O voto no Pacote Anticrime e o abandono da perspectiva revolucionária

A Câmara dos Deputados aprovou, em 4 de dezembro, o “Pacote Anticrime”, elaborado por Sérgio Moro. Ao todo, 408 parlamentares votaram “sim” para o projeto, incluindo quase toda a bancada do PT e três deputados do PSOL. Esse posicionamento dos ditos parlamentares de esquerda expôs até onde se pode ir com a adaptação ao sistema, a política errada, a incapacidade de perceber o movimento da luta de classes no mundo e a falta de confiança na classe trabalhadora. Ao votar a favor de um projeto que endurece a máquina repressiva do Estado, esses parlamentares traíram suas bases e os princípios mais elementares do marxismo. A aprovação desse projeto facilitará em todos os sentidos o aumento da repressão, a prisão e criminalização da classe trabalhadora e da juventude.

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A traição

Marcelo Freixo (PSOL-RJ), que defendeu o voto favorável alegando que o grupo de trabalho do qual participou na Câmara conseguiu deixar o projeto “menos pior”, foi tão criticado que alcançou os trend topics do Twitter. Ele chegou a ser chamado de “Tabata do Pacote Anticrime”, expressão em referência à jovem deputada do PDT que alimentava uma imagem de esquerda, mas votou a favor da Reforma da Previdência.

O projeto final aprovado foi uma costura feita pelos deputados com a proposta inicial de Moro e outra do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. Freixo integrou o grupo de trabalho que, depois de vários meses de discussão, firmou um consenso de retirar vários pontos da proposta, como o famigerado “excludente de licitude”, que significava a licença para a polícia matar – mais do que já mata.

Para Freixo, era uma questão de votar a favor ou deixar retornar a proposta inicial, mais maléfica. A diferença de quase 400 votos, no entanto, evidenciou a total falta de sentido deste argumento, já que o voto dos parlamentares do PSOL e do PT não eram determinantes para a aprovação do projeto. E, independente disso, para se colocar ao lado dos interesses da classe trabalhadora, sem cair nas armadilhas do jogo parlamentar, estes deputados deveriam ter votado contra o projeto.

Além disso, o pacote tal como foi aprovado ainda permite aumentar penas para determinados crimes, bem como para a pena máxima. Amplia critérios de legítima defesa policial, aumenta penas para crimes de honra, entre vários outros pontos que, ao contrário da ilusão de maior proteção da população, apenas fortalecem o aparato policial repressivo.

Ao UOL, Freixo soltou a prepotente frase: “a dinâmica do Congresso não é uma coisa fácil de entender para quem não está aqui no dia a dia”. Aos militantes do seu partido, ele afirmou: “Eu quero dizer que tenho um respeito muito profundo com os movimentos sociais, eu venho do movimento social (…). O papel do movimento social é bater, é criticar, tá certo e é isso mesmo que tem que fazer, o papel dentro do parlamento é outro, não tem jeito”.

Não. Os trabalhadores não são incapazes de entender o que se passa no parlamento e o que aconteceu foi claro: três deputados do PSOL, mais de 40 deputados do PT e toda a bancada do PCdoB votaram a favor de um projeto que aumenta o poder da máquina repressiva do Estado. O nome disso é traição de classe. PDT e Rede também votaram fechados a favor, o que não poderia ser diferente, pois esses são partidos da burguesia.

O papel do Estado

O papel repressivo do Estado burguês contra a classe trabalhadora é um tema básico da formação marxista. No livro “O Estado e a Revolução”, Lenin já explicava:

“Para Marx, o Estado é um órgão de dominação de classe, um órgão de submissão de uma classe por outra; é a criação de uma ‘ordem’ que legalize e consolide essa submissão, amortecendo a colisão de classes. Para os políticos da pequena burguesia, ao contrário, a ordem é precisamente a conciliação das classes e não a submissão de uma classe por outra; atenuar a colisão significa conciliar, e não arrancar às classes oprimidas os meios e processos de luta contra os opressores cuja derrocada elas aspiram”.

