Se a reunião das principais economias do Grupo dos 20 (G20) na Índia pretendia ser uma demonstração de unidade contra a Rússia, conseguiu produzir precisamente o resultado oposto. A declaração final do Grupo, que se recusou terminantemente a condenar Moscovo, provocou imediatamente uma onda de fúria em Kiev e expôs contradições flagrantes na autoproclamada coligação contra a Rússia.
[Source]
O país anfitrião, a Índia, efetivamente castrou a declaração original redigida pelos americanos, que colocava a culpa de tudo diretamente nos ombros da Rússia. Na versão final, o documento não fazia menção a qualquer invasão russa. Em vez disso, a declaração limitou-se a declarações vazias sobre o “sofrimento humano e impactos negativos adicionais da guerra na Ucrânia”.
Reiterou a banalidade rotineira de que a guerra é má e a paz é boa, o que é mais ou menos o equivalente diplomático de expressar apoio à torta de maçã e à maternidade. Para dar os últimos retoques a esta lista sem sentido de banalidades, foi lembrado a todos os presentes que:
“Todos os Estados devem abster-se da ameaça ou do uso da força para procurar a aquisição territorial contra a integridade territorial e a soberania ou independência política de qualquer Estado. O uso ou ameaça de uso de armas nucleares é inadmissível…“
Caso não tenhas adivinhado, tratava-se de uma referência à Carta da ONU, que está em vigor há muitas décadas e não impediu uma guerra ou qualquer outro crime contra a humanidade.
Mas também, para ser justo, os dez Mandamentos que Moisés apresentou à humanidade em tábuas de pedra existem há muito mais tempo, sem terem tido qualquer efeito perceptível no curso da história humana.
Para exprimi-lo em linguagem simples, esta foi uma afirmação digna de nota apenas na medida em que nada referiu em particular. Esta foi, de facto, a única forma de Modi conseguir que a maioria dos participantes concordasse com qualquer tipo de declaração final. E a maioria dos presentes mostrou-se satisfeita com o resultado.
Este entusiasmo não foi, no entanto, partilhado por Washington. Isso não é surpreendente, porque representou uma humilhante bofetada na cara dos americanos e dos seus agressivos aliados, que se viram completamente isolados e ultrapassados.
Foi um desenvolvimento particularmente irritante para Joe Biden, que se deu ao trabalho de comparecer pessoalmente na esperança de garantir algumas manchetes positivas para ajudar a sua campanha à reeleição no próximo ano.
Em contrapartida, tanto Vladimir Putin como Xi Jinping mantiveram-se afastados. Esta foi a sua maneira de dizer: “O que quer que decidam não fará absolutamente nenhuma diferença para nós. Continuaremos a prosseguir as políticas que consideramos do nosso próprio interesse.»
Sem dúvida que assim foi. No entanto, os americanos e seus aliados esperavam usar o G20 para obter uma vitória propagandística, demonstrando ao mundo inteiro que a Rússia está completamente isolada. Mas foi tudo ao contrário! A reunião foi, na verdade, um grande golpe diplomático para a Rússia e a China, que conseguiram fazer aprovar a sua agenda para os assuntos mundiais, apesar da ausência dos seus dois líderes.
A aliança ocidental em desordem
Como seria de esperar, alguns diplomatas ocidentais tentaram imediatamente dar um brilho positivo às coisas. Um alto diplomata da UE disse à AP que o bloco “não desistiu de nenhuma de sua posição” e sublinhou o facto que Moscovo ter assinado o acordo era já importante.
“A opção que tínhamos era este texto ou nenhum texto, e acho que é melhor [ter um] texto. Pelo menos se eles [os russos] não o implementarem, saberemos mais uma vez que não podemos confiar neles“, disse o diplomata.
Mas esse otimismo fabricado não foi compartilhado por Washington ou Londres. O verdadeiro significado do evento foi imediatamente demonstrado pelos homens de Kiev. O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia, Oleh Nikolenko tentando (não muito convincentemente) conter a sua raiva, disse:
“Estamos gratos aos parceiros que tentaram incluir uma redação forte no texto. No entanto, em termos de agressão da Rússia contra a Ucrânia, [o] G20 não tem nada de que se orgulhar“, apressou-se a acrescentar.
