O seguinte documento foi aprovado no Congresso Mundial da Corrente Marxista Internacional (CMI) de 2023. Aqui, oferecemos a nossa perspectiva e análise das principais tendências que estão a moldar a política mundial e a luta de classes neste período dramático de agonia mortal do capitalismo.
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Estamos vivendo um período dramático na história mundial. Em muitos sentidos, um período realmente único. Os estrategistas do Capital sabem disso muito bem. Como de costume, os mais astutos chegam a conclusões semelhantes às dos marxistas, embora com certo atraso e sem uma compreensão real da natureza dos problemas que descrevem, e muito menos das soluções.
Um bom exemplo é Larry Summers, um economista norte-americano que se desempenhou como o 71o Secretário do Tesouro dos Estados Unidos de 1999 a 2000 e que descreveu a situação da economia mundial da seguinte forma:
“Posso recordar momentos anteriores de igual ou mesmo maior gravidade para a economia mundial, mas não recordo momentos nos quais houvesse tantos aspectos separados e tantas contracorrentes como as que há agora.
“Vejam o que está se passando no mundo: um problema de inflação muito importante em grande parte do mundo, e certamente em grande parte do mundo desenvolvido; um importante ajuste monetário em marcha; um enorme choque energético, particularmente na economia europeia, que é tanto um choque real, óbvio, quanto um choque inflacionário; crescente preocupação com a formulação das políticas chinesas e com o desempenho econômico da China e, de fato, também uma preocupação por suas intenções com relação a Taiwan; e, logo, naturalmente, a guerra em curso na Ucrânia” (Financial Times, 6 de outubro de 2022).
Essas linhas descrevem de forma adequada a atual situação, que não mudou substancialmente desde que foram escritas. Os exemplos podem ser repetidos à vontade. Refletem fielmente o sentimento geral de pessimismo e desespero que se apoderou dos estrategistas do Capital, os quais podem ver o desastre que se avizinha, mas não têm uma ideia clara de como evitá-lo.
De fato, seria um exercício inútil buscar nos economistas burgueses algum tipo de explicação para o que ocorre. Não podem prever nem uma recessão nem um auge. Nunca entenderam o passado, então, por que deveriam entender o presente e ainda menos o futuro?
Na situação atual, só se pode chegar a uma intuição racional através do método do pensamento dialético: o método do marxismo. Isso nos dá uma vantagem colossal, diferenciando-nos de qualquer outra tendência na sociedade. É o que nos faz únicos. De fato, é a única coisa que nos dá o direito de existência como uma tendência separada e diferente no movimento dos trabalhadores.
Sobre os pontos de inflexão
A atual crise mundial representa claramente um ponto de inflexão em toda a situação. Mas também se poderia afirmar que 2008 também foi um ponto de inflexão. Isso é bastante correto, como também o foi 1973, a primeira recessão mundial desde a II Guerra Mundial.
De fato, há muitas situações que podem ser caracterizadas como pontos de inflexão, e podemos correr o risco de converter este conceito em algo sem sentido repetindo-o de forma irreflexiva.
No entanto, o conceito está muito longe de carecer de sentido. Pelo contrário, contém uma ideia muito profunda. É realmente uma forma de expressão da noção de Hegel da linha nodal de desenvolvimento, na qual uma série de pequenas mudanças (quantitativas) chega a um ponto crítico, onde se produz uma mudança qualitativa.
Cada ponto de inflexão tem características comuns com o passado, mas também tem suas próprias peculiaridades. O que é necessário é ressaltar as particularidades da situação e explicar as mudanças concretas que dela surgem.
A crise de 2008 tomou de surpresa os inúteis economistas burgueses. Para evitar um colapso nas mesmas linhas de 1929, a burguesia gastou enormes somas de dinheiro público para resgatar os bancos. Injetaram enormes quantidades de dinheiro na economia. As medidas de pânico que tomaram nesse momento foram necessárias para salvar o sistema. Mas tiveram consequências imprevistas e desastrosas.
A política da chamada flexibilização quantitativa assegurou que as taxas de juros se mantivessem extremamente baixas. Mas essa injeção massiva de capital fictício no sistema criou inevitavelmente toda uma série de pressões inflacionárias.
No entanto, isso não se tornou evidente de imediato como o resultado do colapso generalizado da demanda, incluídos o consumo familiar, o investimento empresarial e o gasto governamental. A queda dos salários e o aumento do desemprego estrangularam a demanda, que não poderia mais ser compensada com o crédito, uma vez que as pessoas já estavam enormemente endividadas.
No entanto, as pressões inflacionárias se expressaram no auge do mercado imobiliário e particularmente na explosão de especulação descontrolada nas bolsas de valores, junto a fenômenos como as criptomoedas, os NFT e outros engodos especulativos.
Os limites da globalização
Para compreender a situação atual é necessário partir das questões fundamentais. Sempre devemos ter presentes os dois principais obstáculos que impedem o pleno desenvolvimento das forças produtivas: por um lado, a propriedade privada dos meios de produção e, por outro, os limites asfixiantes do Estado-nação.
No entanto, o sistema capitalista é um organismo vivo, que pode desenvolver certos mecanismos de defesa para perpetuar sua existência. Marx explica no terceiro volume de O Capital as formas pelas quais a burguesia pode combater a tendência à queda da taxa de lucro. Uma das principais formas é aprofundando e ampliando o mercado através do crescimento do comércio mundial.
Há mais de 150 anos, O Manifesto Comunista apontava o domínio esmagador do mercado mundial. É esta agora a característica mais importante da época moderna.
O advento da globalização foi uma expressão do fato de que o crescimento das forças produtivas havia superado os estreitos limites do estado-nação. Ajudou aos capitalistas a superar, pelo menos parcialmente, os limites do mercado nacional durante um tempo.
Esta tendência recebeu poderoso impulso com o colapso da URSS e com a entrada da China na arena do mercado mundial capitalista. Outros países, não só os antigos satélites soviéticos na Europa Oriental, mas também a Índia, que havia estado se equilibrando entre a União Soviética e os EUA, também se alinharam.
Assim, de um golpe, centenas de milhões de pessoas ficaram enredadas na economia mundial capitalista, abrindo novos mercados e campos de investimento.
Isso (junto a uma expansão do crédito sem precedentes) foi uma das forças motrizes mais poderosas que impulsionaram a economia mundial nas últimas décadas. O aumento espetacular do comércio mundial teve como corolário o aumento do PIB mundial.
No entanto, a globalização não eliminou as contradições do capitalismo. Apenas as reproduziu em escala muito maior. E agora isso claramente chegou aos seus limites.
O rápido crescimento da produção se baseou na expansão ainda mais rápida do comércio mundial. Agora, claramente, a globalização está se estancando e vemos o processo contrário. E o que enfrentamos são as consequências dessa marcha atrás. O comércio mundial só crescerá 1% em 2023, segundo a Organização Mundial do Comércio.
Em vez da livre circulação de bens e serviços, estamos vendo uma descida rápida ao nacionalismo econômico. E esse é um paralelo muito alarmante com a década de 1930. Foi precisamente o aumento das tendências protecionistas, o aumento das tarifas alfandegárias, as desvalorizações competitivas e políticas similares de empobrecimento do vizinho a verdadeira causa da Grande Depressão. Não se exclui em absoluto que uma situação similar possa voltar a acontecer.
Distorções do mercado
Em uma economia capitalista de mercado, em última análise, as forças do mercado decidem. As ações dos governos podem distorcer e atrasar as forças do mercado, mas nunca poderão eliminá-las. A verdade é que as economias capitalistas avançadas nunca se recuperaram da crise capitalista global de 2007-2009.
O investimento privado continuou débil e o crescimento econômico, raquítico. Por outro lado, a inflação era baixa e os bancos centrais mantiveram as taxas de juros em níveis baixos sem precedentes, ampliando o controle do capital financeiro sobre a vida econômica. Isso proporciona a chave para entender a crise atual.
Às vésperas da pandemia, a Reserva Federal, o BCE e o Banco do Japão tinham a assombrosa quantidade de $15 trilhões em ativos financeiros, frente aos $3,5 trilhões de 2008. A isso agregaram outros $6 trilhões durante a pandemia em uma tentativa de manter a economia flutuando.
Grande parte disso era dívida do governo que os bancos haviam comprado para manter baixos os custos de endividamento do governo. O nível de endividamento, que já era bastante insustentável, aumentou enormemente à medida que os governos tomavam emprestadas grandes somas para pagar as medidas de enfrentamento da crise.
Esse estímulo governamental sem precedentes (resgates) e as quarentenas cegaram temporariamente os padrões de demanda dos consumidores provocando caos nas cadeias de suprimento, ao mesmo tempo que atiçava o fogo da inflação. As implicações inflacionárias de tudo isto deveriam ter sido visíveis para o mais cego dos cegos. Mas o ignoraram, na base do princípio de que:
“Onde a ignorância é felicidade, é uma loucura ser sábio”
Assim como um dependente de drogas se torna cada vez mais dependente das substâncias que oferecem uma sensação imediata de euforia, os governos, as empresas e as famílias se submeteram à perspectiva de intermináveis taxas de juros próximas a zero.
As distorções criadas pela intervenção estatal só servem para agravar as contradições que finalmente se desencadearão com força e violência redobrada.
É exatamente isto o que estamos presenciando neste momento. Em um ato de desespero, os governos tentaram resolver, primeiro a crise de 2008, depois a pandemia de Covid e agora a crise energética gastando grandes quantidades de dinheiro que não possuíam, contribuindo à atual situação caótica da economia mundial.
O retorno da inflação
Isto significa o desaparecimento de um sistema financeiro que se habituou a taxas baixas de inflação e de juros. E os efeitos são dramáticos e dolorosos. Como o dependente privado das drogas que consumia, agora os governos se encontram repentinamente abalados ao enfrentar o elevado custo dos empréstimos.
Visto que não têm absolutamente nenhuma compreensão da autêntica teoria econômica, os burgueses buscam desesperadamente a alguém a quem culpar por sua situação difícil, e encontram um bode expiatório adequado em Vladimir Putin. Mas a guerra na Ucrânia não foi a causa da catástrofe inflacionária. Apenas levou mais lenha ao fogo.
Dialeticamente, a causa se converte em efeito e o efeito, por sua vez, se converte em causa. Embora a guerra não tenha provocado a crise, é verdade que exacerbou enormemente o problema da inflação e perturbou o comércio mundial.
Clausewitz fez a famosa afirmação de que a guerra é apenas a continuação da política por outros meios. Mas o imperialismo norte-americano introduziu uma ligeira modificação a essa definição profundamente correta. Converteu o comércio em uma arma, castigando deliberadamente qualquer país que não se dobre à sua vontade.
Nos longínquos dias em que a Grã-Bretanha governava os mares, o imperialismo britânico resolvia seus problemas enviando suas canhoneiras. Washington envia uma carta do Departamento de Comércio. De forma que, nas condições modernas, o comércio se converte simplesmente na continuação da guerra por outros meios.
A Rússia, um dos maiores exportadores de combustíveis fósseis, foi deliberadamente excluída de seus mercados ocidentais pelas sanções impostas pelo imperialismo norte-americano e aprovadas pela UE. Isto provocou instantaneamente uma crise energética, o que deu um novo impulso ao aumento dos preços.
Como veremos, as sanções impostas pelo imperialismo norte-americano fracassaram notavelmente em seu objetivo, que era o de paralisar a economia russa e minar suas operações militares na Ucrânia. Mas deram um novo e poderoso impulso à espiral inflacionária em todo o mundo. E, ironicamente, como um bumerangue sem controle, isto também golpeou duramente aos Estados Unidos, perturbando dessa forma todos os cálculos de Biden, enquanto Putin embolsava silenciosamente os ganhos derivados dos altos e crescentes preços do petróleo e do gás.
Todos os caminhos conduzem à ruína
Os bancos centrais enfrentam um sério dilema. Subiram as taxas de juros para frear a demanda e, portanto (isso esperam), reduzir a inflação. Essa foi a teoria que induziu à Reserva Federal dos EUA a subir os juros, o que obrigou à maioria das autoridades monetárias a fazer o mesmo.
Tais medidas, por si mesmas, não podem proporcionar uma cura segura à sífilis da inflação, mas, com segurança, farão com que a recessão se torne inevitável. Isso significa empresas em bancarrota, fechamento de fábricas, perdas de empregos e reduções selvagens nos níveis de vida.
Essa é uma receita pronta e acabada para a intensificação da luta de classes e para uma feroz reação política. Significa saltar da frigideira direto para o fogo.
Ademais, uma vez que a economia entre na ladeira escorregadia da recessão, será difícil deter a espiral descendente de causa e efeito que termina em uma depressão profunda, da qual lhes será muito difícil sair.
Todo o mundo enfrentará assim um período prolongado de estancamento econômico e de queda do nível de vida, com consequências sociais e políticas explosivas. Em outras palavras, sob o sistema capitalista todos os caminhos conduzem à ruína.
Lenha na fogueira
É impossível precisar o ritmo dos acontecimentos. Há demasiados elementos acidentais nesta equação. Mas há uma série de coisas que podemos afirmar com segurança. Em particular, tudo isso produzirá inevitavelmente um impacto na consciência.
Este é acima de tudo o caso da crise do custo de vida. Para muitas pessoas, esta é uma questão de vida ou morte. É o caso particularmente na África, Ásia e América Latina. Mas esses efeitos não se limitam de forma alguma aos países atrasados. São sentidos cada vez mais nos países capitalistas avançados da Europa e da América do Norte.
Repentinamente, as massas na Europa em particular se encontram enfrentadas ao autêntico pesadelo do colapso dos níveis de vida: os salários, que estavam contidos em níveis muito baixos, foram levados a novos mínimos sem precedentes pela inflação galopante. As pensões e as poupanças se desvalorizaram rapidamente. As famílias enfrentam o doloroso dilema de escolher entre aquecer seus lares ou alimentar seus filhos.
Os idosos, os enfermos e as pessoas mais vulneráveis da sociedade estão agora em risco mortal na medida que os governos reduzem os gastos nos serviços sociais. E pela primeira vez em muitas décadas, a classe média enfrenta a ruína.
As pequenas empresas estão sendo levadas à bancarrota por uma combinação venenosa de inflação, aumento das taxas de juros, aluguéis e pagamento de hipotecas. E, à medida em que a recessão se estabeleça, o fechamento de fábricas significará um forte aumento do desemprego e uma queda da demanda, o que provocará mais quebras.
A crise que os capitalistas enfrentam é muito profunda. As contradições são demasiado grandes para serem resolvidas sobre uma base capitalista. Não podem repetir as políticas monetárias do período anterior.
Gastaram toda a munição tentando resolver a última crise. Ademais, essas táticas são as responsáveis pela criação da enorme montanha de dívida que paira sobre o mundo como uma avalanche ameaçadora.
Agora se verão obrigados a cambalear de uma crise para outra, sem as armas necessárias para enfrentá-las. De uma forma ou de outra, cedo ou tarde, as dívidas terão que ser pagas. E a fatura será apresentada aos que menos a podem pagar.
Mas isto, por sua vez, está jogando gasolina no fogo da luta de classes. Depois de um longo período de queda dos níveis de vida, a paciência com a austeridade se esgotou e as tentativas de impor novas medidas de austeridade provocarão uma resistência feroz.
Tudo isso apresenta um panorama alarmante para a classe dominante. Já se iniciaram uma fermentação generalizada e um questionamento geral da ordem estabelecida. Existe o potencial não só de uma reação violenta dos trabalhadores em todos os lugares, mas também de uma reação em massa contra o mercado, o sistema capitalista e todas as suas obras entre amplas camadas da sociedade.
Economia mundial
Durante muitos meses as páginas da imprensa financeira estiveram carregadas dos prognósticos mais pessimistas. Cresce a sensação de que a ordem mundial está ficando de cabeça para baixo à medida que a globalização se converte em seu oposto e a velha estabilidade está sendo rompida pela guerra na Ucrânia e pelo caos resultante no mercado energético.
Os temores dos estrategistas do Capital se refletiram em um discurso na Universidade de Georgetown, pronunciado por Kristalina Georgieva, atualmente diretora gerente do FMI. Ela advertiu que:
“A velha ordem, caracterizada pela aderência às regras globais, às baixas taxas de juros e à baixa inflação, está dando passagem a uma nova em que ‘qualquer país pode ser desviado de seu curso com maior facilidade e maior frequência’.
“Estamos experimentando uma mudança fundamental na economia global, de um mundo de relativa previsibilidade… a um mundo com mais fragilidade, maior incerteza, maior volatilidade econômica, confrontos geopolíticos e desastres naturais mais frequentes e devastadores.”
Os mercados financeiros do mundo oferecem uma indicação clara da profundidade da crise. Segundo The Economist:
“Os alvoroços nos mercados são de uma magnitude que nunca se viu em uma geração. A inflação mundial é de dois dígitos pela primeira vez em quase 40 anos. Tendo tardado em responder, a Reserva Federal agora está aumentando as taxas de juros em um ritmo mais rápido desde a década de 1980, enquanto o dólar se encontra em seu ponto mais forte durante duas décadas, causando o caos fora dos Estados Unidos. Se tens uma portifólio de investimentos ou uma pensão, este ano foi espantoso. As ações globais caíram 25% em dólares, o pior ano desde pelo menos a década de 1980, e os bônus do governo estão a caminho de seu pior ano desde 1949. Junto a uns 40 trilhões de dólares em perdas, existe uma sensação de mal-estar de que a ordem mundial está desmoronando à medida que a globalização dá marcha atrás e o sistema energético se fratura depois da invasão da Ucrânia pela Rússia.”
Este nervosismo nos mercados é um barômetro certeiro do naufrágio da confiança dos investidores, que veem como nuvens trovejantes se lançam sobre a economia mundial.
A subida imparável do dólar
Grande parte do problema é a subida imparável do dólar. Mais que uma expressão de confiança na solidez da economia norte-americana, isto é uma indicação do grau de pânico que se apodera dos mercados.
O dólar subiu consideravelmente, em parte porque o FED está subindo as taxas, mas também porque os investidores estão se afastando do risco. Os investidores nervosos buscam refúgio seguro para o seu dinheiro e imaginam que o encontraram no dólar todo-poderoso.