Na mesma obra, Lenin também afirma que “O exército permanente e a polícia são os instrumentos fundamentais da força do poder estatal”. Um deputado comunista nunca, jamais, deve votar a favor de medidas que fortaleçam esses instrumentos, porque ao fim, em todos os exemplos da história, esse aparato acaba por servir para oprimir ainda mais a classe trabalhadora.

Isso não significa, como Freixo também afirmou, que a esquerda só sabe o que não quer e não discute segurança. Os marxistas não querem discutir como melhorar o atual modelo de segurança pública, pois ele não tem como ser reformado. Defender isso é a total adaptação ao sistema. Os comunistas opõem a essa lógica as palavras de ordem de Fim da Polícia Militar, armamento do proletariado e organizações de autodefesa proletária. Na atual conjuntura brasileira, isso passa também pela consigna de Fora Bolsonaro.

A burguesia sabe, porém, que em uma sociedade baseada na divisão e exploração de classes, armar os oprimidos é literalmente dar munição para eles se defenderem. É por isso que Bolsonaro não vai até o fim em sua demagogia sobre a liberação do armamento.

Os comunistas no parlamento

Ao afirmar que sua função no parlamento não é mais a mesma dos movimentos sociais de onde veio, Freixo se instala como um desses políticos da pequena burguesia, citados por Lenin, que visam “atenuar” as colisões de classe. Sua função principal caso fosse um parlamentar comunista não seria ajudar a aprovar um projeto “menos pior” de opressão sobre a classe, mas votar contra ele e convocar a militância, a classe operária e a juventude a apoiá-lo. Essa seria uma atitude que elevaria o nível de consciência dos trabalhadores.

A Esquerda Marxista dirigiu mandatos parlamentares municipais por muitos anos. Na Câmara de Vereadores de Joinville, em Santa Catarina, onde o militante Adilson Mariano foi um parlamentar comunista por 16 anos, houve muitas situações em que, mesmo trabalhando para retirar ataques de projetos, ele votou contra em plenário. Foi o caso da municipalização da água no município, em que se previa a criação de uma empresa de economia mista com 49% de capital privado. Ao final de muitas discussões e emendas do mandato marxista, o projeto foi alterado para que a companhia tivesse 70% de capital público. Ainda assim, representava o início da privatização, e Mariano votou contra.

A mesma postura adotava o militante Roque Ferreira, vereador da cidade de Bauru, São Paulo. Por três anos a atuação desse mandato marxista conseguiu impedir a votação da Lei da Atividade Delegada, que passava as funções dos fiscais de postura para policiais no município. Roque apresentou emendas que abrandaram o projeto, chamou audiências públicas e, quando não foi mais possível impedir a votação, foi contra. O projeto passou e hoje os policiais apenas “fiscalizam bares”, mas, na prática, fazem isso somente nos bairros operários, o que serve como justificativa para maltratar a população mais pobre.

Esses são só dois exemplos em meio a incontáveis situações. Em todos os casos, os parlamentares marxistas esgotavam os recursos disponíveis nas câmaras para diminuir os ataques e, em plenário, votavam contra. Eles não têm suas assinaturas em nenhum ataque à classe operária e à juventude e, ao mesmo tempo, mantiveram sempre uma inserção real na classe trabalhadora, mobilizando a base a cada ameaça. Isso é utilizar o parlamento burguês para elevar a consciência de classe dos trabalhadores e não para se adaptar.

Nos documentos do 2º Congresso da 3ª Internacional Comunista, de 1920, há uma resolução sobre “O partido comunista e o parlamentarismo”. Nela, consta a forma como os deputados comunistas devem se comportar:

“12º) Os deputados comunistas, nem que sejam um ou dois, são obrigados a manter sempre sua atitude de desafio ao capitalismo e jamais esquecer que ela só é digna do nome de comunismo ao se revelar não verbalmente, mas pelos atos, inimiga da sociedade burguesa e seus servidores social-patriotas”.