Entretanto, Kiev continua a manter a pretensão de que a sua famosa contraofensiva continua (apesar de todas as indicações em contrário) a avançar.
A contraofensiva falhou
As forças ucranianas supostamente estariam avançando com sua contraofensiva contra as forças russas nas regiões sul e leste. Mas a extrema lentidão do avanço, a exiguidade dos ganhos e o nível horrível de perdas humanas e materiais contam uma história diferente.
Poucos, ou nenhuns, observadores sérios no Ocidente têm dúvidas de que a contraofensiva foi um fracasso espetacular. Esse é, de longe, o elemento mais decisivo nesta equação sangrenta. E de tal forma que está a obrigar até alguns dos apoiantes mais fanáticos do regime de Kiev a ter de repensar o conflito.
Os propagandistas ocidentais, que previam com confiança a vitória, devem agora começar a preparar a opinião pública para uma derrota humilhante.
Já começaram, embora observando o necessário grau de cautela – evitando cuidadosamente palavras como “fracasso” ou “derrota” – limitando-se antes a frases como: “embora os resultados da contraofensiva não tenham correspondido às expectativas…” Eles também evitam qualquer menção ao fato de que essas falsas expectativas foram criadas por ninguém menos que eles próprios!
Em todo este coro cínico de mentirosos e hipócritas, um pequeno número decidiu que seria melhor dizer as coisas (mais ou menos) como elas são. Entre esta espécie rara está o coronel Richard Kemp.
Richard Kemp é um ex-oficial do Exército Britânico, um observador belicista cujas opiniões são próximas às do MI5. Em 10 de setembro de 2023, ele escreveu no The Telegraph um artigo revelador, que efetivamente expõe o estado real das coisas. Começa com a seguinte afirmação:
“O tempo está a esgotar-se para a Ucrânia. Após 18 meses de guerra, já não se trata de saber se a aliança ocidental vai vacilar, mas sim quando.” (sublinhado meu, AW)
E acrescenta:
“O Ocidente continua comprometido com a contraofensiva da Ucrânia – mas há ceticismo sobre os objetivos finais de Zelensky.“
Mas o que é que isso significa? Em todos os discursos que Joe Biden faz, apressa-se a garantir-nos que os EUA apoiarão firmemente a Ucrânia “pelo tempo que for necessário”. Mas qual é o significado exato dessa frase deliberadamente obscura? Quanto tempo demorar – mas para quê, exatamente?
Do ponto de vista do governo de Kiev, a resposta é bastante clara: para que a guerra termine, ou mesmo para que se iniciem negociações significativas, os russos devem primeiro retirar todas as suas forças – incluindo da Crimeia.
Até há bem pouco tempo, essa era também a opinião firmemente defendida por Washington e, pelo menos, pelos seus aliados mais beligerantes (leia-se: os lambe-botas mais servis) na NATO: os polacos, os Estados bálticos e, claro, os britânicos. Eles têm-se atropelado constantemente uns sobre os outros para promover a agenda mais bélica, até e incluindo um conflito militar aberto com a Rússia.
Estas senhoras e estes senhores estavam tão ansiosos por mergulhar o mundo numa guerra total, que sentiram a necessidade de criticar os americanos pela sua pusilanimidade. “Porque não armam os ucranianos com seus tanques e caças mais modernos?
Mesmo agora, essas críticas ainda encontram um eco tardio, até no artigo do coronel Kemp, que claramente deseja colocar a culpa pela derrota da contraofensiva nos ombros de Biden e do governo americano.
A América é o principal apoiante do regime de Kiev e o fornecedor da maior parte do seu dinheiro e das suas armas. Mas de acordo com Kemp:
“O presidente Biden tem se arrastado, dando assistência militar suficiente para manter a Ucrânia lutando, mas intencionalmente não o suficiente para permitir uma vitória.“ (sublinhado meu, AW)
Esta é claramente uma crítica partilhada pelo MI5, pelo Governo conservador e pelo bando de loucos belicistas em Londres, que tentam disfarçar o colapso do papel da Grã-Bretanha como grande potência mundial latindo alto como um pequeno cão com um problema de atitude, agarrando-se aos calcanhares dos transeuntes.