Mas o aumento do dólar é, por si mesmo, um fator na crise dos mercados monetários do mundo, esmagando todos os demais em seu abraço de ferro. É fora dos EUA onde os efeitos financeiros do endurecimento monetário do FED têm seus impactos mais severos e daninhos. Como assinalou o Financial Times:
“Diga o que se diga, as vítimas do dólar forte têm um culpado em mente: a Reserva Federal”
De fato, a Reserva Federal dos EUA, até o último momento, teve uma indiferença relaxada, melhor dizer melancólica, para com a inflação, que, de acordo com a norma aceita, supostamente havia sido derrotada.
Mas quando a luz vermelha começou a piscar violentamente, a Reserva Federal se viu repentinamente em meio ao pânico, impulsionando um aumento atrás do outro da taxa de juros, apesar de que isto equivalia a pisar bruscamente nos freios do veículo.
As subidas das taxas do FED estavam empurrando a própria economia dos EUA a uma recessão. Era essa precisamente a intenção. Todos os indicadores são negativos. Os preços da habitação estão caindo, os bancos estão despedindo pessoal e FedEx e Ford, duas referências econômicas, emitiram advertências sobre lucros. É só uma questão de tempo antes que a taxa de desemprego comece a subir.
A subida irresistível do dólar se converte imediatamente em um importante fator de desestabilização. Os investidores internacionais estão alarmados ante a perspectiva de que a Reserva Federal dos EUA aumente as taxas de juros de forma tão agressiva que a maior economia do mundo caia em recessão. Isto agravará a recessão que outras economias já enfrentam e arrastará também o restante do mundo.
Seus temores são bem fundados. Em todo o mundo, a subida do dólar está elevando o custo das importações, bem como o custo dos pagamentos da dívida dos governos, das empresas e dos lares que tomaram empréstimos denominados em dólares. Todos os demais países se veem obrigados a marchar sob o passo da Reserva Federal dos EUA, aumentando as taxas de juros nos níveis ditados por ela.
Em toda a Ásia, os governos se viram obrigados a aumentar os juros e a gastar suas reservas para resistir à depreciação de suas moedas. Índia, Tailândia e Singapura interviram nos mercados financeiros para respaldar suas moedas. Com exceção da China, as reservas de divisas dos mercados emergentes caíram mais de 200 bilhões de dólares no último ano, segundo o Banco JPMorgan Chase – a queda mais rápida em duas décadas.
Isso tem sérias repercussões, não só econômicas como também políticas. A China respondeu projetando sua própria moeda como um meio alternativo de comércio, particularmente no petróleo.
Enormes dívidas governamentais
As economias endividadas da zona do euro foram empurradas implacavelmente até a borda da bancarrota. Agora se encontram em uma posição ainda pior do que a que existia na crise da dívida soberana há uma década.
Josep Borrell, chefe de política externa da UE, advertiu que o FED estava exportando a recessão da mesma forma que as decisões da Alemanha, posteriores a 2008, impuseram a crise do euro.
“Grande parte do mundo está agora em risco de se converter numa Grécia”, lamentou-se.
Na Europa, a situação piorou muito quando a Grã-Bretanha lançou gasolina no fogo com uma política fiscal temerária, que provocou imediatamente o pânico nos mercados financeiros.
A necessidade se revelou através de um acidente. A crise na Grã-Bretanha e as medidas de redução de impostos da efêmera administração Truss, em outubro de 2022, agiram como um catalisador, provocando o pânico nos mercados financeiros, que facilmente poderia ter se espalhado a todo o sistema monetário mundial.
Isto foi recebido com uma mistura de ira, incredulidade e alarme por parte dos mercados monetários internacionais. De fato, Liz Truss lançou uma granada de mão sobre um barril de TNT que já estava a ponto de explodir ao menor abalo.
O FMI lançou um ataque mordaz contra o plano do Reino Unido de implementar 45 bilhões de libras esterlinas de cortes de impostos financiados com a dívida. Funcionou. O governo de Truss se viu obrigado a uma retirada humilhante. O ministro da Fazenda, Kwasi Kwarteng, foi despedido e todo o seu orçamento foi descartado. Pouco depois, a própria Truss foi expulsa do cargo e os mercados se estabilizaram temporariamente. Mas o dano já estava feito.
Uma vez perdida a credibilidade financeira é bastante difícil de restaurar e a reputação da Grã-Bretanha como potência mundial agora está no esgoto. O Reino Unido, que anteriormente desfrutava de uma qualificação creditícia exemplar, agora foi degradado e é considerado no mesmo nível da Itália, sobrecarregado pela dívida e propenso às crises.
Mas esse foi o resultado menos importante dessa questão. As implicações se espalharam muito além das costas britânicas.
O alarmante paralelo com a década de 1930
O Brexit foi o indicador mais claro das consequências do nacionalismo econômico. E a conduta do governo britânico neste assunto serviu como advertência de suas perigosas consequências.
O breve e ruinoso mandato de Liz Truss na Grã-Bretanha demonstrou que pedir emprestado muito dinheiro em um momento de inflação e de aumento das taxas não é uma opção. Mas, qual é a alternativa?
Larry Summers, cujo alarme ante a situação atual já mencionamos, foi citado no Financial Times ao dizer:
“A desestabilização provocada pelos erros britânicos não se limitará à Grã-Bretanha.”
E este é o ponto. Os preços dos bônus em países tão diferentes como os EUA e a Itália se desviaram violentamente em resposta à cada volta do parafuso da intrincada história que repercutia de Londres.
Isso não foi um acidente. Um colapso financeiro em Londres, que, apesar do declínio da Grã-Bretanha, continua sendo um dos centros financeiros mais importantes do mundo, poderia produzir o mesmo efeito que a crise de 1931, só que em escala muito maior.
Embora geralmente agora esteja esquecida, a Grande Depressão na Europa foi provocada pelo colapso do banco Creditanstalt de Viena, em maio de 1931, que iniciou um efeito dominó que se espalhou rapidamente pelos mercados financeiros da Europa e mais além.
Este foi o detonante da grande espiral deflacionária na Europa entre 1931 e 1933. E a história pode se repetir facilmente, sobretudo porque a economia mundial está hoje muito mais integrada e interdependente que então.
O fator ucraniano
A guerra na Ucrânia se converteu agora em um importante fator nas perspectivas mundiais. No entanto, para se ter uma ideia clara dos problemas envolvidos e de como poderiam se desenvolver, é necessário concentrar nossa atenção nos processos fundamentais e não nos distrairmos com a ruidosa guerra informativa ou com as inevitáveis vicissitudes no campo de batalha.
Os principais meios de comunicação repetiram constantemente afirmações sobre a derrota da Rússia. Mas isso não se encaixa com os fatos conhecidos.
O ponto mais importante é que esta é uma guerra indireta entre a Rússia e o imperialismo norte-americano. A Rússia não luta contra um exército ucraniano, mas contra um exército da OTAN, isto é, o exército de um Estado que não é formalmente membro dessa aliança, mas que está sendo financiado, armado, treinado e equipado pela OTAN, que também lhe proporciona apoio logístico e informação vital.
“Política por outros meios”
Como foi assinalado, a guerra é apenas a continuação da política por outros meios. A atual guerra terminará quando forem satisfeitos os objetivos políticos dos atores fundamentais ou quando um ou ambos os lados fiquem esgotados e percam a vontade de seguir lutando.
Quais são esses objetivos? Os objetivos bélicos de Zelensky não são nenhum segredo. Diz ele que não ficará conformado com nada menos que a expulsão completa do exército russo de todas as terras ucranianas, incluída a Crimeia.
Este ponto de vista foi apoiado com entusiasmo pelos falcões da coalizão ocidental: os polacos, os suecos e os líderes dos Estados bálticos – que têm seus próprios interesses em mente – e, naturalmente, pelos chauvinistas e belicistas de cabeça dura de Londres, que imaginam que a Grã-Bretanha, inclusive em seu atual estado de bancarrota econômica, política e moral, continua sendo uma potência importante em escala mundial.
Essas damas e cavalheiros transtornados estiveram pressionando os ucranianos para que fossem ainda mais longe, muito além do que gostaria aos norte-americanos. Seu desejo mais ardente é ver o exército ucraniano expulsar os russos, não só do Donbass, mas também da Crimeia, provocando a derrubada de Putin, a derrota e o desmembramento total da Federação Russa (embora não costumem falar disso em público).
Embora façam muito ruído, nenhuma pessoa séria presta a menor atenção às palhaçadas dos políticos de Londres, Varsóvia e Vilnius. Como líderes de estados de segunda categoria, que carecem de peso real na balança da política internacional, continuam sendo atores de segunda categoria que nunca podem desempenhar mais que um papel subalterno neste grande drama.
Sãos os EUA os que pagam as contas e ditam tudo o que ocorre. E, pelo menos, os estrategistas mais sóbrios do imperialismo ianque sabem que todo este delírio não é mais que fogos de artifício. Sob certas condições, estados imperialistas menores podem desempenhar um certo papel no desenvolvimento dos eventos, mas, em última instância, é Washington que decide.
Apesar de todas as demonstrações públicas de bravatas, os estrategistas militares mais sérios já entenderam que é impossível que a Ucrânia derrote a Rússia. O general Mark A. Milley é o vigésimo presidente do Estado Maior Conjunto, é o oficial militar de mais alta patente dos EUA. Portanto, suas opiniões devem ser levadas a sério quando diz:
“Então, em termos de probabilidade de uma vitória militar ucraniana, considerada como a expulsão dos russos de toda a Ucrânia para incluir o que definem ou que sua exigência é a Crimeia – a probabilidade de que isso aconteça logo em termos militares não é alta.”
O ponto mais importante a se entender é que os objetivos de guerra de Washington não coincidem com os objetivos de guerra dos homens de Kiev, que há muito entregaram sua chamada soberania nacional ao seu Chefe do outro lado do Atlântico, e não decidem nada por si mesmos.
O objetivo do imperialismo norte-americano não é defender, e nunca foi, uma única polegada do território ucraniano ou ajudar aos ucranianos a ganhar uma guerra, seja de que forma for.
Seu objetivo real é muito simples: debilitar militar e economicamente a Rússia, para sangrá-la e lhe infligir danos; matar seus soldados e arruinar sua economia, para que a Rússia não possa mais oferecer nenhuma resistência ao domínio norte-americano na Europa e no mundo.
Foi este o objetivo que os induziu a empurrar os ucranianos a um conflito completamente desnecessário com a Rússia sobre a Ucrânia pertencer ou não à OTAN. Havendo estimulado o conflito, sentaram-se e observaram, a uma distância segura de vários milhares de quilômetros, o espetáculo dos dois bandos lutando.
Independentemente de todos os seus protestos públicos, os hipócritas imperialistas são totalmente indiferentes aos sofrimentos do povo da Ucrânia, a quem consideram meros peões no tabuleiro de xadrez local de sua disputa de poder com a Rússia.
E se deve levar em consideração que, até o dia de hoje, a Ucrânia não foi admitida como membro da UE ou da OTAN, o que se supunha ser a questão central de todo o assunto. Isso não é acidental.
O atual conflito convém aos interesses dos EUA de muitas formas. É uma ajuda ao seu objetivo de abrir uma brecha entre a Europa e a Rússia, o que coloca a primeira sob o seu domínio. Neste sentido, a guerra já logrou alguns resultados. Os vínculos econômicos entre a UE e a Rússia, particularmente em relação à energia, foram severamente rompidos, o que golpeia significativamente a maior economia da UE, a Alemanha. O trânsito do gás natural através do Báltico é agora inviável por conta da destruição do gasoduto Nord Stream por sabotagem de agências estatais. O aumento dos custos energéticos permite aos EUA pressionar ainda mais a indústria da UE, sobretudo na Alemanha. Os EUA têm o luxo de envolver seu inimigo em uma guerra na qual não participam soldados dos EUA (pelo menos teoricamente) e todos os combates e mortes correm à custa dos outros.
Se a Ucrânia fosse membro da OTAN, isto significaria que as tropas de combate dos EUA se envolveriam em uma guerra europeia, lutando contra o exército russo. Por outro lado, importantes países europeus não têm nem o interesse nem a possibilidade de admitir a Ucrânia na UE. Isto significaria o colapso do equilíbrio econômico e político da União, que já é por si mesmo extremamente frágil. Não, nada disso, muito melhor deixar as coisas como estão.
Quando Zelensky se queixa de que seus aliados ocidentais não lhe enviam as armas que necessita para ganhar a guerra, não está equivocado. Os norte-americanos enviam-lhe as armas suficientes para que a guerra continue, mas não as suficientes para lograr algo que se assemelhe a uma vitória decisiva. Isso está completamente em linha com os verdadeiros objetivos de guerra dos EUA.
As sanções fracassaram
As sanções impostas à Rússia depois da invasão da Ucrânia foram um fracasso espetacular. De fato, o valor das exportações russas cresceu desde o início da guerra.
Embora o volume das importações da Rússia tenha caído devido às sanções, vários países (China, Índia, Turquia, e também alguns outros que fazem parte da UE, como a Bélgica, a Espanha e os Países Baixos) aumentaram o seu comércio com a Rússia. Ademais, os altos preços do petróleo e do gás compensaram as receitas que a Rússia perdeu devido às sanções. A Índia e a China estiveram comprando muito mais do petróleo russo, embora com descontos no preço.
Dessa forma, a perda de receitas resultante das sanções se viu compensada pelo aumento do preço do petróleo e do gás nos mercados mundiais. Vladimir Putin continua financiando seus exércitos com os ganhos, enquanto o Ocidente enfrenta a perspectiva de instabilidade energética durante os próximos anos, com faturas altíssimas de energia e uma crescente ira pública.
Enfraquecimento do apoio
A questão é: que bando se cansará primeiro da guerra? Está claro que o tempo não está do lado da Ucrânia, nem do ponto de vista militar nem do ponto de vista político. E, em última instância, este último ponto de vista pesará mais na balança.
O inverno anterior, durante o qual a Europa sofreu uma grave escassez de gás e eletricidade, terá debilitado o apoio público à guerra na Ucrânia. O clima mais cálido não será um alívio, visto que a atenção se centra agora no problema impossível de se voltar a abastecer as reservas de gás a tempo para o inverno que se avizinha, sem poder contar com o abastecimento russo. A cada mês que continuam as sanções, a preocupação com o inverno iminente cresce. O apoio dos EUA tampouco pode se dar por contado. Em público, os norte-americanos mantêm a ideia de seu inquebrantável apoio à Ucrânia, mas, privadamente, não estão nada convencidos do resultado. Entre bastidores, Washington esteve pressionando Zelensky a negociar com Putin.
No entanto, na prática, o êxito da ofensiva ucraniana de setembro de 2022 e a retirada russa de Kherson complicaram a situação no tabuleiro diplomático.
Por um lado, Zelensky e as forças raivosamente nacionalistas e abertamente fascistas no aparato do Estado estavam radiantes com seus inesperados êxitos e queriam chegar ainda mais longe. Por outro lado, os reveses militares representaram um golpe humilhante para Putin, que chegou à conclusão de que tinha que intensificar sua “operação militar especial”. Dessa forma, nenhum dos lados está disposto a negociar algo significativo no momento. Mas isso mudará.
A demagogia de Zelensky, repetindo constantemente que nunca cederá uma só polegada de terra, está claramente projetada para pressionar a OTAN e o imperialismo EUA, insistindo em que os ucranianos lutarão até o final, sempre na condição de que o Ocidente continue enviando enormes quantidades de dinheiro e armas.
Biden gostaria de prolongar o conflito atual para debilitar e minar a Rússia. Mas não a qualquer preço, e menos ainda se isso implicar em um enfrentamento militar direto com a Rússia. Enquanto isso, as pesquisas de opinião mostram que, na opinião pública ocidental, o apoio à guerra na Ucrânia está declinando lentamente.
Guerra nuclear?
A insinuação de Putin de que poderia considerar o uso de armas nucleares foi quase, com toda segurança, um blefe, mas causou alarme na Casa Branca. Em um discurso em um ato de arrecadação de fundos em Nova Iorque, Biden afirmou que o presidente russo “não estava brincando” sobre o “possível uso de armas nucleares táticas ou de armas biológicas ou químicas porque o seu exército está, poder-se-ia dizer, significativamente abaixo de suas possibilidades”.
À raiz da ameaça nuclear, começaram a ser celebradas negociações secretas entre Washington e Moscou. Este foi o beijo da morte para o bando ucraniano, que cada vez mais estava desesperado e buscava qualquer desculpa para realizar uma provocação com a qual esperava arrastar finalmente a OTAN à participação direta na guerra.
Isso enfatiza os riscos implícitos se se permitir que a guerra continue. Há demasiados elementos incontroláveis no jogo, que poderão dar lugar ao tipo de espiral descendente que poderia desembocar em uma guerra real entre a OTAN e a Rússia.
O risco deste tipo de acontecimentos se pôs de manifesto em novembro de 2022, quando o mundo ficou abalado ao ouvir a declaração do presidente da Polônia de que seu país havia sido alvo de mísseis de fabricação russa, e os meios de comunicação ocidentais afirmaram que a Rússia estava por trás disso.
Essa mentira ficou logo a descoberto quando o próprio Pentágono revelou que o míssil que atingiu um silo de grãos polaco em uma granja próxima ao povoado de Przewodow, junto à fronteira com a Ucrânia, foi disparado pelo exército ucraniano.
A OTAN e os polacos se apressaram a explicar que tudo havia sido “um lamentável acidente”. Mas, apesar de que o projétil era um míssil antiaéreo S-300 com um alcance muito limitado que dificilmente poderia ter sido disparado pela Rússia, Zelensky mentiu descaradamente e insistiu que havia sido um ataque deliberado a partir da Rússia. Esperava que lhe fosse dada uma poderosa alavanca para exigir mais armas e dinheiro. No melhor dos casos (desde o seu ponto de vista) poderia empurrar a OTAN a tomar medidas de represália contra a Rússia, o que proporcionaria interessantes consequências.
Se esse incidente tivesse servido para empurrar a OTAN a agir contra a Rússia, poderia ter desencadeado uma séria incontrolável de acontecimentos que poderia desembocar em uma guerra total. Não cabe a menor dúvida de que seria muito conveniente para Zelensky que a OTAN entrasse em guerra e tirasse dessa forma suas castanhas quentes do fogo.