Não importa qual a justificativa apresentada, o que os três deputados do PSOL e os mais de 40 do PT fizeram foi votar contra os interesses da classe trabalhadora. Mesmo que Freixo considere que os pontos retirados do projeto foram uma derrota para Moro, não é isso que o próprio ministro da Justiça afirma. Ele declarou à imprensa que a aprovação do projeto representou o “endurecimento da Justiça e da Segurança Pública” e que “em relação ao que não foi aprovado se vai trabalhar para se restabelecer no Senado ou em projeto a parte”. Ou seja, toda essa manobra nem mesmo descarta que os outros pontos retornem.

O PSOL foi o único partido que liberou sua bancada para votar no que quisesse e isso demonstra a completa adaptação ao sistema de sua direção. O Movimento Esquerda Socialista (MES) – tendência interna do partido – por sua vez, decidiu que uma de suas deputadas, Sâmia Bomfim, seria contra a proposta (porque, afinal, o projeto é ruim) e Fernanda Melchionna “acompanharia Freixo”. Ocorre que acompanhar Freixo não é uma política para ser seguida, ele é um traidor. A tática do MES, além de ser incompreensível, marcou a história de uma de suas militantes. O terceiro deputado do PSOL que votou a favor foi Edmilson Rodrigues, com a mesma linha de argumentação de Freixo. O PT e todos os partidos burgueses orientaram o voto “sim”.

A luta de classes é mais forte

O mundo está em ebulição. Assim como já aconteceu em outros momentos da história, uma vaga revolucionária atinge o mundo. Explodem greves gerais e levantamentos de massa revolucionários na França, Irã, Sudão, Argélia, Tunísia, Hong Kong, Haiti, Equador, Iraque, Líbano, Bolívia, Chile. A Catalunha continua com enormes movimentos de massa. A classe trabalhadora resiste em todos os lugares em reação ao apodrecimento geral da sociedade capitalista e aos males que esse sistema gera para a humanidade.

O Brasil está em meio a esse cenário internacional e o risco de uma explosão social por aqui é sentido pela burguesia. Não à toa Eduardo Bolsonaro mencionou um novo AI-5 se a “esquerda radicalizar”, referindo-se ao que acontece no Chile. Por isso mesmo é tão vergonhosa a linha política de “defesa da democracia (burguesa)” do PT, PSOL, PCdoB etc.

A votação do projeto anticrime mostra até onde uma política errada pode ir. Na história existem exemplos com os quais esses senhores deveriam ter aprendido. É o caso do episódio em que os deputados da social-democracia alemã votaram a favor dos créditos de guerra ao lado da sua burguesia nacional, quando, na realidade, tinham o dever de se opor à guerra imperialista. Ficou gravado para sempre o apoio desses “socialistas” à 1ª Guerra Mundial.

Se os batalhões pesados da classe trabalhadora brasileira ainda não explodiram de indignação não é porque existe uma onda conservadora ou, como também disse Freixo, “a gente vive uma conjuntura muito ruim nesse país, né? Eleição de Bolsonaro”. O que segura a panela de pressão é justamente a ação traidora das direções sindicais, em particular a direção da CUT, que busca conviver com o capital e salvar as instituições burguesas, contendo o movimento de massa. Contribui para isso a falta de confiança que inspiram parlamentares ditos de esquerda e partidos como o PT, PCdoB e PSOL que votaram a favor do pacote de Moro. Essas direções há muito abandonaram a perspectiva da luta de classes, por isso se negam a levantar a bandeira “Fora Bolsonaro”. Elas temem qualquer alternativa que não passe pela conciliação com a burguesia e repelem toda perspectiva revolucionária.

Mas a luta de classe é o motor da história e não pode ser segurada por muito tempo. Cedo ou tarde as massas no Brasil sairão às ruas como está acontecendo no mundo todo. Até lá, cabe aos marxistas a preparação dos seus militantes e contatos e a construção do partido revolucionário.

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