Ora esses animais irritantes não são apreciados por ninguém e têm de ser postos em sentido Tal foi expresso por Washington recentemente quando Joe Biden vetou o ex-secretário da Defesa britânico Ben Wallace para o cargo de secretário-geral da NATO – uma decisão que provocou a sua demissão e a fúria em Londres.
Biden não tinha absolutamente nenhum interesse em permitir que os britânicos – ou quaisquer outros – usurpassem o controle dos Estados Unidos sobre a NATO ou ditassem a sua política sobre a Ucrânia.
No entanto, estas quezílias não afetaram a linha fundamental do governo Biden, que estava convencido de que uma ofensiva ucraniana poderia conseguir infligir uma grande derrota à Rússia e criar um cenário favorável para negociações nos termos de Kiev.
Os americanos e seus apoiantes, portanto, pressionaram Zelensky para iniciar sua ofensiva há muito prometida.
Num artigo recente, perguntei como era possível que os generais ucranianos desconhecessem os problemas colossais que enfrentava tal ofensiva. Assumi que se tratava de uma medida desesperada, destinada a provar aos americanos que o exército ucraniano ainda era capaz de lutar e, assim, garantir a continuação do fluxo de armas e dinheiro para Kiev.
Esse era, obviamente, um elemento muito importante na equação. Mas não foi a única, nem mesmo a mais importante. Desde então, tem vindo a saber-se que uma parte significativa dos generais ucranianos estava muito relutante em lançar a ofensiva e só o fez sob extrema pressão dos americanos.
Estes últimos cometeram o erro fatal de acreditar na sua própria propaganda. Desde o início das hostilidades, eles têm repetido o mesmo mantra: a Rússia é fraca; o seu exército está em frangalhos; os seus generais são incompetentes; está a ficar sem mísseis e munições; o moral dos seus soldados está muito baixo, e o povo da Rússia está pronto para se revoltar contra Putin a qualquer momento. E assim por diante.
Uma vez que ninguém está autorizado a afastar-se um milímetro desta narrativa, não é de estranhar que a Corte em torno de Joe Biden tenha engolido o engodo com gancho, linha e chumbo. Esta clique é composta por segundas figuras, assessores incompetentes, tão incapazes de qualquer pensamento original ou independente como o seu chefe semi-senil que ouve apenas o que gosta de ouvir.
Sobre uuma base tão instável, é impossível para a nação mais poderosa do mundo desenvolver uma política externa coerente – quanto mais uma política inteligente! De qualquer forma, a maioria do público americano tem muito pouca compreensão dos assuntos mundiais e ainda menos interesse neles.
Isso fornece uma base psicológica poderosa para a ideia de isolacionismo, que tem sido por tanto tempo um fator importante na política externa americana, e que ressurgiu com força redobrada na pessoa de Donald Trump. Não é por acaso que ele defenda veementemente a desvinculação da Ucrânia, nem que esta visão mexa com a opinião pública dos EUA.
É claro que Biden e a sua camarilha pressionaram Zelensky a lançar sua ofensiva. Havia duas razões claras por trás disso. Em primeiro lugar, enganados pela sua própria propaganda, estavam convencidos da possibilidade de uma vitória ucraniana, uma convicção reforçada pela ideia amplamente divulgada de que as “wonder weapons” fornecidas pela América e pelos seus aliados da NATO atuariam como “game changers”.
Em segundo lugar – e ainda mais importante – estava a ideia reconfortante de que, mesmo que o custo fosse contabilizado num grande número de mortos e feridos, os cemitérios estariam cheios de ucranianos, não de americanos.
Desses cálculos, apenas o segundo se revelou correto. O primeiro era totalmente falso e foi cruelmente exposto assim que a teoria foi traduzida para a prática.
Quantas vezes já ouvimos a mesma história de novas armas incríveis do Ocidente que representariam uma mudança dramática no campo de batalha?
Recordamos o grande alarido que foi feito sobre a entrega de tanques Leopard da Alemanha e tanques Challenger da Grã-Bretanha. Mas as últimas notícias do campo de batalha mostram esses mesmos tanques atolados em campos minados, onde servem como prática de tiro-ao-alvo para a artilharia russa.