Uma conflagração europeia geral seria um pesadelo para milhões de pessoas. Mas, para Zelensky e sua camarilha, teria sido uma resposta a todas as suas preces. Naturalmente, seria impossível que os norte-americanos se mantivessem à margem, esquentando as mãos nas chamas.
Teria que haver tropas americanas no terreno. Uma excelente notícia do ponto de vista do regime de Kiev, mas não em absoluto do ponto de vista da Casa Branca e do Pentágono. Supunha-se desde o início que tal coisa não faria parte do roteiro!
Os norte-americanos não têm a menor intenção de levar as coisas tão longe. Um confronto direto entre a OTAN e a Rússia, com todas suas implicações nucleares, será evitada a todo custo por ambos os lados. Precisamente por essa razão, os norte-americanos mantêm abertos vários canais, para evitar qualquer possibilidade de que se produzam acontecimentos tão incontroláveis. De fato, esforçam-se por colocar limites definitivos à guerra atual e por abrir o caminho às negociações.
Os EUA pedem negociações
Os estrategistas militares sérios de Washington veem a realidade da situação. O general Mark Milley, presidente do Estado Maior Conjunto, convocou Zelensky a iniciar negociações com a Rússia.
Milley disse que pode haver uma oportunidade de negociar o fim do conflito sempre e quando as linhas de frente fiquem estabelecidas durante o inverno:
“Quando houver uma oportunidade de negociar, quando se puder alcançar a paz, aproveitem-na”, disse Milley. “Aproveitem o momento.”
Mas se as negociações nunca chegam a se materializar ou fracassam, Milley afirma que os EUA continuariam armando a Ucrânia, embora a vitória militar absoluta de qualquer um dos lados pareça cada vez mais improvável.
“Tem que haver o reconhecimento mútuo de que a vitória militar é provavelmente, no verdadeiro sentido da palavra, talvez não alcançável por meios militares e, portanto, há que se recorrer a outros meios”, disse ele.
Esta é a verdadeira voz do imperialismo norte-americano. E é isso, e não as declarações retóricas de Zelensky, que determina em última instância o destino da Ucrânia.
Washington sempre se mostrou relutante a abastecer Kiev com o tipo de armamento avançado que esta última solicitava. Sua intenção é enviar um sinal a Moscou de que os EUA não estão dispostos a entregar armas que possam intensificar o conflito, criando a possibilidade de um enfrentamento militar direto entre a Rússia e a OTAN.
Também é uma advertência a Zelensky de que havia limites definidos à vontade dos EUA de continuar pagando a fatura de uma guerra custosa e sem um final claro no horizonte.
Cansaço ucraniano
Durante o primeiro mês da guerra, os ucranianos se mostraram dispostos a negociar com a Rússia. A partir de então, Zelensky rejeitou completamente a ideia de negociar. Disse em repetidas ocasiões que a Ucrânia só está disposta a travar negociações com a Rússia se suas tropas abandonarem todas as partes da Ucrânia, incluídas a Crimeia e as zonas orientais do Donbass, controladas de fato pela Rússia desde 2014, e se os russos que cometeram crimes na Ucrânia fossem levados aos tribunais.
Zelensky também deixou claro que não manteria negociações com os atuais dirigentes russos. Inclusive assinou um decreto no qual especificava que a Ucrânia só negociaria com um presidente russo que tenha sucedido a Vladimir Putin.
Essas desafiantes declarações causaram grande irritação em Washington. O Washington Post revelou que funcionários norte-americanos advertiram privadamente ao governo ucraniano que o “cansaço ucraniano” entre os aliados poderia aumentar se Kiev continua sem negociar com Putin.
Os funcionários declararam ao jornal que a posição da Ucrânia nas negociações com a Rússia está cansando os aliados, que estão preocupados com os impactos econômicos de uma guerra prolongada.
No momento em que escrevemos este documento, os EUA haviam concedido à Ucrânia 65 bilhões de dólares em termos de ajuda e estavam dispostos a dar mais, afirmando que apoiariam a Ucrânia “todo o tempo que fosse necessário”. No entanto, os aliados em algumas partes da Europa, para não falar da África e da América Latina, estão preocupados com a pressão que a guerra está exercendo sobre os preços da energia e dos alimentos, bem como sobre as cadeias de suprimento. “O cansaço com a Ucrânia é algo real para alguns de nossos aliados”, afirmou um funcionário norte-americano.
Naturalmente, os norte-americanos não podem admitir publicamente que estejam pressionando Zelensky. Pelo contrário, estão mantendo uma aparência de firme solidariedade à Kiev. Mas, na realidade, estão aparecendo sérias fissuras na fachada.
Para os dirigentes ucranianos, aceitar a petição norte-americana significaria uma retirada humilhante depois de tantos meses de retórica beligerante sobre a necessidade de uma derrota militar decisiva sobre a Rússia para garantir a segurança da Ucrânia no longo prazo.
A sucessão de êxitos no campo de batalha, primeiro na região nordeste de Kharkov e, depois, com a tomada de Kherson, animou Zelensky a acreditar na possibilidade de uma “vitória final”. Mas os norte-americanos conhecem melhor a realidade e sabem muito bem que o tempo não está necessariamente do lado da Ucrânia.
Corre Putin algum risco de ser derrubado?
A máquina de propaganda ocidental repete constantemente o mantra de que Putin será brevemente derrubado pelo povo russo que está cansado da guerra. Mas isso é apenas uma ilusão. Baseia-se num equívoco fundamental. Na verdade, Putin utilizou com sucesso a guerra para frear a crescente luta de classes e a insatisfação das massas. Juntamente com o aumento da repressão, isto proporcionou ao regime uma trégua temporária. Neste momento, Putin ainda tem uma base de apoio bastante ampla e esta base aumentou para novos níveis nos últimos meses. Ele não corre nenhum risco imediato de ser derrubado.
Não existe um só movimento anti-guerra significativo na Rússia e o que existe é liderado e organizado por elementos liberais-burgueses. É essa precisamente sua principal debilidade. Os trabalhadores dão uma olhada nas credenciais pró-Ocidente desses elementos e se afastam, lançando maldições.
A guerra conta com o apoio da maioria, embora alguns tenham dúvidas. A imposição de sanções e o fluxo constante de propaganda anti-russa no Ocidente, e o fato de que a OTAN e os norte-americanos estão abastecendo armas modernas à Ucrânia, confirma a suspeita de que a Rússia está sendo assediada por seus inimigos. Algo que o regime utiliza para mobilizar a população.
Em sua propaganda de guerra, Vladimir Putin tenta invocar a memória da luta soviética contra a Alemanha nazi e o ódio de longa data do povo russo pelo imperialismo ocidental, que ele mistura com o grande chauvinismo reacionário russo. Ele enquadra a guerra na Ucrânia como uma guerra contra o imperialismo ocidental, pela desnazificação do regime de Kiev e pela defesa da minoria de língua russa na Ucrânia. Tudo isso é, obviamente, pura demagogia.
Não há absolutamente nada de progressista no regime de Putin. Ele não é anti-imperialista, nem antifascista, nem amigo dos trabalhadores. Não é segredo, por exemplo, que unidades com claras simpatias neonazistas e de extrema-direita operam abertamente como parte das forças armadas russas, em particular na Wagner PMC.
Com o Partido Comunista Russo assumindo uma posição traiçoeira, nacionalista e patriótica e oferecendo uma cobertura de esquerda ao grande nacionalismo russo de Putin, os trabalhadores russos não encontram alternativa política para representar os seus interesses em oposição ao regime e à sua guerra.
A única pressão sobre Putin não procede de qualquer movimento antibélico, mas, pelo contrário, dos nacionalistas russos e outros que querem que a guerra continue com maior força e determinação. No entanto, se a guerra se prolongar durante algum tempo, sem provas significativas de um êxito militar russo, isso pode mudar.
No início de novembro, mais de 100 recrutas da república russa de Chuvash organizaram um protesto em Ulyanov Oblast porque não haviam recebido os pagamentos prometidos por Putin.
Um pequeno sintoma, sem dúvida. Mas se o conflito atual se prolongar, poderia multiplicar-se em escala muito maior, o que suporia uma ameaça, não só para a guerra, mas para o próprio regime.
Um sintoma ainda mais significativo são os protestos das mães de soldados mortos na Ucrânia. São ainda de pequeno tamanho e se concentram principalmente nas repúblicas orientais como o Daguestão, onde os altos níveis de desemprego fizeram com que um grande número de jovens se apresentassem como voluntários ao exército.
Se a guerra continuar e aumentar o número de mortos, é possível que vejamos protestos de mães em Moscou e Petersburgo, os quais Putin não poderá ignorar e será incapaz de reprimir. Isto marcaria sem dúvida uma mudança em toda a situação. Mas ainda não se materializou.
As reservas da Rússia
Ao se oporem à guerra desde o seu início, os marxistas russos assumiram uma posição de princípio em condições de repressão extremamente difíceis e sob uma barragem de propaganda estatal. A sua tarefa é, antes de mais, expor a demagogia de Putin, que é apenas um disfarce para os interesses reacionários dos oligarcas capitalistas – o principal inimigo dos trabalhadores e pobres russos.
Ao mesmo tempo, devem se opor ao imperialismo ocidental, bem como aos liberais expatriados pró-Kiev e aos chamados meios de comunicação independentes, que atuam como seus porta-vozes na Rússia. Ir contra a corrente e manter hoje uma posição de classe independente irá preparar os marxistas russos para darem enormes passos à frente quando a maré começar a virar.
Embora a revolução não esteja imediatamente na agenda, a guerra está, sem dúvida, agitando questões profundas no seio do proletariado e preparando enormes convulsões sociais no futuro.
O objetivo declarado da Rússia era “impedir o ingresso na OTAN e desmilitarizar e desnazificar a Ucrânia”. Putin também queria um governo neutro ou pró-russo em Kiev. De fato, isso significaria eliminar a Ucrânia como Estado nacional independente.
Mas Putin claramente calculou mal e os russos não tiveram forças suficientes para lograr estes objetivos. Inclusive a tarefa de manter sua ofensiva no Donbass resultou difícil, como o demonstrou claramente a ofensiva ucraniana de princípios de setembro.
Mas os fracassos no front agiram como estímulo necessário para o reajuste. Foram tomadas medidas para a mobilização das forças necessárias.
A Rússia realizou uma mobilização massiva. O envio de 300 mil novos soldados russos ao front mudará drasticamente o equilíbrio de forças.
O argumento frequentemente repetido de que faltam munições aos russos é totalmente falso. A Rússia tem uma indústria armamentista grande e poderosa. Dispõe de consideráveis reservas de armas e munições.
É verdade que suas reservas dos mísseis mais modernos de precisão milimétrica são limitadas e se esgotarão. Mas não há escassez de outros mísseis, que são perfeitamente adequados para as atividades corriqueiras no campo de batalha.
Enquanto isso, os russos continuam pulverizando objetivos em toda a Ucrânia com artilharia, foguetes, drones e mísseis, destruindo centros de comando, centros de transporte e infraestruturas, o que dificultará seriamente o movimento de tropas e armas para o front.
E agora?
A afirmação de Napoleão de que a guerra é a mais complexa de todas as equações conserva toda sua força. A guerra é um quadro em movimento com muitas variáveis imprevisíveis e cenários possíveis.
O êxito da ofensiva ucraniana em setembro de 2022 e, posteriormente, a retirada russa da parte ocidental de Kherson pareciam confirmar a variante apresentada com confiança pela máquina de propaganda ocidental desde o início das hostilidades.
No entanto, devemos ter reservas com as conclusões impressionistas extraídas de um número limitado de acontecimentos. O resultado das guerras rara vez se decide em uma só batalha, ou mesmo em várias.
A questão é: esta vitória ou este avanço alteraram materialmente o equilíbrio subjacente de forças, que é a única coisa que pode determinar o resultado final? Estas conclusões fundamentais ainda estão por determinar. São possíveis diferentes resultados, a depender de como se desenvolvem as condições tanto na Rússia quanto na Ucrânia, e entre seus amos ocidentais.
A Rússia esteve acumulando forças no Leste, reforçando sua presença militar na Bielorrússia e intensificando seus bombardeios aéreos tanto sobre objetivos militares quanto sobre a já debilitada infraestrutura ucraniana.
Essa degradação das infraestruturas chegou ao ponto de que inclusive se fala em evacuar as principais cidades – incluída Kiev –, que estão se tornando inabitáveis como consequência da interrupção do abastecimento de energia e água.
É difícil determinar em que momento esta destruição começará a minar a vontade de resistência. A experiência histórica indica que os bombardeios aéreos por si sós nunca podem ganhar guerras.
De fato, no curto prazo, terá um efeito contrário, acentuando o ódio ao inimigo e aumentando o espírito de resistência. Mas tudo tem um limite. A partir de certo ponto, instala-se um sentimento geral de cansaço da guerra e a vontade de continuar lutando se debilita.
Até agora, os ucranianos demonstraram um notável nível de resistência. Mas não está claro por quanto tempo poderá ser mantido o moral tanto da população civil quanto dos soldados no front.
Mas logo que comece um clamor pela paz, explodirão divisões sérias na camada dirigente de Kiev entre os nacionalistas de direita, que desejam lutar até o amargo fim, e os elementos mais pragmáticos, que veem que uma maior resistência só conduzirá à destruição total da Ucrânia e que algum tipo de acordo negociado é a única saída.
Qualquer que seja o resultado, não se pode falar de uma volta ao status quo na Europa. Nasceu um novo período de extrema instabilidade, de guerras, guerras civis, revoluções e contrarrevoluções.
Relações mundiais
O mundo está experimentando mudanças que se assemelham aos dramáticos deslocamentos das placas tectônicas na geologia. Esses deslocamentos sempre vêm acompanhados de terremotos.
Essas mudanças políticas e diplomáticas têm o mesmo resultado. Já antes da guerra, o retrocesso da globalização e o consequente auge do nacionalismo econômico também provocaram a exacerbação dos conflitos entre as diferentes potências.
Mas o conflito ucraniano exacerbou enormemente todas as tensões e aprofundou todas as contradições. Como consequência de tudo isso, estamos vendo uma mudança profunda nas relações mundiais.
O sinal mais evidente disso é o fato de que a China se aproximou muito mais da Rússia, visto que ambas concorrem com o imperialismo norte-americano. O sinal mais evidente disto é o fato de a China se ter aproximado muito da Rússia, uma vez que ambas estão em concorrência com o imperialismo dos EUA. O papel chinês na guerra da Ucrânia foi disfarçado sob o pretexto de defender uma “paz negociada”. Para a classe dominante chinesa, esta guerra é uma perturbação indesejável das relações comerciais benéficas que construiu ao longo dos últimos 30 anos, uma vez que ainda não se sente preparada para enfrentar frontalmente o seu rival norte-americano.
Contudo, por trás deste suposto pacifismo existe uma linha vermelha clara: a inadmissibilidade de uma desestabilização da Federação Russa como resultado de uma derrota militar. Uma tal derrota expandiria a influência do imperialismo norte-americano e faria com que a China perdesse um parceiro valioso no seu conflito estratégico com os EUA e os seus aliados. É claro que, sem a ajuda chinesa para contornar as sanções ocidentais, a Rússia estaria numa situação muito pior no que diz respeito à condução da guerra.
Rússia
A Rússia é uma potência imperialista regional. Mas sua posse de enormes reservas de petróleo, gás e outras matérias-primas, sua sólida base industrial e seu avançado complexo militar industrial, junto ao seu poderoso exército e ao seu arsenal de armas nucleares, combinam-se para lhe dar um alcance mundial que a põe em situação de colisão com o imperialismo norte-americanos.
Historicamente, a Ucrânia esteve totalmente integrada na economia da União Soviética. Após a restauração capitalista, estes laços econômicos permaneceram, convertendo a Ucrânia em um ativo econômico fundamental para o capitalismo russo. Existem também ligações culturais e geográficas que são parte integrante da ideologia reacionária do grande chauvinismo russo. Os oligarcas russos veem o controle ocidental sobre o regime de Kiev como uma direta ameaça econômica, política e militar. Por trás da propaganda estatal russa, a camarilha do Kremlin esconde o seu estreito interesse em retomar o controle sobre a Ucrânia e subjugá-la para os seus próprios fins.
Washington vê a Rússia como uma ameaça aos seus interesses globais, particularmente na Europa. O velho ódio e receio em relação à União Soviética não desapareceu com o colapso da URSS. Joe Biden é um excelente exemplo da geração de russófobos que restou dos anos da Guerra Fria.
Depois do colapso da URSS, os norte-americanos aproveitaram o caos dos anos de Yeltsin para afirmar o seu domínio em escala mundial. Interviram em zonas antes dominadas pela Rússia, algo que nunca se teriam atrevido a fazer na época soviética.
Primeiro interviram nos Bálcãs, acelerando a desintegração da antiga Iugoslávia. As invasões criminosas do Iraque e do Afeganistão foram acompanhadas por uma intervenção infrutífera na guerra civil síria, onde se chocaram com a Rússia.
Em todas as ocasiões, continuaram expandindo o seu controle sobre a Europa Oriental, ampliando a OTAN através da inclusão de antigos satélites soviéticos como a Polônia e os Estados bálticos. Isto supôs o descumprimento direto das promessas feitas em repetidas ocasiões pelo Ocidente de que a OTAN não se expandiria “uma só polegada” para o Leste.
Isto levou a uma aliança militar hostil até as próprias fronteiras da Federação Russa. Mas ao tentar atrair a Geórgia à órbita da OTAN, atravessaram uma linha vermelha. A classe dominante na Rússia se sentiu humilhada e ameaçada e utilizou a força militar para disciplinar os georgianos.
A invasão da Ucrânia pretendia mostrar aos norte-americanos que a Rússia estava mostrando seus músculos e respondendo ao imperialismo norte-americano e à OTAN.
EUA e Europa
Os EUA estão utilizando o conflito da Ucrânia para perpetuar o seu objetivo de obrigar os europeus a cortar seus laços com a Rússia e reforçar assim o controle do imperialismo norte-americano sobre toda a Europa.
Antes disso, a classe dominante alemã estava, de fato, utilizando seus vínculos com a Rússia como alavanca para assegurar pelo menos uma independência parcial ante os EUA.
