejam em palavras) estão em consonância com o BCE e o FMI. Isto significa tomar as lições dos acontecimentos anteriores, tanto historicamente em Portugal quanto mais recentemente no restante da Europa, e aplicá-las hoje. Sobretudo, o PCP e o Bloco têm que passar das manobras parlamentares à luta e à mobilização nas ruas.