A ofensiva tropeça a passo de caracol, com enormes custos de equipamento e de pessoal. As unidades ucranianas são “patos sentados” enquanto atravessam densos campos minados diretamente de frente para as defesas em várias camadas da Rússia. Mas que conclusões tiraram os americanos e os seus amigos deste fiasco?
Os imperialistas ocidentais, tendo empurrado Zelensky para uma guerra que ele não queria, e depois pressionando-o a lançar uma ofensiva para a qual nem ele nem os seus generais estavam preparados, informam-no agora, em tantas palavras:
“Embora nós, claro, apoiemos a sua ofensiva [ofensiva deles, na verdade], agora pensamos que os seus objetivos finais [que todos apoiaram mil por cento] são irrealizáveis.”
Falsas expectativas
Regressando a Kemp e à sua amarga lamentação:
“Isso reflete, pelo menos parcialmente, o progresso lento na contraofensiva da Ucrânia, que teve apenas ganhos limitados até agora.“
“Apenas ganhos limitados” é um eufemismo considerável. Como todos os outros comentadores ocidentais, Kemp tem medo de chamar os bois pelos nomes. Ele não pode dizer o que é flagrantemente óbvio, ou seja, que a tão propalada contraofensiva ucraniana fracassou – e fracassou catastroficamente.
No entanto, para quem está disposto a ler nas entrelinhas, os propagandistas da imprensa capitalista preparam cautelosamente a opinião pública para esta verdade intragável. A este respeito, o artigo de Richard Kemp é, na verdade, mais franco do que a maioria. Ele diz:
“Analistas militares ocidentais e os média construíram expectativas de que, neste verão, Kiev repetiria suas vitórias impressionantes do Outono passado em Kharkiv e Kherson. Agora, as pessoas perguntam-se que retorno estão recebendo pelo seu dinheiro, e se o investimento significativo feito pelos seus países alguma vez alcançará algo concreto.“
Isso está muito bem-dito. Como justificar o dispêndio de tantos milhares de milhões de dólares num momento de crise económica e de inflação galopante, em que o nível de vida de milhões de pessoas está a ser reduzido até ao tutano do osso?
E como justificar a continuação desta colossal sangria de recursos, quando, apesar de todo o equipamento militar moderno e de última geração enviado para Kiev, o exército ucraniano quase não avançou em três meses e sofreu um número horrível de mortos e feridos?
Estas são perguntas que devem ser feitas – que têm de ser feitas. No entanto, quase ninguém as coloca. Há uma conspiração de silêncio – não só nos meios de comunicação prostituídos (ridiculamente descritos como a “imprensa livre”), mas também por parte dos que supostamente são os partidos da “oposição”. Até da chamada esquerda, tudo o que ouvimos é um silêncio mortal.
Mas nenhuma mentira pode manter-se para sempre.
A NATO está unida?
Dia após dia, os meios de comunicação social repetem a mesma mensagem monótona: a NATO está unida. A Rússia está isolada. Mas será mesmo assim? Como vimos, a reunião dos países do G20 mostrou claramente que não é a Rússia, mas a América, que está cada vez mais isolada.
A maior parte do mundo não apoia os Estados Unidos nesta guerra. E mesmo nas fileiras da NATO, estão a surgir gradualmente divisões, que irão, sem dúvida, aprofundar-se com o passar do tempo.
Kemp escreve:
“Desde o início, apesar de fazerem muitas declarações acertadas e fornecerem algum equipamento militar, a França e a Alemanha, em particular, têm sido parceiros relutantes. Os seus líderes muitas vezes pareceram mais preocupados em encontrar uma «saída»’ para Vladimir Putin do que expulsar suas forças da Ucrânia.”
Já a 22 de janeiro, Simon Heffer escrevia no The Telegraph: “O principal medo da Alemanha parece ser que as luzes se apagarem e as suas fábricas fechem se os russos desligarem os seus fornecimentos de energia.”
Kemp queixa-se: “Agora, as sondagens na Europa e nos EUA mostram que o apoio público à ajuda militar a Kiev está a diminuir, com uma sondagem recente a indicar que menos de 50% dos americanos são a favor de gastos adicionais.”