Sua outra alavanca principal era o seu domínio de fato da União Europeia, que esperava construir como um bloco de poder alternativo, capaz de perseguir seus próprios objetivos e interesses no cenário global.
As tensões entre os EUA e a Europa são cada vez maiores e, de fato, viram-se exacerbadas pela guerra da Ucrânia, embora esta só pudesse fechar as brechas temporariamente. Essas tensões voltaram a subir à superfície na recente lei protecionista de infraestrutura dos EUA, que aumenta a pressão sobre a produção industrial na União Europeia.
As tensões dos EUA com a Europa não são novas. Surgiram durante a guerra do Iraque e, mais recentemente, em torno às relações com o Irã. Os líderes da França e da Alemanha sempre desconfiaram das estreitas relações dos EUA com a Grã-Bretanha, à qual consideravam, com razão, um cavalo de Troia norte-americano dentro do campo europeu.
Os franceses, que nunca ocultaram suas próprias ambições de dominar a Europa, eram tradicionalmente mais eloquentes em sua retórica antiamericana. Os alemães, que na realidade eram os verdadeiros amos da Europa, mostravam-se mais circunspectos, preferindo a realidade do poder à fanfarronice vazia.
Os norte-americanos não se deixaram enganar. Consideravam a Alemanha, e não a França, como seu principal rival, e Trump, em particular, não ocultava sua extrema desconfiança e aversão para com Berlin.
Para assegurar sua independência de Washington, os capitalistas alemães estabeleceram uma relação estreita com Moscou. Isso enfureceu seus “aliados” do outro lado do Atlântico, mas lhes proporcionou consideráveis benefícios na forma de suprimentos baratos e abundantes de petróleo e gás.
Privar-se desses suprimentos é um preço muito alto a pagar para manter contentes os EUA. Com Angela Merkel, a Alemanha preservou ciosamente seu papel de independência. Precisou de uma guerra na Ucrânia para que a Alemanha se alinhasse, pelo menos por enquanto.
Os burgueses Verdes foram desmascarados como os mais fervorosos defensores do imperialismo ianque.
Mas por trás da fachada de “unidade ante a agressão russa”, as diferenças persistem. Isso ficou claro em uma caricatura que circula sobre duas mulheres, uma norte-americana e outra europeia. A segunda anuncia orgulhosa à primeira: “Ficarei encantada de morrer congelada para ajudar a Ucrânia”, ao que lhe responde a mulher norte-americana com um sorriso: “E eu também ficarei encantada com o teu congelamento!”
Na realidade, os EUA estão utilizando o pretexto da guerra para reforçar o seu controle sobre a Europa. De momento, o conseguiu. Mas não está nada claro o quanto durará a paciência dos alemães e outros europeus. As contradições que isso gera somente se tornarão manifestas quando o assunto ucraniano for resolvido.
Os EUA e a China
Na década de 1920, em uma brilhante previsão, Trotsky afirmou que o centro da história mundial havia passado do Mediterrâneo ao Atlântico e que estava destinado a passar do Atlântico ao Pacífico. Esta previsão está se convertendo em um fato diante de nossos próprios olhos.
O conflito entre os EUA e a Rússia se desenvolve principalmente (embora não de todo) na Europa. Mas o conflito entre a China e os EUA se desenvolve principalmente no Pacífico. No longo prazo, esta última região desempenhará um papel muito mais decisivo na história mundial que os Estados de segunda fila da Europa, que entraram em um longo período de declínio histórico.
Os acontecimentos no campo de batalha do Pacífico terão sem dúvida importantes repercussões mundiais no futuro. As tensões entre ambos os países são a cada dia maiores. Tanto os Democratas quanto os Republicanos não ocultam que consideram a China o seu principal e mais perigoso adversário.
Os EUA estão em um caminho que conduz a uma guerra comercial com a China. Endureceram ainda mais suas restrições à exportação de tecnologia para a China.
Os estrategistas burgueses especulam que a China se separará da Rússia. Mas isso não é mais que ilusões. Nas condições atuais, não há forma de que a China se afaste da Rússia, ou vice-versa, porque se necessitam mutuamente para enfrentar o poder do imperialismo norte-americano.
Na atualidade, o conflito entre os EUA e a China se centra na questão de Taiwan. A guerra na Ucrânia teve imediatamente o resultado de colocar a questão de Taiwan na agenda da política internacional. Há tempos que Pequim deixou claro e em termos inequívocos que considera Taiwan parte inalienável da China.
Mas ao apoiar as forças nacionalistas taiwanesas, ao reforçar a ajuda militar e ao obstaculizar o acesso da China ao mercado taiwanês, os norte-americanos estão aumentando as tensões em torno da ilha. No entanto, ao mesmo tempo, os EUA mantêm uma política de “ambiguidade estratégica”, isto é, de preservação do apoio ao status quo em Taiwan, porque sabem que afastar-se do mesmo poderiam desaguar em um desastroso confronto militar.
A visita não oficial de Nancy Pelosi à ilha foi um ato extremamente insensato, uma provocação sem sentido e que foi vista com consternação pelos representantes mais sérios do imperialismo norte-americano e pelos aliados dos EUA na Ásia, que não querem se ver obrigados a escolher lados em uma guerra comercial e muito menos em uma guerra real.
Mesmo Joe Biden, que não é muito famoso por sua perspicácia intelectual, podia ver que provocaria uma resposta imediata da China. E assim foi. Pequim intensificou a pressão com manobras navais e aéreas em torno da ilha. A guerra verbal entre os dois países foi subindo de tom.
Mas, na realidade, nenhum dos dois lados está ansioso para chegar a um enfrentamento militar. Uma intervenção armada dos EUA enfrentaria enormes problemas logísticos e Xi Jinping está mais preocupado em manter a estabilidade interna do que em envolver-se em aventuras militares. Depois de ter assegurado a “reeleição” no vigésimo congresso do PCCh, Xi adotou um tom mais conciliador em relação a Taiwan e os EUA.
Só uma crise muito grave dentro da China, que ameaçasse derrubar o regime, ou uma declaração de independência taiwanesa, respaldada pelos EUA, poderiam inclinar a balança em favor de uma aventura deste tipo. Mas isso não é algo que esteja imediatamente na ordem do dia.
Dessa forma, o difícil equilíbrio atual entre a China, os EUA e Taiwan se manterá durante algum tempo, com os inevitáveis altos e baixos. Mas a luta titânica pela supremacia entre os EUA e a China crescerá até abarcar toda a Ásia, com as consequências mais transcendentais para todo o planeta.
Estados Unidos, Arábia Saudita e Rússia
A guerra da Ucrânia também abriu conflitos entre os EUA e países que antes eram considerados aliados próximos. Os EUA estão enfadados porque muitas nações continuam comerciando com a Rússia, minando assim as sanções impostas pelos EUA. A China está desobedecendo abertamente os desejos dos EUA e não se pode fazer muita coisa para impedir isso.
Mas a Índia, supostamente amiga dos EUA, também está comprando enormes quantidades de petróleo russo a preços rebaixados e vendendo-o à Europa com uma margem lucrativa de lucros. Joe Biden está fumegando, mas Modi limita-se a encolher os ombros. Afinal, o petróleo russo é tão barato…
Pode ser barato para a Índia e para a China, mas a escassez mundial de petróleo fez subir os preços do mercado, o que beneficia a Rússia, como já explicamos.
Por essa razão aumentaram as tensões entre a Arábia Saudita, o maior exportador de petróleo cru do mundo, e os EUA, o maior consumidor mundial. Fazendo caso omisso da petição de Biden de aumentar a produção de petróleo para baixar os preços mundiais, Riad chegou a um acordo com Moscou para introduzir cortes na produção destinados a frear a queda dos preços.
A cooperação da Arábia Saudita com Moscou é uma fonte de enorme exasperação e indignação na Casa Branca. A porta-voz da Casa Branca, Karine Jean-Pierre, declarou aos jornalistas que era “evidente” que a OPEP estava “se alinhando com a Rússia”.
A disputa entre os sauditas e os EUA é sintomática do crescente desejo dos governos da Ásia, África e América Latina de aproveitar o conflito mundial entre Rússia, China e EUA para fazer valer seus próprios interesses, equilibrando-se entre ambos os lados. A conduta de Erdogan na Turquia é outro exemplo disso.
Um mundo multipolar?
Os reajustes a que nos referimos deram lugar a muitas especulações sobre um mundo “multipolar”. Supõe-se que a ascensão da China como potência econômica e militar desafiará a posição de liderança do imperialismo norte-americano.
Durante décadas se comentou o declínio dos EUA em relação à China. No entanto, há que se destacar que se trata de um declínio relativo. Em termos absolutos, os EUA continuam sendo o Estado militar mais rico e poderoso do planeta.
Na década de 1970, especulou-se de forma semelhante sobre a ascensão do Japão, que alguns previram que superaria a economia norte-americana em algumas décadas. Mas isso nunca se materializou.
O crescimento explosivo da economia japonesa chegou aos seus limites e o Japão entrou em um prolongado período de estancamento econômico. Agora há indícios de que a China pode estar se aproximando de uma posição semelhante.
Os limites do chamado modelo chinês se manifestam em uma brusca desaceleração do crescimento econômico. Em futuro previsível, os EUA manterão sua posição como a principal potência imperialista. Mas isso trará seus próprios problemas.
No século 19, o imperialismo britânico dominava uma parte enorme do globo terrestre. Sua frota dominava os mares, embora se visse cada vez mais desafiada pelo crescente poder da Alemanha, e o imperialismo norte-americano ainda estava em suas fases iniciais de desenvolvimento.
Naquela época, a Grã-Bretanha conseguiu se enriquecer à custa de suas colônias e de seu papel dominante no comércio mundial. Seu poder se viu minado por duas guerras mundiais e os EUA herdaram o papel da Grã-Bretanha como potência mundial. Mas ganharam essa posição em um período de declínio imperialista. E o papel de polícia do mundo está resultando muito oneroso.
Apesar de sua riqueza colossal e de seu poder militar, os EUA sofreram sua primeira derrota militar nas selvas do Vietnã. Anteriormente, a guerra da Coreia havia terminado em empate e continua sem resolver. As aventuras militares no Afeganistão, no Iraque e na Síria acabaram todas em humilhação e na perda de bilhões de dólares.
Agora, a guerra da Ucrânia – na qual se supõe que os EUA não participam ativamente, embora, na prática, sim participam – se converteu em uma nova sangria colossal de seus recursos. Como resultado, existe uma poderosa reação por parte da opinião pública norte-americana contra as aventuras militares externas. Isso age como um poderoso fator que limita seu potencial beligerante.
As humilhantes derrotas sofridas no Iraque e no Afeganistão estão gravadas a ferro e fogo na consciência do povo norte-americano. Estão fartos das intervenções e guerras externas, e este é um poderoso fator que limita a margem de manobra tanto de Biden quanto do Pentágono.
Por outro lado, a ala trumpista do Partido Republicano mostra uma forte tendência em direção ao isolacionismo que, tradicionalmente, foi um poderoso fator na política norte-americana.
A instabilidade geral no mundo ameaça constantemente inflamar a instabilidade política dentro da sociedade norte-americana. Isso é o que Trotsky queria dizer quando previu que os EUA emergiriam como a potência mundial dominante depois da II Guerra Mundial, mas que teriam a dinamite incorporada em seus alicerces.
Guerra e paz
O período no qual entramos se caracterizará por uma crescente instabilidade e por fricções entre as distintas potências e blocos. Os reformistas de direita adotaram plenamente o programa e a retórica (“defender a democracia”) da agenda imperialista da burguesia. A “esquerda” não cessa de entoar hinos comovedores à Paz e à Fraternidade Humana, que imaginam salvaguardadas pela Carta das Nações Unidas.
No entanto, nos cerca de 80 transcorridos desde sua fundação, as chamadas Nações Unidas nunca evitaram qualquer guerra. Entre 1946 e 2020, houve aproximadamente 570 guerras, que causaram pelo menos 10.477.718 mortes civis e militares. A ONU não é mais que uma tertúlia que dá a impressão de poder resolver os problemas.
Na realidade, no melhor dos casos, às vezes pode resolver pequenas questões, mas que não afetam os interesses fundamentais das grandes potências. No pior dos casos, como na guerra da Coreia nos anos 1950, na do Congo nos anos 1960 e na primeira guerra do Iraque, em 1991, serve como uma cômoda folha de parreira para disfarçar os desígnios imperialistas.
No passado, as tensões existentes já teriam desembocado em uma grande guerra entre as Grandes Potências. Mas as condições cambiantes eliminaram isso da agenda, pelo menos até o momento. Durante as últimas sete décadas não houve nenhuma guerra mundial, embora, como já assinalamos, houve muitas guerras localizadas.
Os capitalistas não fazem a guerra por patriotismo, democracia ou qualquer outro princípio altissonante. Fazem a guerra para obter lucros, para capturar mercados externos, fontes de matérias-primas (como o petróleo) e para ampliar suas esferas de influência.
Uma guerra nuclear não significaria nada disso, mas somente a destruição mútua de ambas as partes. Inclusive cunharam uma frase para descrever isto: DMA (Destruição Mútua Assegurada). Uma guerra desse tipo não beneficiaria os banqueiros e capitalistas.
Outro fator decisivo – já mencionado – é a oposição massiva à guerra, particularmente (mas não exclusivamente) nos EUA. Segundo uma pesquisa de opinião, só 25% da população norte-americana estaria a favor de uma intervenção militar direta na Ucrânia, o que significa que a imensa maioria se oporia.
É isto, e não qualquer amor pela paz, e claramente nenhum respeito pelas Nações (Des)Unidas, o que impediu aos EUA de enviar tropas para um enfrentamento direto com o exército russo na Ucrânia.
Naturalmente, não faltam generais norte-americanos estúpidos ou mesmo desequilibrados que pensam que a guerra com a Rússia ou com a China, ou melhor ainda, com ambas, seria uma boa ideia e que se isso significasse a aniquilação nuclear do planeta, seria um preço necessário a ser pago.
Mas essa gente é mantida à distância, da mesma forma que um homem que tem um cão de guarda feroz para defender sua propriedade se assegura de que esteja atado a uma corrente. E a menos que tenhamos a perspectiva da chegada ao poder de um Hitler norte-americano, ninguém se sentirá inclinado a assinar uma carta de suicídio coletivo em nome do povo.
Embora uma guerra mundial nas condições atuais esteja descartada, haverá muitas guerras “pequenas” e guerras distantes, como a da Ucrânia. Isso se somará à volatilidade geral e lançará lenha ao fogo da desordem mundial.
EUA
Nos EUA, a estabilidade do status quo se baseava na divisão do poder entre dois partidos burgueses, o Republicano e o Democrata. Durante mais de 100 anos, estes dois gigantes políticos se alternaram no governo com a regularidade do pêndulo de um velho relógio.
Tudo parecia funcionar à perfeição. Mas agora a regularidade anterior deu lugar às turbulências mais violentas.
Os anos de Trump se caracterizaram por uma extrema imprevisibilidade. Sua negativa em aceitar a transmissão de poderes, ou mesmo em admitir que pudesse chegar a perder as eleições, criou as condições para o assalto de 6 de fevereiro de 2021 ao Congresso por uma turba furiosa de seus partidários. Esses acontecimentos foram o anúncio de um novo período de convulsões violentas na sociedade norte-americana.
Todos os comentaristas econômicos sérios preveem que os EUA entrarão em recessão em 2023. A taxa anual de inflação dos EUA já supera os 8%, a mais alta dos últimos 40 anos. Conforme declarado, a Reserva Federal esteve aumentando gradualmente as taxas de juros, levando as taxas hipotecárias ao seu mais alto nível em 15 anos, aproximando-se dos 7%, frente a um pouco mais de 3% em 2021.
Ao mesmo tempo, a dívida nacional norte-americana superou a marca dos 31 trilhões de dólares. Com a forte subida das taxas de juros, isso exercerá uma forte pressão sobre as finanças públicas norte-americanas. A criação de empregos também perdeu velocidade e o desemprego começa a aumentar.
Isto se soma a um declínio relativo de longo prazo, que provocou o estancamento ou a queda do nível de vida de milhões de norte-americanos. Os salários reais estão estancados desde os anos 1970. Durante décadas foram destruídos milhões de postos de trabalho bem remunerados no setor manufatureiro.
Isto explica o declínio da popularidade dos Democratas, antes considerados “amigos dos trabalhadores”, e também porque uma figura como Trump pôde aproveitar o ressentimento contra o establishment de uma camada da classe trabalhadora.
No entanto, as eleições de metade de mandato de 2022 não produziram a vitória do trumpismo, que muitos esperavam, apesar dos baixos índices de aprovação de Biden. Muitos dos candidatos de Trump foram derrotados. Uma das principais razões foi a reação contra a anulação de Roe vs Wade, pelo Tribunal Supremo, que anteriormente protegia o direito ao aborto.
Resta ver se Trump ganha a nomeação presidencial do Partido Republicano ou se é empurrado para o lado por alguém como Ron DeSantis, o governador da Flórida, que se posicionou como o candidato do “trumpismo sem Trump”. O cenário pode estar preparado para uma cisão no Partido Republicano, se Trump não se sair com a sua.
Descontentamento profundo
Existe um descontentamento generalizado e profundamente arraigado, que se expressa pesquisa após pesquisa.
Mais da metade dos norte-americanos acreditam que “nos próximos anos haverá uma guerra civil nos EUA”, segundo uma pesquisa da Universidade da California em 2022.
Segundo outra pesquisa, 85% dos norte-americanos creem que o país vai pelo “mau caminho”. 58% dos eleitores norte-americanos “creem que seu sistema de governo não funciona… e assim por diante.
Esse arraigado estado de ânimo de descontentamento encontrou sua expressão mais chamativa no movimento Black Lives Matter [As Vidas Negras Importam] em 2021, que contou com o apoio de 75% da população. Mas essa radicalização se viu parcialmente desorientada pelas chamadas políticas de identidade.
O que se conhece como “guerras culturais” é utilizado habitualmente tanto por políticos de extrema-direita quanto por liberais para incitar seus partidários. Trata-se de um veneno que só pode ser combatido com a política de classes.
A questão de classe
O ressurgimento da questão de classe se expressa na vaga de campanhas de sindicalização em empresas como Amazon e Starbucks, mas também nas vagas de greves que afetaram os EUA, como o “Striketober” [outubro de greves] de 2021. E a atividade grevista continua crescendo.
As últimas cifras revelam que 71% dos norte-americanos apoiam os sindicatos, seu mais alto nível desde os anos 1960. E entre os jovens esta cifra é ainda maior. Inclusive entre o grupo de 18 a 34 anos de idade que apoia Trump, 71% simpatizam com as campanhas sindicais na Amazon.
O movimento para a sindicalização dos trabalhadores precários, principalmente dos trabalhadores jovens, é o primeiro indício real de um renascimento da luta de classes. Essas campanhas de sindicalização são impulsionadas por trabalhadores de base jovens e radicais com pouca conexão com o movimento sindical tradicional. Fazem parte de uma nova geração de combatentes de classe que está se formando nos EUA e que se move rapidamente para a esquerda.
No entanto, existe uma profunda e crescente desconfiança com todos os partido existentes, particularmente o Democrata. É essa situação que explica a crise da presidência de Biden. Consideram-no incapaz de resolver qualquer um dos agudos problemas enfrentados pela classe trabalhadora e pela juventude, desde a inflação à guerra da Ucrânia, desde o crescente e devastador impacto da mudança climática à escassez de moradias acessíveis.
É esse sentimento geral de mal-estar que explica a desconfiança generalizada para com Biden e os Democratas entre uma ampla camada da população. A posterior evolução da luta de classes abrirá o caminho, em dado momento, ao surgimento de um terceiro partido, baseado na classe trabalhadora. Isso representará uma mudança fundamental em toda a situação.
China
Anteriormente, a China era uma das principais forças motrizes que impulsionavam a economia mundial. Mas agora alcançou os seus limites e está se convertendo em seu contrário. Os economistas burgueses observam a evolução da China com alarme crescente.
Nos mercados livres do Ocidente, as crises financeiras podem explodir de repente, colhendo de surpresa governos e investidores. Mas na China, onde o Estado continua desempenhando um papel importante na economia, o governo pode mobilizar capital político e financeiro em um grau muito maior, com a finalidade de mitigar ou adiar uma crise.
Isso dá uma aparência de estabilidade, mas é uma ilusão. Visto que a China optou por seguir o caminho capitalista e agora está completamente integrada no mercado capitalista, está sujeita às mesmas leis da economia de mercado capitalista.
Um dos fatores fundamentais que salvaram a economia chinesa e mundial de uma grave crise depois da quebra de 2008 foram as enormes quantidades de dinheiro injetadas na economia pelo Estado chinês.
Essa injeção de dinheiro chegou a centenas de bilhões de dólares, a maior parte dos quais foi canalizada para projetos de infraestrutura e desenvolvimento. O que estamos presenciando agora é o fim desse modelo. A economia chinesa está desacelerando. O escasso crescimento de 2,8% de 2022 foi o nível mais baixo desde 1990. Em 2021, essa taxa se situou em 8,1%.
Grande parte desse investimento foi dedicado aos LGFV (veículos de financiamento dos governos locais), que acumularam uma enorme montanha de dívidas de 7,8 trilhões de dólares que ameaça a estabilidade de toda a economia chinesa. Grande parte dessas dívidas está oculta, como parte do setor bancário paralelo semilegal, no qual as empresas estatais e os bancos estão fortemente envolvidos.
Essa dívida equivale a quase a metade do PIB total da China em 2021, ou aproximadamente duas vezes o tamanho da economia da Alemanha. Com a redução das receitas dos governos locais, parece cada vez mais provável um devastador efeito dominó de inadimplências.
A intervenção estatal serve apenas para distorcer o mecanismo do mercado, mas não pode eliminar suas contradições fundamentais. Pode adiar uma crise, mas quando esta finalmente surgir, o que, mais cedo ou mais tarde, deverá ocorrer, terá um caráter ainda mais explosivo, destrutivo e incontrolável.
Uma crise financeira na China teria um impacto devastador no conjunto da economia mundial. Também criaria uma situação muito explosiva dentro da China.
Sempre se supôs que a China necessita de uma taxa de crescimento anual de pelo menos 8% para manter a estabilidade social. Uma taxa de crescimento de 2,8% é, portanto, totalmente insuficiente. E uma grande crise econômica, desencadeada pelo colapso do mercado imobiliário, prepararia o terreno para grandes convulsões sociais.
A China enfrenta uma explosão social
É neste contexto que devemos ver o congresso do Partido “Comunista” Chinês de 2022, quando Xi Jinping reforçou o seu poder. Segundo as velhas regras do Partido, Xi deveria ter-se demitido como líder nesse congresso, mas, em vez disso, aspira a ser um líder vitalício.
Não é casual que Xi tenha concentrado todo o poder em suas mãos. A China é um Estado totalitário que combina a economia de mercado capitalista a elementos de controle estatal, herdados do antigo Estado operário deformado.
Em um Estado totalitário, onde todas as fontes de informação se encontram estritamente controladas e todas as formas de oposição são impiedosamente reprimidas, é extremamente difícil de saber o que ocorre sob a superfície, até que, de repente, tudo explode.
Podemos ver isso na luta dos trabalhadores da mega fábrica da Foxconn em Zhengzhou e nos protestos nacionais contra os confinamentos de novembro de 2022. Surgindo aparentemente do nada, estes movimentos adotaram uma forma explosiva e, no caso dos protestos contra os confinamentos, se espalharam a centenas de locais em todo o país em questão de horas. Esses acontecimentos assinalam o início da ruptura do equilíbrio social na China.
No entanto, a elite governante está muito consciente disso. Conta com um poderoso aparato repressivo e com uma enorme rede de espias e informantes que estão presentes em cada fábrica, oficina, bloco de apartamentos, escolas e universidades.
A China agora gasta mais, a cada ano, em segurança interna do que na defesa nacional, e está aumentando ambos os gastos. Xi e sua camarilha estão muito conscientes dos riscos enormes da agitação popular e estão tomando medidas para se anteciparem a ela. No entanto, seu regime altamente sofisticado de censura online foi incapaz de impedir que se espalhasse a informação sobre os recentes protestos, embora estes envolvessem apenas algumas centenas de pessoas em cada cidade. Um movimento de massas da classe trabalhadora paralisaria totalmente esse sistema.
Em grande medida, isso explica o esmagamento do movimento massivo de protesto em Hong Kong, em 2019. Do contrário, logo teria se espalhado ao continente.
O magnífico alcance desse movimento – antes de que fosse sequestrado e dirigido a um beco sem saída pela elite liberal pró-Ocidente – dá uma ligeira ideia de como será uma revolução proletária na China, só que em uma escala muito maior.
Napoleão em certo momento disse: “A China é um dragão adormecido. Deixemos a China dormindo, porque quando despertar sacudirá o mundo”. Há muito de correto nesta frase. Mas deveríamos introduzir um pequeno adendo.
O proletariado chinês é o maior e potencialmente o mais forte do mundo. É como um dragão adormecido prestes a despertar. E quando isso ocorrer, certamente abalará o mundo.
Na China está se preparando uma enorme explosão social, embora seja impossível dizer quando ocorrerá. Mas uma coisa pode ser prevista com absoluta certeza. Ocorrerá quando menos se espere.
E uma vez começada, não haverá que a detenha. Nenhuma repressão ou intimidação será suficiente. Será como quando o rio Yangtzé transborda, arrasará com tudo.
Europa: tendências centrífugas
A unidade da União Europeia poderia ser dada como assegurada enquanto permanecessem as condições de auge econômico. Mas esse período de condições favoráveis desapareceu. E o início das turbulências econômicas e financeiras provocará mais protecionismo e nacionalismo econômico.
Nas condições de uma profunda recessão econômica, o frágil tecido da unidade europeia será posto a prova até sua destruição. As tendências centrífugas resultantes acelerarão o afastamento da globalização em direção uma maior fragmentação da Europa e da economia mundial em geral.
O sul da Europa é o elo mais fraco da cadeia e está maduro para sofrer graves transtornos políticos e instabilidade. A contínua debilidade financeira da Grécia e da Itália pode desencadear o colapso da união monetária europeia. Mas mesmo as nações mais fortes estão sendo minadas. Essas tendências se fortalecerão inevitavelmente, exercendo enorme pressão sobre o frágil tecido da unidade europeia.
Divisões na Europa
A crise evidenciou as profundas fissuras que existem entre os distintos Estados membros da UE. Mesmo antes da guerra na Ucrânia e da pandemia, a economia europeia estava desacelerando e as tensões entre os países da UE cresciam. O indicador mais evidente disso foi a saída da Grã-Bretanha, que deixou muitos problemas sem resolver. Mas as relações com a Grã-Bretanha não são a única fonte de fricções na União Europeia.
Como resultado da guerra na Ucrânia e da ameaça ao abastecimento do gás russo à Europa, a União Europeia vê-se ameaçada por uma catástrofe econômica. Os capitalistas de cada Estado europeu lutam para tomar medidas em seu próprio interesse.
A solidariedade europeia não entra nesta equação. É um caso muito simples de “salve-se quem puder e seja o que Deus quiser”.
A guerra na Ucrânia abriu sérias divisões na UE. Como já se disse, a Polônia e os países bálticos são os mais vociferantes entre os falcões. Mas o húngaro Victor Orban criticou abertamente as sanções do Ocidente contra a Rússia, e a Hungria mantém excelentes relações com o homem do Kremlin. Em consequência, a Hungria tem agora os preços do gás mais baixos da Europa.
Orban comentou com uma forte dose de ironia: “Na questão da energia, somos anões e os russos gigantes. Um anão sanciona um gigante e todos ficamos assombrados quando o anão morre”. Seus comentários escandalizaram os dirigentes da UE. Mas não estavam muito errados.
O pacote alemão de ajuda às empresas de energia provocou imediatamente uma dura reação de vários países da União Europeia, que exigem uma resposta conjunta da UE à crise energética. O primeiro-ministro húngaro advertiu que o pacote de ajuda previsto pela Alemanha equivale ao “canibalismo” e ameaça a unidade da UE em um momento em que os Estados membros sofrem graves tensões econômicas por conta da guerra na Ucrânia.
Um alto assessor da primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, declarou: “É um ato preciso, deliberado, não acordado, não compartilhado, não comunicado, que mina as razões da União”. Emanuel Macron foi mais diplomático, mas foi ao fundo da questão ao dizer: “Não podemos nos prender às políticas nacionais, porque isso cria distorções dentro do continente europeu”.
No entanto, o ministro das finanças alemão, Robert Habeck, defendendo o pacote de medidas de alívio energético do país, contra-atacou com uma severa advertência: “Se a Alemanha sofresse uma recessão realmente profunda, arrastaria consigo toda a Europa”.
A Alemanha e os países capitalistas mais ricos do Norte da Europa não estão dispostos a pagar a fatura das economias capitalistas mais pobres do Sul e do Leste.
No entanto, há indícios de um descontentamento crescente com relação a essa posição. O Financial Times publicou um artigo com o seguinte título: “Os alemães comuns e correntes estão pagando: os protestos contra a guerra se espalham por toda a Europa Central”. Nesse artigo se informava de um alarmante crescimento das manifestações antibélicas e pró-russas na Alemanha e em outros países da Europa do Leste.
Neste estágio, os participantes se contavam em número de centenas. Mas à medida que continuem baixando as temperaturas, aumentará a ira de muito mais gente. As tensões sociais resultantes ameaçarão o delicado tecido político da Alemanha.
Também na República Checa, no dia 3 de setembro de 2022, entre 70.000 e 100.000 pessoas se manifestaram na Praça Wenceslau de Praga, pedindo a demissão do governo de coalizão de direita pró-OTAN do primeiro-ministro Petr Fiala. Entre outras reivindicações, os manifestantes cantaram slogans contra a crise do custo de vida e contra a participação checa na guerra à distância da OTAN contra a Rússia.
O apoio italiano à guerra tampouco pode se dar por assegurado. Enquanto Meloni adotou imediatamente a posição “responsável” pró-Ocidente com relação à guerra, seus sócios de coalizão, Salvini e Berlusconi, tocavam uma melodia diferente, com Salvini pedindo o fim das sanções à Rússia e com Berlusconi alardeando abertamente sua amizade com Vladimir Putin.
Alemanha
A crise mundial do capitalismo está alcançando a Alemanha. A guerra na Ucrânia supôs para a classe dominante alemã um duro despertar da fragilidade real do imperialismo alemão.
A Alemanha foi durante décadas a potência industrial da Europa. Sob a batuta de Angela Merkel, chanceler durante 15 anos, o capitalismo alemão logrou exportar sua saída da crise de 2008.
Sua competitividade havia sido impulsionada à custa da classe trabalhadora através das contrarreformas Hartz IV e da precarização das relações trabalhistas, aplicadas em 2004 pelo governo socialdemocrata de Gerhard Schroeder.
A classe dominante alemã também se aproveitou da restauração capitalista na Europa Oriental para expandir sua influência para o Leste, o que lhe proporcionou uma barata reserva de mão de obra qualificada.
Isto, combinado ao acesso fácil e ilimitado aos suprimentos de petróleo e gás baratos da Rússia, deu aos capitalistas alemães uma vantagem competitiva adicional sobre seus rivais. O resultado foi um auge das exportações ao restante da União Europeia, aos Estados Unidos e à China durante a década seguinte, com o que a Alemanha reforçou sua posição como superpotência comercial mundial.
Um nível relativamente baixo de dívida estatal, o controle do euro e sua posição destacada nas instituições da União Europeia deram à classe dirigente alemã margens de manobra para preservar a estabilidade social interna à custa do restante da Europa.
No entanto, todos os pontos fortes do “modelo alemão” estão se transformando em seu oposto. A deterioração do comércio mundial em 2019, exacerbada pelo impacto da pandemia e pelo subsequente deslocamento da cadeia de suprimento de matérias-primas, componentes, chips e pelo aumento dos custos de remessa, minou a produção e as exportações alemãs de automóveis, máquinas e produtos químicos.
O impacto da guerra na Ucrânia deu destaque ao fato de que a Alemanha não tem suficientes músculos econômicos ou militares para perseguir seus próprios interesses estratégicos quando enfrenta potências econômicas e militares mais poderosas.
O pacote de 100 bilhões de euros de gasto militar adicional anunciado pelo chanceler alemão Olaf Sholz foi o reconhecimento desta realidade, mas só aumentará os lucros do complexo industrial-militar.
A pressão implacável do imperialismo norte-americano obrigou os capitalistas alemães a se desprenderem da rede cuidadosamente elaborada de laços comerciais, empresas mistas e investimentos diretos russo-alemães, a um custo catastrófico.
Apesar das tentativas alemãs de atrasar e evitar medidas que implicassem em um confronto direto com a Rússia, a dinâmica da guerra expôs inevitavelmente a vulnerável e dependente economia alemã às severas represálias russas mediante o estrangulamento e posterior corte total do abastecimento energético.
Esta situação, unida à explosão da inflação, terá consequências profundas sobre a estabilidade política e social do capitalismo alemão. O próximo período evidenciará inevitavelmente aguçadas contradições de classe, que minarão a política de colaboração de classes da socialdemocracia e dos dirigentes sindicais.
Ante a rápida deterioração do nível de vida, sob o martelo da inflação galopante e do aumento dos custos energéticos, a classe trabalhadora se verá obrigada a reagir. Toda tentativa da burocracia sindical de se aferrar aos velhos métodos de parceria social minará ainda mais sua autoridade.
As tentativas de mobilizar a classe trabalhadora em apoio à classe capitalista, como as palavras do ex-presidente federal Joachim Gauck convocando os alemães a “se congelarem pela liberdade”, já estão soando ocas. Neste contexto está implícita a inevitável tendência à ruptura da colaboração social e à explosão da luta de classes, uma vez que a classe dominante está ficando sem opções.
Itália
A chegada ao poder do governo arquiconservador de Meloni foi um acontecimento profundamente preocupante para a burguesia italiana e o imperialismo.
A Itália, já em recessão, com a inflação em seu mais alto nível em quase 40 anos, tem uma enorme carga de dívida de 2,75 trilhões de euros, 152% do PIB, que corre o risco de se converter em uma carga ainda maior com o aumento das taxas de juros.
O êxito eleitoral de Meloni se deveu ao fato de ela se ter colocado à margem do governo de Mario Draghi. Draghi era o homem da burguesia, mas o problema foi que todos os partidos de sua coalizão sofreram fortes perdas nas eleições.
Meloni é uma racista, uma fanática e uma extremista reacionária, mas não há um “retorno ao fascismo” na Itália. O que há é uma crescente desconfiança em relação a todos os partidos, como confirma os 40% de abstenção.
Os votos totais à coalizão de direita não aumentaram, mas um grande número de votos se afastou de Berlusconi e da Lega para Fratelli d’Italia. Apenas 1 de cada 6 eleitores votou realmente em Fratelli d’Italia.
Imediatamente após as eleições, Meloni fez o que pôde para assegurar aos mercados financeiros europeus que se podia confiar nela e que continuaria mais ou menos com as mesmas políticas de Draghi. O financiamento da UE para estabilizar a economia italiana está condicionado a que o governo imponha medidas de austeridade.
A crise atual, com inflação galopante, baixos salários, alto desemprego, junto a políticas reacionárias em questões como o direito ao aborto, a imigração etc., é uma receita pronta e acabada para uma explosão da luta de classes e dos protestos dos trabalhadores e da juventude.
França
Como em todos os grandes países capitalistas, o governo francês gastou enormes somas de dinheiro para evitar uma crise maior durante a pandemia, mas agora alguém tem que pagar a conta e, claramente, vai ser a classe trabalhadora francesa.
Mas os burgueses franceses enfrentaram uma resposta combativa dos trabalhadores todas as vezes que fizeram uma tentativa séria de eliminar as conquistas do passado. Quando Macron foi eleito pela primeira vez, enfrentou o movimento dos Coletes Amarelos no ano em que assumiu o cargo. Mas agora é ainda mais débil.
Seu apoio ativo real no primeiro turno foi de apenas 20% do eleitorado total da França. Em vez de um fortalecimento do centro, está se produzindo uma forte polarização para a esquerda (Mélenchon) e para a direita (Le Pen).