A crise na Ucrânia
No Ocidente, há um descontentamento crescente com a guerra que se intensificará com o passar do tempo, e também uma crescente percepção de que nem tudo está bem na própria Ucrânia. Mesmo alguns dos belicistas mais empedernidos, como Richard Kemp, são obrigados a constatar algumas questões embaraçosas.
“Há também uma inquietação crescente sobre a corrupção ucraniana, amplificada pelas vozes que se opõem ao envolvimento americano na Europa por outras razões.“
Recentemente, soube-se que Volodymyr Zelensky demitiu todos os comissários militares regionais da Ucrânia por corrupção. Ele obviamente teme que tais escândalos minem o apoio ocidental à Ucrânia, que já dá sinais de enfraquecimento.
Estas medidas indicam o seu alarme crescente. Por exemplo, prendeu um magnata corrupto e ex-governador provincial Igor Kolomoisky e demitiu o ministro da Defesa Oleksii Reznikov.
Estas ações falam mais alto do que as palavras. Como é possível que, no meio de uma guerra, o Presidente de um país tenha de demitir o seu ministro da Defesa? Este deve ser um acontecimento sem precedentes. Imaginem que Winston Churchill tinha demitido o Marechal Montgomery em 1944. Tal coisa seria impensável.
Deve, pois, significar que o nível de corrupção é tão vasto e tão profundo, mesmo nos escalões superiores das forças armadas, que teve de ser tomada uma medida tão drástica. Mas não se fica por aí. A corrupção está entranhada no coração da oligarquia ucraniana, tal como o está no coração da oligarquia russa.
E tem ligações estreitas com a camarilha governante de Zelensky. Recorde-se que Igor Kolomoisky foi um aliado de longa data e apoiante de Zelensky. Mas todas estas medidas “anticorrupção” não passam de uma fachada, concebidas para impressionar os doadores ocidentais. Como Kemp é obrigado a admitir:
“Nada disso fará uma diferença significativa. Nenhum ajustamento estratégico pode inverter a guerra sem um aumento drástico da ajuda militar. E quer a corrupção seja ou não combatida, Olaf Scholz, Emmanuel Macron e, mais importante, Biden estarão a exercer pressão sobre Kiev para chegar a um acordo, mais cedo ou mais tarde.“
Haverá negociações?
No verão passado, Biden escreveu que os EUA estavam armando a Ucrânia para “lutar no campo de batalha e estar na posição mais forte possível na mesa de negociações“.
Esta foi a suposição de todos os estrategistas da política externa americana e dos seus conselheiros militares. A ofensiva que se aproximava foi, portanto, apresentada nos meios de comunicação social como uma marcha imparável e triunfante que, com a ajuda das armas mais avançadas fornecidas pelos EUA e seus aliados, cortaria as defesas russas como uma faca na manteiga.
Os “especialistas” ocidentais ficaram cegos pela sua própria propaganda, que apresenta os russos como incorrigivelmente estúpidos e incompetentes, com generais totalmente incapazes de corresponder aos elevados padrões de um exército moderno da NATO. Além disso, segundo eles, os russos estavam a ficar sem mísseis e munições e não seriam capazes de resistir.
Estes disparates repetiam-se incessantemente, dia sim, dia não, com uma regularidade entediante, como uma máquina bem lubrificada a produzir salsichas. Uma vez que a repetição é a Mãe da Aprendizagem, a maioria das pessoas no Ocidente, totalmente alheia às realidades no campo de batalha, aceitou estas mentiras como verdades dogmáticas.
O vitorioso exército ucraniano abriria um buraco nas defesas russas e logo se veria agitando a sua bandeira no Mar de Azov. As linhas de comunicação da Rússia com a Crimeia seriam cortadas e Moscovo encontrar-se-ia numa posição impossível. O triunfante governo de Kiev seria então capaz de ditar termos a uma Rússia derrotada e desmoralizada. Tal era o conto de fadas oficial. Mas isso foi rapidamente destruído pelos acontecimentos.
Alguns dos generais ucranianos, que, ao contrário dos especialistas da Casa Branca, tinham experiência real das capacidades de combate dos russos, levantaram objeções ao plano. Mas as objeções foram rapidamente anuladas. De facto, qualquer pessoa que nos meios de comunicação social britânicos que levante as mais pequenas reservas à narrativa oficial é rapidamente silenciada. Os seus artigos não são publicados e eles terão muita sorte de não serem rebaixados ou mesmo demitidos das suas posições.
O Ocidente – especialmente os americanos e britânicos – anulou todas as objeções. Do conforto de seus escritórios em Washington e Londres, eles estavam ansiosamente pressionando o governo de Kiev a lançar sua contraofensiva há muito anunciada – e, além disso, com a máxima força. Estavam dispostos a lutar até à última gota de sangue – sangue ucraniano, claro está.
Finalmente, Zelensky concedeu. Ele realmente não tinha muita escolha, já que quem paga a banda, determina a música. Mas a dura realidade foi cruelmente exposta no momento em que a ofensiva começou. E agora, nenhum observador sério pode ter dúvidas de que a ofensiva fracassou. E falhou de uma forma tão espetacular que dificilmente poderia ter sido prevista mesmo pelos céticos mais convictos.
O fracasso da contraofensiva significa que, longe de conseguir uma posição mais forte na mesa de negociações, o regime de Kiev está numa posição muito mais fraca do que antes. E, tendo vencido no campo de batalha, é pouco provável que Putin aceite compromissos.
Parece que os americanos estão a sugerir que, em troca da paz, a Rússia possa manter parte, ou a maioria, do território ucraniano que conquistou e, em troca, a adesão ucraniana à NATO será mantida permanentemente em espera.
Mas isto tem duas grandes dificuldades. Em primeiro lugar, apenas oferece à Rússia o que esta já ganhou. Em segundo lugar, a questão da adesão da Ucrânia à NATO não é abolida, mas apenas adiada sine die. Isso seria obviamente muito pouco para Moscovo, mas demasiado para Kiev.
Por essa razão, não parece que as negociações estejam na ordem do dia, pelo menos não tão cedo. A guerra arrastar-se-á, portanto, até se chegar a um ponto crítico, onde já não poderá continuar.
Por vezes, ouve-se falar de um “conflito congelado”, em que nenhum dos lados pode ganhar nada que se assemelhe a uma vitória decisiva. Mas isso pressupõe o que não pode ser assumido. Todos esses cálculos deixam de considerar o fator mais importante, que é o moral da população militar e civil.
A verdade pura e simples é que a Ucrânia não pode ganhar esta guerra. No plano mais básico, trata-se de um país muito mais pequeno do que a Rússia, o que tem uma incidência direta no equilíbrio de forças do ponto de vista dos recursos humanos.
“A Federação Russa concentrou mais de 420.000 militares nos nossos territórios que estão temporariamente ocupados, incluindo a Crimeia“, explicou o vice-chefe de inteligência Skibitskiy em uma conferência em Kiev.
O facto de terem um número tão elevado permite-lhes rodar tropas constantemente, o que certamente não é o caso dos ucranianos que perderam a maioria dos seus soldados experientes. Eles estão estacionados atrás da terceira linha de defesa, de onde os russos podem manter um ataque constante de artilharia e drones contra as forças ucranianas, que estão presas em campos minados.
As perdas do lado ucraniano são realmente impressionantes. Um grande número de jovens soldados sem formação ou semi-treinados está, de facto, a ser enviado para a morte naquilo que equivale a operações suicidas.
Os líderes ucranianos parecem ser tão indiferentes a esta criminosa perda de vidas, como foram os generais na Primeira Guerra Mundial. Mas, deixando de lado todas as considerações morais, de um ponto de vista puramente militar, esta política é simplesmente insustentável.
Mesmo supondo que os russos estão sofrendo grandes perdas (e os palpites sobre o número de mortes russas nos média ocidentais são tão credíveis quanto as alegações de que estão a ficar sem mísseis e munições), a Rússia pode sofrer perdas como a Ucrânia não pode.
A questão da moral
Todas as guerras chegam ao fim quando os principais objetivos do conflito de uma ou outra das potências beligerantes são alcançados, ou quando há um colapso da moral que torna impossível continuar lutando. Os acontecimentos recentes sugerem que esse colapso está a ser preparado na Ucrânia.