A crescente instabilidade se evidenciou nas eleições parlamentares celebradas poucos meses depois, nas quais Macron não conseguiu a maioria absoluta no Parlamento. O resultado é um governo débil, baseado em um Parlamento dividido, sob uma enorme pressão para cumprir o programa exigido pela classe capitalista.
Isso ocorre em um momento de aprofundamento da crise econômica, com uma inflação que continua aumentando, com a elevação das taxas de juros que, por sua vez, elevam os custos hipotecários para milhões de famílias, e com a ameaça de um aumento do desemprego à medida que a crise mundial do capitalismo impacta na França.
Um indício da mudança no estado de ânimo pôde-se observar na greve dos trabalhadores das refinarias de outubro de 2022, que durou semanas e foi dirigida pela FNIC, a mais esquerdista das federações que constituem a CGT. O governo tentou introduzir medidas para derrotar a greve, mas os trabalhadores do petróleo contavam com o apoio da imensa maioria da população, apesar da escassez de combustível provocada pela greve.
Os dirigentes sindicais convocaram jornadas de ação para dissipar a pressão e evitar assim o lançamento de uma luta sem quartel contra o governo. Os dirigentes sindicais convocaram dias de ação para permitir que os trabalhadores desabafassem, a fim de evitar o lançamento de uma luta total contra o governo. A mesma tática foi usada na luta contra a reforma previdenciária. Isto permitiu ao governo impulsionar a sua reforma, apesar da mobilização de milhões de trabalhadores e jovens, em diversas ocasiões.
A liderança sindical não poderá conter o movimento indefinidamente. A greve dos trabalhadores petrolíferos, o movimento massivo contra a reforma das pensões e o desenvolvimento de uma oposição de esquerda na CGT são antecipações do que podemos esperar no próximo período numa escala muito maior. Uma camada crescente da classe trabalhadora compreende o impasse dos “dias de ação”. Nas manifestações, a palavra de ordem de “greve geral” foi mais visível do que nunca. Uma repetição de Maio de 1968 está implícita em toda a situação.
Grã-Bretanha
O investidor bilionário Warren Buffet disse em uma ocasião que “só quando a maré baixa descobres quem estava nadando nu”. Essa descrição se ajusta admiravelmente à situação atual da Grã-Bretanha.
Não há tanto tempo, a Grã-Bretanha era vista como o país mais estável política e socialmente, e provavelmente como o mais conservador da Europa. Agora está se convertendo em seu oposto.
Rishi Sunak foi “eleito” líder quando Liz Truss foi expulsa depois do desastre financeiro. Entrou no número 10 da Downing Street prometendo “consertar” os erros de sua predecessora.
Mas a urgente necessidade de equilibrar as contas e de eliminar o enorme buraco das finanças públicas significa inevitavelmente que o povo britânico enfrenta um novo período de austeridade, cortes e ataques ao nível de vida.
Milhões de lares britânicos veem-se obrigados a escolher entre manter as luzes acesas ou botar comida na mesa. A flagrante diferença entre ricos e pobres nunca foi tão evidente como agora. E isso aviva o fogo do ressentimento e da ira.
Há muitos indícios de uma mudança de consciência na Grã-Bretanha, como o fato de que 47% dos eleitores Conservadores estejam a favor de nacionalizar a água, a eletricidade e o gás, o que contradiz diretamente as políticas de livre mercado do governo Conservador.
Depois de muitos anos de ataques sem precedentes contra os salários e o nível de vida, os trabalhadores não estão de humor para aceitar mais imposições. As contradições entre as classes se aguçam a cada dia.
A indignação se reflete em um número cada vez maior de greves: ferroviários, estivadores, carteiros, garis e mesmo advogados criminalistas já se declararam em greve. E os acompanham outros como os professores e as enfermeiras.
Cada vez se fala mais da coordenação da ação sindical. Haverá uma greve geral na Grã-Bretanha? É impossível prever. O único que se pode dizer com certo grau de certeza é que nem o governo nem os dirigentes sindicais a desejam, mas como todas as condições objetivas existem para que se produza, podem cair nela.
A reativação da luta econômica é um acontecimento importante. Mas tem suas limitações. Trotsky assinalou que mesmo a greve mais tormentosa não pode resolver os problemas mais fundamentais da sociedade, para não falar das greves derrotadas.
Mesmo quando os trabalhadores conseguem um aumento salarial, este fica rapidamente anulado com as novas subidas dos preços. Portanto, em algum momento, o movimento terá que adquirir uma expressão política. Mas, como conseguir isso?
Trabalhistas e conservadores
Durante um tempo, o Partido Trabalhista havia girado bruscamente à esquerda sob Jeremy Corbyn. Na realidade, a classe dominante havia perdido o controle dos dois grandes partidos: dos trabalhistas aos reformistas de esquerda e dos conservadores aos chauvinistas de direita partidários do Brexit.
Como resultado da vergonhosa capitulação da esquerda, a direita logrou recuperar o controle do Partido Trabalhista, algo que mesmo os observadores burgueses mais otimistas consideravam quase impossível.
Agora os conservadores estão desacreditados e em crise. Estão divididos em diferentes linhas e cada vez mais desmoralizados, atacando-se mutuamente à medida que as pressões da crise se acumulam, precisamente quando a classe dominante necessita de um governo unificado para realizar seus ataques à classe trabalhadora.
As políticas do novo governo representam uma combinação de cortes e aumentos de impostos que afetará não só os trabalhadores como também amplas camadas da classe média. É uma receita pronta e acabada para a luta de classes. E qualquer coisa que fizerem agora os conservadores será um erro.
A nova administração conservadora está tentando evitar convocar eleições porque sabem que seriam aniquilados. Os trabalhistas chegariam ao poder, não graças a Starmer, mas apesar dele.
Por seu lado, Starmer não está muito entusiasmado com a ideia de encabeçar um governo trabalhista majoritário, uma vez que isso o privaria de qualquer desculpa por não realizar políticas no interesse da classe trabalhadora. Sua política consiste em amortecer as expectativas e prometer o menos possível.
Sequer se exclui que possa haver uma cisão aberta no Partido Conservador, com a facção de direita separando-se para formar um novo partido Brexiteer, possivelmente junto a Nigel Farage. Isso poderia levar à formação de um “governo de unidade nacional”, com uma aliança dos trabalhistas com os liberais e os conservadores moderados.
De uma forma ou de outra, a classe trabalhadora terá que voltar a aprender algumas lições dolorosas na escola de Sir Keir e da camarilha direitista que agora controla o Partido Trabalhista, que são políticos burgueses em tudo menos no nome.
A direita realizou um expurgo profundo no Partido, com a finalidade de evitar qualquer possibilidade de que se repita o assunto Corbyn. Mas uma vez que os trabalhistas cheguem ao governo, estarão sob a pressão tanto das grandes empresas quanto da classe trabalhadora.
Como fiel servidor dos banqueiros e capitalistas, Starmer não hesitará em executar políticas no seu interesse. Mas qualquer tentativa de implementar uma política de cortes e de austeridade provocará uma explosão de raiva, que acabará por encontrar expressão dentro do Partido Trabalhista, a começar pelos sindicatos, que, apesar de tudo, ainda mantêm a sua ligação ao partido. Serão necessários grandes acontecimentos para forçar as pessoas a aceitarem o fato de que já não é possível regressar ao que existia antes.
Na Escócia, o Partido Trabalhista perdeu há muito tempo a sua força. O Partido Nacional Escocês – o maior partido da Escócia – está num estado de turbulência, tendo perdido 30.000 membros desde 2021 devido ao impasse estratégico na questão nacional. No entanto, a classe trabalhadora e particularmente a juventude, a maioria dos quais apoia a independência, não estão voltando ao Trabalhismo em números significativos, mas sim estão à procura de um caminho a seguir. Nestas condições, abrir-se-ão grandes oportunidades para a tendência marxista em toda a Grã-Bretanha.
A classe dominante em crise
A classe dominante tem os dirigentes que merece. Não é casual que em todos os lugares haja uma crise de liderança da classe dominante, o que se revela nas rupturas abertas na cúpula, nos EUA, na Grã-Bretanha, no Brasil, no Paquistão.
Mas as razões dessa crise de liderança estão enraizadas na própria situação. A atual crise é tão profunda que praticamente exclui qualquer margem de manobra na cúpula. Como observou Lenin, um homem à borda de um precipício não raciocina. Mesmo os dirigentes mais inteligentes e capazes achariam impossível sair deste pântano.
Mesmo assim, a qualidade da liderança continua desempenhando um importante papel. Em uma guerra, às vezes um exército se vê obrigado a se retirar. Mas, com bons generais, um exército pode se retirar em ordem, conservando a maioria de suas tropas para combater outro dia, enquanto os generais incompetentes converterão uma retirada em debandada.
Basta assinalar a Grã-Bretanha na atualidade para evidenciar a correção dessa afirmação.
Crise da democracia burguesa
Nossa época – a época do imperialismo – caracteriza-se, sobretudo, pelo domínio do capital financeiro. Todos os governos, assim que entram em funções, são informados de que o ministro das finanças deve ser “aceitável para os mercados”.
A experiência do efêmero governo de Truss na Grã-Bretanha serviu para ilustrar a natureza totalmente fictícia da democracia burguesa formal na época atual. No caso da Grã-Bretanha, os mercados escolheram tanto o ministro das Finanças quanto o primeiro-ministro, poupando assim ao povo britânico a dolorosa necessidade de escolher alguém.
Por trás da sorridente máscara do liberalismo esconde-se o punho de ferro do capitalismo monopolista e a ditadura dos banqueiros. Este punho pode ser utilizado a qualquer momento para destruir qualquer governo que não obedeça aos ditados do Capital.
Obviamente, isso se aplica aos governos de esquerda, como no caso da Grécia. Mas também se pode aplicar aos governos de direita, como logo descobriu a Sra. Truss, à sua custa. Um governo que aplicava políticas que não agradavam aos burgueses foi destituído sem contemplações.
Temos aqui uma prova muito clara de quem realmente manda. É o mercado que manda. O resto é puro engodo e tolice. Isso é perfeitamente natural. Mesmo nas condições mais favoráveis, a democracia burguesa sempre foi uma planta muito frágil.
Somente poderia existir ali onde a classe dominante fosse capaz de outorgar concessões à classe trabalhadora que, até certo ponto e durante um período limitado, serviriam para melhorar as condições das massas e, portanto, para embotar o fio da luta de classes e para evitar que ultrapassasse determinados limites.
As “regras do jogo” deviam ser aceitas por todos e as instituições existentes (o parlamento, os políticos, os partidos, o Estado, a polícia, o poder judicial, a “imprensa livre” etc.) gozavam de certa autoridade e respeito.
Durante muito tempo, nos países capitalistas avançados da Europa e da América do Norte, este modelo teve êxito no essencial. Mas agora as condições mudaram e todo o edifício da democracia burguesa formal está sendo posto à prova até sua destruição.
Para onde quer que se olhe, veem-se provas claras do agravamento das contradições de classe que estão desgarrando o tecido da sociedade. As tendências centrífugas se manifestam na esfera política com o naufrágio do centro político, que é a expressão mais clara da polarização social.
América Latina
Toda a América Latina parece um vulcão prestes a explodir. Suas economias estão sendo castigadas pela revalorização do dólar americano, que encarece o custo da dívida existente e torna mais oneroso o financiamento adicional.
Isso pode desembocar em uma crise generalizada da dívida como a crise dos anos 1980. Talvez a economia mais vulnerável entre as economias latino-americanas seja agora a Argentina. Mas vários países já se encontram à borda da inadimplência.
A América Latina foi a região do mundo mais afetada pelo impacto social e econômico da pandemia de Covid-19, que chegou depois de um período de estancamento econômico. Antes da pandemia vimos movimentos de massas em vários países que adquiriram proporções insurrecionais em alguns deles, particularmente no Equador e no Chile, em outubro e novembro de 2019.
O confinamento devido à pandemia cortou parcialmente esse processo, mas agora as questões fundamentais estão se reafirmando novamente. Vimos o movimento histórico da greve nacional na Colômbia em 2021 e depois outra greve nacional no Equador em 2022.
As massas voltaram às ruas em grande número no Haiti e em outros países. Se a classe trabalhadora não tomou o poder no Chile, no Equador e na Colômbia foi apenas pela ausência de uma direção revolucionária.
No período anterior, durante o auge das matérias-primas, Evo Morales, Correa, Néstor Kirchner e mesmo Chávez foram capazes até certo ponto de aplicar políticas sociais. Mas isso se acabou em 2014 com a desaceleração da China.
Agora, governos politicamente semelhantes enfrentarão a profunda crise econômica do capitalismo. Seu espaço de manobras será muito reduzido. Este também será o caso do governo de Lula no Brasil.
Brasil
O desemprego no Brasil se situa, oficialmente, em torno de 11 milhões de pessoas, mas o número real de desocupados é muito maior. As cifras mais recentes mostram que em torno de 30% da população vivem na pobreza, um fenômeno que aumentou significativamente durante a pandemia. E com uma inflação crescente – que ronda agora os 8% – esta situação está destinada a piorar.
A população se encontra extremamente polarizada, com uma pobreza crescente em um extremo e a concentração da riqueza nas mãos de uma pequena minoria de super-ricos no outro. Esta polarização se reflete na situação política. Nas eleições de 2022, as comunidades mais pobres do Norte e do Nordeste votaram massivamente por Lula, enquanto no Centro e no Sul, mais ricos, Bolsonaro se impôs.
No entanto, devido à posição abertamente colaboracionista de classe de Lula e à sua virada à direita durante a campanha eleitoral, Bolsonaro pôde captar uma camada significativa de eleitores da classe trabalhadora.
Já em 2018, foi a austeridade do governo Dilma que preparou a vitória de Bolsonaro, que pôde se apresentar demagogicamente como o candidato do “povo”. Este elemento esteve presente nas eleições de 2022, e também explica por que Bolsonaro registrou resultados muito maiores do que previram, no início, as pesquisas.
A campanha de Lula carecia de qualquer conteúdo que pudesse atrair seriamente os trabalhadores e os pobres sobre uma base de classe.
Os trabalhadores aproveitaram a ocasião para se livrarem do odiado Bolsonaro. Mas suas esperanças se verão frustradas pela dura realidade da crise do capitalismo no Brasil. Uma vez que tenham a experiência de Lula no poder em um período de grave crise capitalista, começarão a tirar a conclusão de que têm que começar a tomar as coisas em suas próprias mãos, com greves, protestos de rua e movimentos da juventude, como vimos em muitos outros países.
Fracasso dos governos “progressistas”
Os governos de “esquerda” e “progressistas” no poder revelaram cruamente suas limitações em um período de grave crise econômica do capitalismo. É o caso do governo de Fernández e Kirchner na Argentina, que assinou um acordo com o FMI que implica em severas medidas de austeridade.
No Chile, Boric continuou com a política de militarização das regiões mapuches e realizou uma política fiscal de cortes para reduzir o déficit. No México, López Obrador fez todo tipo de acordos com os EUA sobre migração, levou o exército às ruas para que se ocupasse da segurança etc.
No Peru, Castillo fez uma concessão após outra à classe dominante e às multinacionais. Isso só serviu para minar seu próprio apoio, sem apaziguar a classe dominante, que agora o afastou de uma vez por todas.
Todos esses governos tinham uma ideia comum, a do “antineoliberalismo”. Esta é a noção utópica de que se pode governar no interesse dos trabalhadores e dos camponeses dentro dos limites do capitalismo. Mas o “neoliberalismo” não é uma opção política, é simplesmente a expressão do beco sem saída do capitalismo atual em escala mundial.
Não é possível aplicar um conjunto diferente de políticas sem desafiar o domínio da classe dominante e do imperialismo. Essa é a debilidade fatal de todos esses governos supostamente progressistas. É esta contradição central que prepara o terreno para novas explosões sociais de massas na América Latina. Os levantamentos revolucionários estão na ordem do dia.
Cuba na encruzilhada
Cuba enfrenta a situação mais difícil desde a revolução de 1959. Do ponto de vista econômico, vimos os golpes combinados do endurecimento das sanções norte-americanas por parte de Trump, o impacto da Covid-19 no turismo, os altos preços da energia, somados ao bloqueio norte-americano de décadas, e a má gestão e ineficiência do governo burocrático.
A situação se agrava ainda mais pelas políticas pró-capitalistas da burocracia cubana que, desesperada por encontrar uma saída do estancamento, olha para a China e o Vietnã.
Este é o panorama no qual se podem desenvolver protestos antigovernamentais. Depois de 10 anos discutindo as reformas econômicas, a situação não melhorou, mas piorou.
Uma parte da população perdeu toda esperança, dezenas de milhares emigram e outros perderam toda confiança no governo e na burocracia. Nesse contexto se produziram protestos, os maiores desde 1994. No entanto, é necessário analisar o conteúdo destas manifestações.
Na ausência de uma direção revolucionária consciente, o compreensível descontentamento das massas pode apresentar um caldo de cultivo favorável a um apoio popular à contrarrevolução capitalista.
Por outro lado, há um setor importante da população que apoia a revolução, que tem um forte sentimento anti-imperialista e recusa a contrarrevolução. Entre esta camada também cresce a crítica contra a burocracia.
Nossa tarefa é explicar pacientemente aos elementos mais avançados entre eles que o único caminho para a defesa da revolução é a luta pela democracia operária e pelo internacionalismo proletário.
África
Grandes partes da África vivem agora um período de extrema turbulência e instabilidade. Dos 60 países que o FMI identifica como “em situação de sobre-endividamento ou em risco de se tornarem assim”, 50 deles estão em África. Cerca de 278 milhões de pessoas – aproximadamente um quinto da população total – passaram fome em 2021, um aumento de 50 milhões de pessoas desde 2019, segundo dados da ONU. Com base nas tendências atuais, prevê-se que este número aumente para 310 milhões até 2030.
Este é o panorama da instabilidade social e política geral e das turbulências que se espalharam por todo o continente. Produziram-se movimentos de massas, golpes de Estado, guerras e guerras civis em Mali, Niger, Burkina Faso, Chad, Sudão, Etiópia, Guiné-Bissau, Guiné e em toda a zona do Sahel.
Esses conflitos impulsionaram em parte a cifra recorde de 100 milhões de pessoas obrigadas a abandonar seus lares até 2022. Os conflitos na Ucrânia, em Myanmar, no Iêmen e na Síria também contribuíram para esta cifra. No entanto, o problema da migração forçada é particularmente grave na África subsaariana devido à crise do meio ambiente. Segundo um informe recente, dois terços dos 27 países que enfrentam “ameaças ecológicas catastróficas” se encontram nessa parte do mundo, e todos menos um dos 52 países da África subsaariana sofrem de “estresse hídrico extremo”. As pressões combinadas da crise ambiental, os conflitos e as migrações forçadas terão um efeito cada vez mais desestabilizador em todo o continente e mais além.
Nigéria
A Nigéria, a maior economia do continente, não está em absoluto ao abrigo dessa instabilidade. Apesar de seus imensos recursos petrolíferos e minerais, 70 milhões de pessoas continuam vivendo na extrema pobreza.
A corrupta e degenerada elite governante é completamente incapaz de resolver qualquer um dos problemas do capitalismo nigeriano. Os dois principais partidos do país, o governante All Progressives Congress Party e o principal partido da oposição, o PDP, estão totalmente desacreditados entre amplas camadas da sociedade.
Em 2020, o país se viu abalado pelo movimento juvenil de massas “End SARS”. Este maravilhoso movimento, em grande medida liderado pelos jovens, começou como uma reação ao assassinato de um jovem em Ughelli Delta nas mãos da Brigada Especial Antifurto (SARS, em suas siglas em inglês) da polícia nigeriana.
O movimento se espalhou como a pólvora a quase todos os estados do sul do país. Este movimento expressou a ira, a frustração e o descontentamento acumulados da juventude nigeriana, que foi a mais afetada pela crise do capitalismo.
Mas embora o movimento tenha acabado por se extinguir, nenhum dos problemas subjacentes que o originaram foi resolvido. A crise econômica mundial, o aumento da inflação e o fato de que milhões de pessoas a mais irão engrossar as fileiras dos pobres preparam o cenário para novas vagas de luta de classes em um nível ainda mais alto.
África do Sul
A África do Sul é o país chave do continente africano. Tem uma economia relativamente bem desenvolvida e uma infraestrutura avançada. É um dos maiores exportadores de minerais do mundo. Também conta com setores manufatureiros, financeiros, energéticos e de comunicações bem estabelecidos. Sobretudo, a partir de um ponto de vista marxista, tem um numeroso e poderoso proletariado com uma maravilhosa tradição de luta.
Todos os elementos necessários para a criação de um país próspero estão presentes. No entanto, a maioria da população vive na precariedade. O desemprego real ascende à arrepiante cifra de 10,2 milhões de pessoas e a metade de sua população vive na pobreza.
Durante décadas, o CNA [Congresso Nacional Africano] foi o pilar de estabilidade para o capitalismo sul-africano. Mas anos de escândalos de corrupção e de ataques à classe trabalhadora corroeram sua autoridade e o mergulharam na crise mais profunda de sua história.
Enquanto seu apoio ia diminuindo, caía internamente em intermináveis guerras de desgaste, que estão dividindo o partido entre as diversas facções burguesas, ao mesmo tempo que o separam cada vez mais das massas que costumavam vê-lo como seu.
O desenvolvimento particular da luta de classes e das forças políticas na África do Sul historicamente significa que a classe dominante não tem um segundo partido em que se apoiar.
À medida que as condições econômicas preparem um novo auge da luta de classes, à classe dominante se tornará mais difícil utilizar o peso dos dirigentes do CNA para frear o movimento.
Paquistão
O Paquistão enfrenta uma aguda crise financeira e corre o risco de inadimplência de sua dívida externa de 130 bilhões de dólares. As reservas de divisas caíram a um dos níveis mais baixos da história. A inflação está em seu nível mais alto desde a independência. A inflação dos alimentos e do combustível supera os 45%.
E ainda temos o impacto das inundações mais catastróficas da história da nação. Milhões de pessoas vivem uma situação dramática de fome, de falta de água potável, falta de moradias e em pobreza abjeta.
O primeiro-ministro Sharif recorreu ao FMI para obter pacotes de resgate, mas os graves danos infligidos pelas inundações generalizadas fazem com que sequer os empréstimos do FMI sejam suficientes para tapar os buracos das finanças paquistanesas.
Enquanto isso, o regime está dividido e em crise, com facções rivais que lutam entre si como gatos em um saco, enquanto o poder real continua firmemente nas mãos dos generais.
O governo atual, liderado por Shabaz Sharif, está preocupado principalmente por eliminar o partido de Imran Khan das assembleias provinciais e por reforçar seu próprio controle do poder.
A desesperada tentativa de Khan de restabelecer sua posição foi bloqueada pelos militares, que tentaram eliminá-lo do cenário pelo simples expediente de um assassinato (que fracassou).
Isto provocou a desconfiança generalizada da maioria da população para com todos os partidos, aos que veem, corretamente, como outros tantos gangsteres. Tendo em conta todos esses fatores, não se pode descartar em absoluto uma explosão de protestos em massa, como os de Sri Lanka em 2022.
Comentando a catastrófica situação atual, o próprio Khan disse: “Durante seis meses testemunhei como uma revolução se apoderava do país… [a] única pergunta é se será uma revolução suave através das urnas ou uma revolução destrutiva através do derramamento de sangue”.
Suas palavras podem resultar mais proféticas do que ele próprio acredita.
A razão torna-se irracional
Quando a maioria das pessoas contempla a situação atual, chega à conclusão de que o mundo enlouqueceu. As massas sentem em seu coração e em sua alma que algo deu errado, que algo não funciona, que “o tempo está desconjuntado”, para citar Hamlet de Shakespeare. Mas não sabem do que se trata.
O que querem dizer com isto é que não podem encontrar nenhuma explicação racional para o que está ocorrendo. Em certo sentido, quando atribuem tudo a uma espécie de loucura coletiva, não se equivocam. Mas é a loucura que está incorporada no DNA do sistema capitalista. Nas palavras de Hegel, a Razão torna-se irracional.
Mas, em outro sentido, mais profundo, estão equivocados. Creem que o que está acontecendo não é possível de entender e se desesperam.
Mas, como o universo em geral, todos os processos que observamos têm uma explicação racional e podem ser compreendidos. Para adquirir tal compreensão, é necessário possuir um método adequado. E este só pode ser o método do pensamento dialético: o método do marxismo.
Conclusões
O que aqui se descreveu não são mais que as manifestações externas de uma crise existencial do capitalismo.
O sistema capitalista já não é mais capaz de utilizar todas as forças produtivas – incluída a força de trabalho da classe trabalhadora – que criou. Isto é um indício dos limites a que chegou o sistema capitalista.
Isto não significa que o sistema capitalista esteja prestes a ser derrubado. Lenin explicou que os capitalistas sempre encontrarão uma saída mesmo para a crise mais profunda. A questão é: a que preço para a humanidade e para a classe trabalhadora em particular?
Uma profunda recessão faria com que o desemprego alcançasse proporções sem precedentes. Isso teria as mais profundas implicações revolucionárias. Tal coisa já é compreendida pelos estrategistas do Capital.
No final de setembro de 2022, o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, advertiu aos líderes internacionais de um iminente “inverno de descontentamento global” em um mundo acossado por crises múltiplas, desde a guerra na Ucrânia ao aquecimento climático.
“A confiança desmorona, as desigualdades explodem, nosso planeta arde”, disse Guterres ao inaugurar a Assembleia Geral anual. Foi uma avaliação justa da situação mundial. Mas não foi o único que chegou a uma perspectiva sombria. A consultora de riscos Verisk Maplecroft escreveu em seu informe de 2 de setembro de 2022:
“O mundo enfrenta um aumento sem precedentes dos distúrbios civis à medida que os governos de todo tipo lidam com os impactos da inflação nos preços dos alimentos básicos e da energia.”
“Para os governos incapazes de gastar para sair da crise, é provável que a repressão seja a principal resposta aos protestos antigovernamentais”, lê-se no informe de Verisk Maplecroft.
“Mas a repressão implica seus próprios riscos, pois deixa as populações descontentes com menos mecanismos para canalizar sua dissidência em um momento de crescente frustração com o status quo. Nos países onde há poucos mecanismos eficazes para canalizar o descontentamento popular, como meios de comunicação livres, sindicatos que funcionem e tribunais independentes, é provável que se derrubem os limites para que a população saia às ruas.”
São impossíveis as reformas?
Objetivamente falando, o sistema capitalista já não pode mais se permitir garantir as reformas que a classe trabalhadora conquistou nas décadas que se seguiram à II Guerra Mundial.
A burguesia enfrenta agora um problema insolúvel: como conseguir que a classe trabalhadora aceite a liquidação dessas conquistas? Isso está se tornando tão difícil que a classe dominante se vê obrigada a continuar sustentando um sistema que é insustentável.
Mas, é correto dizer, como alguns o fazem, que as reformas agora são impossíveis? Não. Isso é incorreto. Se se ver ameaçada a perder tudo, a classe dominante não duvidará em conceder reformas, inclusive reformas que “não pode se permitir”.
Durante o período do pós-guerra, a burguesia dos países capitalistas avançados pôde se permitir fazer concessões porque havia acumulado uma camada de gordura. Poderia recorrer a essas reservas em tempos de crise, quando a sobrevivência do sistema estiver em risco.
E mesmo que isso resultasse insuficiente, podem recorrer ao endividamento, criando dívidas massivas, que podem recair sobre os ombros das gerações futuras para que as paguem. E foi isso justamente o que fizeram durante a pandemia, porque estavam aterrorizados com as possíveis consequências sociais e políticas de um colapso econômico geral.
Assim, recorreram aos métodos keynesianos, que os economistas haviam anteriormente descartado na lata de lixo da história. Gastaram somas de dinheiro impressionantes durante a pandemia. Mas ficaram com enormes dívidas que, mais cedo ou mais tarde, devem ser pagas. Esse continua sendo o caso.
O que se pode dizer é que a burguesia não pode se permitir fazer qualquer reforma significativa e duradoura. O que dão com uma mão, retiram com a outra. A inflação anula rapidamente qualquer aumento salarial. E a acumulação da dívida não faz mais que acumular contradições ainda maiores para o futuro.
A inflação provocará uma vaga de greves e a intensificação da luta econômica.
Pelo contrário, uma profunda recessão levaria a uma redução da atividade grevista, mas a ameaça de fechamento de fábricas pode levar à sua ocupação e ocorreria uma virada para o front político.
Não se pode descartar que no final, ante a oposição das massas à austeridade, os burgueses se vejam obrigados a recuar, optando por um ataque indireto.
Tanto a inflação quanto a deflação são ataques contra a classe trabalhadora. A diferença é que a inflação é um ataque indireto, enquanto a deflação (desemprego) é um ataque direto. Do ponto de vista dos trabalhadores, trata-se de escolher entre uma morte lenta na fogueira ou uma morte rápida na forca. Nenhuma das duas é aceitável. E ambas conduzirão a uma explosão da luta de classes.
Desigualdade
Em um recente informe, o Banco Mundial previu que, a menos que se produza uma forte recuperação da economia mundial, calcula-se que 574 milhões de pessoas, ou em torno de 7% da população mundial, continuariam vivendo com apenas 2,15 dólares ao dia em 2030, a maioria na África.
Em troca, os ricos estão cada vez mais obscenamente ricos. Em um recente artigo da Bloomberg se falava das perspectivas de um novo fenômeno chamado de “bebês do fundo fiduciário do bilhão de dólares”, que seguramente aparecerá na próxima década. Trata-se dos filhos dos super-ricos que serão mais ricos que alguns países pequenos desde o seu nascimento.
“Como se pode falar de igualdade de oportunidades”, assinalava o artigo, “quando algumas pessoas herdam fortunas que superam as dotações de universidades inteiras? E como se pode elogiar a ética do trabalho quando temos uma classe ociosa permanente em constante expansão?”
A realidade é que Marx descreveu em O Capital:
“A acumulação de riqueza em um polo é, ao mesmo tempo, pois, acumulação de miséria, de trabalho agonizante, de escravidão, ignorância, embrutecimento e degradação moral no polo oposto, ou seja, do lado da classe que produz seu próprio produto na forma de capital.”
Os obscenos superlucros anunciados pela Shell e outras grandes empresas de energia, precisamente em um momento em que milhões de pessoas lutam para sobreviver, provocam sentimentos de profunda e duradoura injustiça e amargura.
As massas tomam nota dessas flagrantes contradições, que avivam o fogo ardente do ressentimento e do ódio para com os ricos parasitas, o que, por sua vez, alimentará a luta de classes. Toda a situação está grávida de implicações revolucionárias. Já podemos ver provas claras disso.
Sri Lanka
Se se quiser ver como é uma revolução, temos apenas que olhar a insurreição popular espontânea no Sri Lanka. Vimos aqui o colossal poder potencial das massas. E golpeou sem aviso prévio, como um raio caído de um céu azul.
Se alguém duvidava da capacidade das massas para fazer uma revolução, esta foi uma rotunda resposta. Os acontecimentos no Sri Lanka demonstraram que, quando as massas perdem o medo, não há repressão que possa detê-las.
Sem liderança, sem organização e sem um programa claro, as massas tomaram as ruas e derrubaram o governo com a facilidade com que um homem esmaga um mosquito. Mas o Sri Lanka também nos mostra algo mais.
O poder estava nas ruas, esperando que alguém o recolhesse. Teria bastado que os líderes dos protestos dissessem: “Agora temos o poder. Somos o governo”.
Mas essas palavras nunca foram ditas. As massas abandonaram em silêncio o palácio presidencial e foi permitido o regresso do antigo poder. Os frutos da vitória foram devolvidos aos velhos opressores e aos charlatões parlamentares.
O poder estava nas mãos das massas, mas se permitiu que escapasse de suas mãos. É uma verdade desagradável. Mas é a verdade.
A conclusão é ineludível. Sem uma direção correta, a revolução só pode triunfar com grande dificuldade e, na maioria das vezes, não pode absolutamente triunfar.
Irã
A inspiradora revolta revolucionária do Irã foi outra surpreendente confirmação do anteriormente dito. Produziu-se depois da morte sob custódia policial de Masha Amini, uma mulher curda de 22 anos de idade, detida pela odiada polícia da moralidade supostamente por “não portar corretamente o hijab”.
Mas este não foi um caso isolado. Houve muitas mortes deste tipo no Irã. Nesta ocasião, no entanto, alcançou um ponto crítico no qual a quantidade se transforma em qualidade.
A explosão que se seguiu espalhou-se imediatamente a todas as grandes cidades, chegando inclusive a pequenos povoados e aldeias que nunca haviam presenciado qualquer manifestação. Os manifestantes eram em sua maioria jovens e em grande parte garotas, não só das universidades como também dos cursos secundários.
As forças de segurança responderam com repressão brutal, cada vez mais dura à medida que o movimento crescia. Nos numerosos e violentos enfrentamentos entre a juventude e as forças da repressão, morreram centenas de pessoas e milhares foram detidas.
Em resposta, as greves estudantis se espalharam a mais de cem universidades e a muitas escolas. O aspecto mais surpreendente desses protestos foi a total falta de medo por parte das pessoas mais jovens, particularmente das garotas mais jovens.
As alunas do Irã começaram a agitar seus hijabs no ar e a gritar contra as autoridades clericais. Que inspiração! Seus cânticos tinham frequentemente um conteúdo abertamente revolucionário, pedindo a derrubada do regime e “Morte ao Líder Supremo!”
A reação brutal do regime não só radicalizou a juventude, como também às organizações dos trabalhadores, e muitas se declararam em greve. Esta lista inclui os caminhoneiros, o Conselho para a Organização de Protestos dos Trabalhadores de Contratos Petrolíferos, os trabalhadores de Haft Tappeh, os trabalhadores da empresa de ônibus de Teerã, o Comitê Coordenador dos Professores, entre outros.
Criaram-se comitês revolucionários da juventude em todo o país, junto aos apelos à greve geral, que foram apoiados pelas organizações citadas anteriormente, bem como pela maioria dos sindicatos independentes. Houve uma série de vagas grevistas dos pequenos comerciantes, os Bazaaris, que, no passado foram um dos pilares mais sólidos do regime. Mas os trabalhadores industriais ainda não se moveram de forma decisiva e este é o calcanhar de Aquiles do movimento.
Tudo isto é muito semelhante aos movimentos que se produziram antes da convulsão revolucionária de 1979. Mas não está claro se o movimento atual passará a uma etapa superior.
Os trabalhadores mostram grande simpatia e apoio à rebelião da juventude. Mas se o levantamento permanecer isolado na juventude, não poderá ter êxito.
Um movimento como este não pode permanecer como está durante muito mais tempo sem alcançar o ponto crítico em que, ou logrará derrubar o regime ou sofrerá uma derrota. Como no Sri Lanka, a questão mais decisiva é o fator subjetivo: a direção revolucionária.
O fator subjetivo
A intensificação da luta de classes deriva desta análise com a mesma inevitabilidade que a noite segue o dia. Mas o resultado da luta de classes nunca pode ser prevista de antemão, porque se trata de uma luta de forças vivas.
Como explicamos anteriormente, existem muitas analogias entre a guerra entre as classes e a guerra entre as nações. Em ambos os casos intervêm fatores objetivos e subjetivos. E o fator subjetivo costuma desempenhar um papel decisivo.
Referimo-nos a coisas como o moral e o espírito de luta das tropas e, sobretudo, a qualidade da direção. O período atual se caracterizará pela intensificação das lutas de classes e pelos levantamentos de massas. Mas o que falta é uma direção revolucionária.
O fator subjetivo é tão importante nas revoluções como em qualquer guerra. Quantas vezes na história uma grande força de soldados decididos e valentes foi levada à derrota por oficiais covardes e incompetentes quando enfrentada a uma força muito menor de soldados profissionais disciplinados e treinados, dirigidos por oficiais audazes e eficientes?
É este o fator ausente ou que é extremamente débil na atualidade. As forças do marxismo genuíno retrocederam por décadas devido a fatores históricos que não necessitamos explicar aqui. E a degeneração dos dirigentes reformistas e ex-stalinistas alcançou um ponto tão baixo que teria parecido impensável no passado.
Portanto, embora possamos prever com absoluta confiança que os trabalhadores se levantarão em revolta em um país após outro, não podemos expressar o mesmo grau de confiança com relação ao resultado dessas lutas.