É verdade que as forças ucranianas têm lutado com incrível tenacidade e bravura. Mas as guerras nunca se ganham apenas com heroísmo. E foi o cúmulo da irresponsabilidade assumir – e tal suposição foi de facto feita tanto em Washington como em Kiev – que seria possível fazer um avanço dramático nas defesas da Rússia enviando bravos soldados para serem despedaçados em vastos e mortais campos minados.
É impossível dizer quantos jovens corajosos foram enviados para uma morte certa naqueles terríveis campos de extermínio. As imagens das vítimas são demasiado chocantes para serem contempladas. Os seus corpos mutilados fornecem um testemunho sombrio da inutilidade dessas tentativas e da irresponsabilidade criminosa daqueles que as ordenaram.
Um preço terrível foi pago em sangue pela ofensiva fracassada. E para quê? Alguns quilómetros aqui ou acolá, algumas estilhaçadas e desertas aldeias.
As notícias das derrotas na frente terão um efeito devastador à medida que forem sendo sentidas e conhecidas. A terrível perda de vidas afeta quase todas as famílias. Os jovens estão a ser recrutados à força e enviados para a frente com pouca ou nenhuma formação militar, tal como cordeiros para o abate.
Mas a ofensiva deve ser mantida a todo custo! A frente precisa de mais homens, sempre mais homens! Aqueles que caem devem ser constantemente substituídos por novas vítimas. Mas de onde vêm?
A propaganda patriótica começa a ter um som artificial oco à medida que cresce a perceção de que os sacrifícios exigidos pelo governo são muito maiores para alguns ucranianos do que para outros.
Naturalmente, o fardo recai mais pesadamente sobre as famílias dos pobres. Aqueles com recursos suficientes podem pagar um suborno que garante que seus filhos não terão que ir para o exército e podem desaparecer convenientemente através da fronteira para terras estrangeiras.
Os ricos escapam ao serviço militar pagando subornos luxuosos. Continuam a viver uma vida de luxo ocioso. Os pobres suportam todo o fardo da perda de vidas, do colapso dos padrões de vida, da inflação galopante, da corrupção desenfreada e do mercado negro.
Recentemente, Zelensky apelou aos países estrangeiros para que devolvam os cidadãos ucranianos que fugiram para o estrangeiro de modo a evitar o serviço militar. Estes factos são bem conhecidos da população e estão a provocar um sentimento crescente de injustiça.
“E os nossos galantes aliados? O que estão eles a fazer – aqueles que nos empurraram para esta guerra em primeiro lugar e nos encorajam a continuar a lutar «pelo tempo que for necessário?» E eles?”
Os americanos podem dar-se ao luxo de se sentarem nas suas confortáveis poltronas e verem ucranianos e russos matarem-se uns aos outros. Eles continuamente encorajam os ucranianos a lutarem, mas sem comprometer nenhuma das suas próprias tropas.
Inevitavelmente, os soldados ucranianos, cansados da guerra e chocados com os bombardeamentos, farão a pergunta óbvia: “por quanto tempo mais os americanos desejam lutar até à última gota do meu sangue?”
A desmoralização e o cansaço bélico irão inevitavelmente alastrar dos soldados para a população civil, que está a testemunhar a devastação sistemática do seu país.
A camarilha no poder não vê outra alternativa senão manter a pressão impiedosa sobre uma população exausta. Uma parte dos generais já exige a continuação da ofensiva para lá do Outono e até ao Inverno.
Mas, mais cedo ou mais tarde, chegar-se-á ao ponto crítico em que as pessoas já não aguentam mais. Quando esse momento chegar, a Ucrânia sofrerá um colapso catastrófico.
Trata-se, evidentemente, de apenas um cenário. Mas, neste momento, parece-me ser cada vez mais o mais provável.
Como poderia o Ocidente reagir à derrota?
Uma vitória russa seria um golpe humilhante para o Ocidente. Como poderia o Ocidente reagir? Este é um cenário que os chamados estrategas do Ocidente nunca se mostraram dispostos a contemplar.
Para eles, uma derrota ucraniana era impensável. Sua única perspectiva era uma derrota russa e a queda de Putin. Por conseguinte, não têm qualquer «plano B». Uma vitória russa encontrá-los-ia mergulhados em confusão, enquanto o regime bonapartista de Vladimir Putin seria temporariamente reforçado.
A possibilidade de uma resposta militar séria é praticamente nula. Aqui, a Rússia teria todas as cartas. Longe de ser enfraquecido pela guerra, o exército russo tem-se vindo a constituir numa formidável força de combate, não só em número, mas na qualidade do seu armamento, que, apesar de toda a jactância ocidental, é facilmente comparável ao melhor que a NATO possui – se não superior ao dela.
Apesar do fraco desempenho na primeira fase da guerra, o exército russo aprendeu muitas lições (como acontece com os exércitos em qualquer guerra). As suas tropas e quadros estão endurecidos pela batalha e a sua moral será reforçada pelo sucesso.
Não há absolutamente nenhuma maneira de a NATO, tal como está atualmente constituída, poder prevalecer contra a Rússia. Também não é provável que qualquer administração norte-americana consiga persuadir um público relutante a aceitar o empenhamento de um número significativo de tropas americanas numa guerra em solo europeu.
Com tal cenário, todas as divisões fervilhantes na aliança transatlântica viriam imediatamente à tona. A fação pró-guerra encontrar-se-ia isolada e desacreditada e os governos cairiam.
Os reacionários exigirão a constituição de forças da NATO como um seguro “contra a agressão russa”. Mas, em primeiro lugar, a Rússia não tem intenção de travar uma guerra contra qualquer país europeu. O seu objetivo central de guerra é impedir a Ucrânia de aderir à NATO e garantir a sua própria segurança, tornando a Ucrânia num país neutro.
Em segundo lugar, ainda não há sinais de que qualquer programa de rearmamento tenha sido seriamente abordado de ambos os lados do Atlântico. Não há indicação, por exemplo, de que a Alemanha esteja orçamentando para atingir o gasto mínimo de Defesa de 2% do PIB que a NATO exige, apesar das promessas. E o Reino Unido, apesar de toda a sua retórica belicosa, continua a fazer novos cortes no seu exército subdimensionado.
Os governos ocidentais devem abordar as prioridades internas, a começar pela crise do custo de vida. Mas como conciliar este objetivo com um programa de rearmamento?
A Crise económica e a guerra
A segunda opção que resta seria continuar a guerra económica destinada a minar a economia russa, “para enfatizar o preço de travar uma guerra agressiva”. Mas Kemp diz que esta variante é “altamente problemática”. É verdade.
As sanções impostas à Rússia falharam completamente no propósito de paralisar a economia russa e tiveram um efeito insignificante na capacidade de Putin de travar a guerra, como o New York Times comentou recentemente:
“A Rússia conseguiu superar as sanções e os controles de exportação impostos pelo Ocidente para expandir sua produção de mísseis além dos níveis anteriores à guerra, de acordo com autoridades americanas, europeias e ucranianas, deixando a Ucrânia especialmente vulnerável a ataques intensificados nos próximos meses.“
Por outro lado, estas sanções tiveram um efeito catastrófico na economia mundial. Ao cortar o fornecimento de gás e petróleo russos à Europa, as sanções aprofundaram a crise e aumentaram drasticamente a inflação, agravando enormemente a crise do custo de vida.
Um relatório recente afirma: “A inflação na zona euro manteve-se em 5,3% em agosto, o que é mais elevado do que o BCE esperava. Pior ainda, a economia está a derrapar, especialmente na Alemanha, o maior membro da união monetária.“
A economia estagnou, mas os preços continuam a subir rapidamente e não há saída à vista. E este problema não pode começar a ser resolvido enquanto a Rússia não for reintegrada na economia europeia.
Este facto é compreendido por um número crescente de políticos burgueses europeus, como o antigo Presidente francês Nicholas Sarkozy. Do seu ponto de vista de classe, ele pode ver o perigo de aumento do conflito de classes decorrente da crise econômica não resolvida.
A guerra na Ucrânia não causou a crise, mas serviu para exacerbar as contradições a todos os níveis. No entanto, como e assim que a guerra termine (e tem de acabar, mais cedo ou mais tarde), a perspectiva é de uma colossal intensificação da luta de classes à escala global. O barómetro da política mundial aponta para uma tempestade que se acumula.