O fracasso da esquerda
Tomemos alguns exemplos, começando por Sanders nos EUA e Corbyn na Grã-Bretanha. Estavam confusos e obviamente tinham muitas limitações. Isso ficou muito claro para os marxistas desde o início. Mas o que está claro para nós não está necessariamente claro para as massas.
No entanto, do nosso ponto de vista, ambos tiveram um grande e sintomático significado. Revelaram algo muito importante. Ambos agiram como um catalizador que trouxe à superfície um profundo estado de ânimo de descontentamento com o establishment político e com a atual sociedade, que existia nas massas, mas que permanecia apenas latente porque carecia de um ponto de referência.
Os discursos de Sanders e Corbyn, que soavam radicais, agiram como um poderoso ímã que permitiu aos incoerentes e embrionários instintos revolucionários se expressarem de forma organizada. Este é um fato muito importante e que tem importantes implicações para o futuro.
O questionamento geral do sistema capitalista saiu à superfície e a palavra socialismo voltou à ordem do dia – algo muito positivo. No entanto, no final das contas, apenas se tratava de figuras acidentais que tropeçaram em suas próprias limitações e foram destruídas por elas. Como resultado, os movimentos de massas que surgiram no seu entorno agora estão mortos.
Poderia se dizer o mesmo de Hugo Chávez, embora tenha ido mais longe que eles e conseguiu muito mais. Se iria evoluir mais se não tivesse morrido prematuramente é uma questão que nunca poderá se responder. Mas também no seu caso, a falta de claridade política desempenhou um papel fatal, como revelaram claramente os acontecimentos posteriores na Venezuela.
Os casos do Podemos na Espanha e Syriza na Grécia proporcionam exemplos ainda mais claros do desastroso papel da chamada esquerda na política. Quanto mais esses líderes se aproximam do poder, mais tímidos, covardes e traiçoeiros se tornam.
Sua retórica radical apenas serve para encobrir o fato de que na realidade nunca questionam a existência do sistema capitalista e, portanto, quando se encontram no governo veem-se obrigados a operar na base de suas leis.
O resultado inevitável é a traição e a desmoralização de suas bases. A conclusão é evidente. Com os atuais líderes, haverá uma derrota depois de outra.
Mas isso é apenas uma das faces do processo. Pouco a pouco, começando pelas camadas mais avançadas, em particular a juventude, os trabalhadores aprenderão de suas derrotas. Começarão a compreender o verdadeiro papel do reformismo de esquerda e se esforçarão por superá-lo.
Em muitos países vimos o surgimento espontâneo de grupos de jovens que autodenominam comunistas. Trata-se de uma evolução muito significativa à qual devemos prestar muita atenção.
Semelhanças e diferenças
As condições econômicas do próximo período serão muito mais parecidas às dos anos 1930 do que às que se seguiram à II Guerra Mundial. Mas há diferenças importantes, principalmente porque a equação social mudou.
As reservas sociais da reação são muito mais débeis agora do que então, e o peso específico da classe trabalhadora é muito maior. O campesinato desapareceu em grande medida nos países capitalistas avançados, enquanto amplas camadas da antiga classe média (profissionais liberais, trabalhadores de colarinho branco, professores, professores universitários, funcionários públicos, médicos e enfermeiras) se aproximaram do proletariado e se sindicalizaram.
Os estudantes, que no passado proporcionaram as tropas de choque ao fascismo, giraram bruscamente à esquerda e estão abertos às ideias revolucionárias. Sobretudo, a classe trabalhadora, na maioria dos países, não sofreu derrotas graves há décadas. Suas forças estão praticamente intactas.
Ademais, a classe dominante queimou os dedos com o fascismo no passado e não é provável que siga esse caminho facilmente. O que vemos é uma crescente polarização política, para a direita, mas também para a esquerda. Há muitos demagogos de direita e inclusive alguns chegam ao poder. No entanto, isso não é o mesmo que um regime fascista, que se baseia na mobilização de massas da pequena burguesia enfurecida, utilizada como aríete para destruir as organizações dos trabalhadores.
Isto significa que a classe dominante enfrentará sérias dificuldades quando tentar fazer retroceder as condições de vida e eliminar as conquistas do passado. A profundidade da crise significa que terão que tentar cortar e cortar até o osso. Mas isso provocará explosões em um país após o outro.
Mulheres e jovens
Deste caos está surgindo um novo nível de consciência. Há um sentimento instintivo entre as pessoas comuns e correntes, particularmente entre os jovens e as mulheres, de que “algo vai mal na sociedade”, de que “vivemos em um mundo injusto”.
Até certo ponto, é o caso entre os trabalhadores em geral. Foi exercida uma pressão impiedosa sobre os trabalhadores para que aumentem a quantidade produzida e para reduzam o tempo necessário para produzi-la. Os salários sempre estiveram na zaga dos aumentos da produtividade. Nos EUA, os salários reais não haviam aumentado até há pouco durante um período de cerca de 40 anos. E como o retorno da inflação, os salários reais nos EUA estão novamente em declínio.
Mas esta consciência é mais evidente, e mais avançada, no caso dos jovens e das mulheres, que são os que devem suportar a pior parte do peso da crise do capitalismo. São as camadas mais exploradas e oprimidas da classe.
De um país a outro produziram-se grandes mobilizações de mulheres contra a proibição do aborto, desde os EUA até as católicas Polônia e Irlanda. Argentina e Chile também viram movimentos de massas pelo direito ao aborto. No México, onde o tratamento desumano e bárbaro às mulheres alcançou proporções epidêmicas, também houve movimentos massivos de protesto contra a violência em relação às mulheres. Este também foi um fator de radicalização política no Estado espanhol.
Neste contexto, as palavras de ordem democráticas mais elementares podem adquirir rapidamente um conteúdo abertamente revolucionário.
A expressão mais clara da revolta das mulheres se produziu no Irã, onde o movimento de um enorme número de mulheres jovens passou rapidamente dos protestos contra o uso obrigatório do hijab à exigência da derrubada revolucionária de um regime monstruosamente repressivo.
Isso indica que está se produzindo o início de um nível de consciência totalmente novo. Nestas circunstâncias, existe uma profunda sensibilidade entre estas camadas ante qualquer manifestação de injustiça. Isto inclui a questão do racismo e da brutalidade policial, como vimos no levantamento de Black Lives Matter.
Em todos os países, a juventude está à frente da luta. Não por casualidade. Os acontecimentos demonstraram que um número cada vez maior de jovens está disposto a sair às ruas para lutar contra o capitalismo.
Mais uma vez sobre a consciência
Seria um erro fundamental supor que a maioria dos trabalhadores vê as coisas da mesma maneira que nós. Ver todo o processo histórico é uma coisa, mas como as massas entendem esse processo é outra, completamente diferente.
A consciência da classe trabalhadora é poderosamente influenciada pelas mudanças na situação objetiva. Trotsky explicou isso brilhantemente em um importante artigo intitulado “O terceiro período dos erros da Comintern”.
Para alguns sectários, esta questão simplesmente não se coloca. Para eles, a classe trabalhadora sempre está disposta a se rebelar. Isso, para eles, é uma constante que nada tem a ver com as mudanças nas condições objetivas. Mas, absolutamente, não é assim.
Trotsky criticou duramente a ideia colocada pelos estalinistas no tristemente célebre “Terceiro Período”, e que ainda hoje é repetida por alguns ultra-esquerdistas insensatos, de que as massas sempre estão dispostas a se rebelar e que são apenas os aparatos burocráticos conservadores do movimento dos trabalhadores que impedem que isso aconteça.
Trotsky despreza esta ideia e vale a pena citar extensamente suas palavras:
“A radicalização das massas aparece descrita como um processo contínuo: as massas são hoje mais revolucionárias do que ontem; amanhã serão mais revolucionárias do que hoje. Semelhante mecanicismo não corresponde ao verdadeiro processo de desenvolvimento do proletariado nem da sociedade capitalista em seu conjunto…
“Os partidos socialdemocratas, sobretudo no período anterior à guerra, vislumbravam o futuro como um contínuo incremento de votos socialdemocratas, que aumentariam sistematicamente até o umbral da tomada do poder. Para um pensador vulgar ou para um pseudo-revolucionário, esta perspectiva mantém toda a sua vigência; só que, em vez de falar de um contínuo incremento dos votos, fala da radicalização contínua das massas. Esta concepção mecanicista se apoia também no programa Stalin-Bukharin da Internacional Comunista.
“É evidente que, do ponto de vista de nossa época como um todo, o desenvolvimento do proletariado avança na direção da revolução. Mas não se trata de uma progressão ininterrupta, como também não o é o processo objetivo de aguçamento das contradições capitalistas. Os reformistas só veem a ascensão do capitalismo. Os ‘revolucionários’ formais veem apenas os seus pontos baixos. Mas o marxista contempla o processo em seu conjunto, com todos os seus altos e baixos conjunturais, sem perder de vista por um só momento sua dinâmica principal: as catástrofes bélicas, as explosões revolucionárias.
“O estado de ânimo político do proletariado não muda automaticamente em uma só e mesma direção. Os ascensos na luta de classes são acompanhadas por descensos, as marés cheias por vazantes, dependendo de complicadas combinações de condições materiais e ideológicas, nacionais e internacionais. Uma ascensão das massas, se não for utilizada no momento certo, ou mal utilizada, reverte-se e reflui a um período de declínio, do qual as massas se recuperam mais rápido ou mais devagar, sob a influência de novos estímulos objetivos.
“A nossa época é uma época que se caracteriza por flutuações periódicas extremamente bruscas, por situações que mudam de forma muito abrupta, e isso impõe à liderança responsabilidades incomuns em matéria de uma orientação correta.
“A atividade propriamente dita das massas se manifesta de diferentes formas, segundo as circunstâncias. Em algumas épocas pode-se observar as massas inteiramente empenhadas na luta econômica, demonstrando muito pouco interesse pelas questões políticas. Ou então, depois de uma série de derrotas na luta econômica, as massas podem dirigir abruptamente sua atenção à política. Nesse caso – tal como o determinam a situação concreta e a experiência anterior das massas –, sua atividade política pode se manifestar na luta exclusivamente parlamentar ou na luta extraparlamentar” (Leon Trotsky, Escritos, 1930)
Estas linhas são extremamente importantes porque mostram que, a partir de afirmações gerais sobre a época, é impossível deduzir a etapa em que se encontra a consciência do proletariado ou o movimento concreto da classe. Vemos aqui com muita clareza o método de Trotsky, que não parte de fórmulas abstratas (“a nova época), mas de fatos concretos.
Todo tipo de coisas se combina para dar forma à consciência das massas nos países capitalistas avançados, não só a situação atual ou mesmo a situação da última década, mas o tipo de condições que foram criadas durante um período de décadas depois da II Guerra Mundial. Isto é particularmente verdadeiro no caso da geração de idade mais avançada. A mentalidade dos jovens é outra questão. Esse é um debate aparte.
A consciência dos trabalhadores na Europa e nos EUA foi modelada durante décadas pelo que foi pelo menos um período de relativa prosperidade. Em 15 de novembro de 1857, Engels se queixava em uma carta a Marx:
“As massas devem ter ficado extremamente letárgicas depois de uma prosperidade tão longa”. E acrescentou: “A pressão crônica é necessária por um tempo para aquecer as populações. O proletariado atacará melhor então, com uma maior consciência de sua causa e com mais unidade…”
A classe trabalhadora em geral possui uma enorme capacidade de aguentar. Tolera mesmo as más condições durante bastante tempo antes de que se tornem absolutamente intoleráveis. Necessita-se de tempo para que a quantidade se converta em qualidade. E a consciência, que é inerentemente conservadora, demora um tempo para se pôr em dia com a realidade cambiante.
Durante todo um período, a inflação foi baixa, o que significava que, embora a taxa de exploração aumentasse, os salários dos trabalhadores podiam comprar mais do que antes. Os trabalhadores podiam comprar carros, grandes televisores e outros bens, cujo preço caía em decorrência dos avanços tecnológicos e do aumento da produtividade do trabalho.
As taxas baixas de juros também produziram uma expansão sem precedentes do crédito. Milhões de pessoas puderam comprar coisas que, na realidade, não podiam se permitir, mas só se endividando cada vez mais.
Vendo como as coisas estão tão mal agora, e olhando para trás, é muito fácil ter uma falsa percepção de como as coisas estavam bem nos velhos tempos. Mas tudo isso está ameaçado agora. E isso é o que está começando a produzir uma mudança fundamental na consciência.
O processo molecular da revolução
A questão da inflação é um elemento fundamental para mudar a atitude da geração de mais idade. Se bem seja correto que a juventude seja a camada mais radicalizada e mais aberta às ideias revolucionárias, está se desenvolvendo um estado de ânimo cada vez mais ansioso entre todos os tipos de pessoas. As pessoas que até há pouco pensavam que as coisas estavam indo bem e que a vida era estável e previsível, agora estão tomando um bom susto.
Tudo está se convertendo em seu oposto. As condições de vida pioraram repentinamente e isso está mudando a perspectiva das pessoas. De repente, todos estão se queixando. Não conseguem chegar ao fim do mês.
Anteriormente, no Ocidente, a patronal e os líderes sindicais chegavam a acordos de aumentos salariais anuais de 1% ou 2%, acompanhando a inflação, e os impunham aos trabalhadores. Hoje em dia, esses acordos suporiam importantes reduções dos salários reais. Cada vez mais trabalhadores têm claro que, para manter seu nível de vida, terão que se organizar e lutar. Por todos os lados observa-se um notável aumento das greves que, frequentemente, terminam com a vitória dos trabalhadores.
Na Grã-Bretanha, centenas de milhares de trabalhadores de muitos setores se declararam em greve; na Grécia, na Bélgica e na França, vimos greves gerais; nos EUA, novos estratos de trabalhadores, como os trabalhadores de Starbucks, Apple e Amazon, estão lutando pela sindicalização e empreenderam ações de greve, e também tivemos o conflito dos ferroviários. Por último, também vimos no Canadá como os ataques de Doug Ford contra os trabalhadores da educação de Ontário levaram a uma greve ilegal e aos líderes sindicais a ameaçar com uma greve geral que derrotou a legislação de volta ao trabalho, algo inédito na história do Canadá. Em todos os lugares, a classe trabalhadora está começando a despertar sob o impacto da crise do custo de vida.
A inflação também está produzindo um enorme impacto nos pequenos negócios, muitos dos quais se veem prestes a quebrar, e entre as pessoas mais idosas, que veem o valor de suas pensões entrar em erosão a cada dia. E já houve manifestações massivas de pensionistas na Espanha. E grande parte da volatilidade social que vemos em países como a Itália é um fenômeno estreitamente relacionado.
Há um sentimento geral de insegurança e de medo com relação ao futuro que exacerba enormemente a instabilidade política e social. Isso supõe grandes riscos à classe capitalista, o que explica porque se vê obrigada a adotar medidas muito arriscadas em uma tentativa de deter os desenvolvimentos revolucionários.
Quando pessoas que antes não mostravam qualquer interesse pela política de repente começam a falar de política nas paradas de ônibus ou nos supermercados, é o início do que Trotsky chamava de processo molecular da revolução.
É verdade que carecem da análise elaborada e científica que os marxistas possuem. Sua compreensão da política é algo elementar, tosco e subdesenvolvido. Mas está guiada por um sentimento elementar de injustiça, um sentimento de que algo não está funcionando na sociedade e de que algo terá que mudar.
É uma consciência de classe elementar, que é o primeiro embrião de uma consciência revolucionária. O elemento mais importante desta mudança é o econômico. Mas não é o único fator.
O desastre climático
O sistema capitalista está conduzindo o mundo a uma catástrofe climática que está se agigantando na mente de muitas pessoas. Para alguns, trata-se de um problema existencial. Para nações inteiras, o futuro está em risco.
De um lado, está o problema da seca e do esgotamento dos rios, que está produzindo um efeito devastador nas colheitas e na produção de alimentos e, portanto, no aumento da inflação.
De outro, há tempestades devastadoras, furacões e inundações terríveis, como vimos em países como Bangladesh e Paquistão, onde 33 milhões de pessoas se viram diretamente afetadas.
Em países como a Somália, morreram mais de 3 milhões de animais, o que destruiu os meios de subsistência de milhões de pessoas. No Brasil, a destruição criminosa da Amazônia alcançou níveis recordes. Entre janeiro e junho de 2022, foram cortados na região uns 3.998 km2. No mesmo período, foram destruídos 3.088 km2 da selva tropical.
Também nos países capitalistas avançados há provas evidentes das condições meteorológicas mais extremas. Muitas pessoas vivem com o constante temor de que sua casa se inunde ou seja destruída.
Nas grandes cidades, o ar está envenenado com gases tóxicos, os rios estão entupidos por resíduos químicos de fábricas, granjas e resíduos humanos, e os oceanos se contaminam com toneladas intermináveis de plásticos e outros lixos.
A exploração mineira dos fundos marinhos, antigamente confinada à ficção científica, está se convertendo em uma realidade, com previsíveis consequências catastróficas para o equilíbrio ecológico do planeta e da biodiversidade. E em todos os países o ritmo de extinção de espécies vegetais e animais alcançou níveis alarmantes.
Tudo isso mexe com a consciência de milhões de pessoas, particularmente dos jovens. Mas a indignação moral e as manifestações raivosas são totalmente insuficientes porque sem um diagnóstico correto é impossível oferecer qualquer solução.
Os burgueses chegaram tardiamente à conclusão de que algo precisa ser feito. Mas, sob o capitalismo, tudo está subordinado à motivação do lucro e aos interesses dos monopólios. Por exemplo, estão disfarçando com retórica verde políticas destinadas a proteger a indústria americana ou europeia contra produtos provenientes de países com legislação ambiental “menos rigorosa” (a China em primeiro lugar).
Fundamentalmente, todas as suas políticas tentam descarregar os custos da crise ambiental sobre a classe trabalhadora e os setores mais pobres da sociedade. Enquanto as multinacionais da energia continuam a obter lucros recordes, as famílias da classe trabalhadora serão forçadas a pagar mais caro pelos combustíveis e terão que pagar para substituir seus carros e seus sistemas de aquecimento. Ao mesmo tempo, têm de pagar subsídios generosos às grandes empresas através de impostos mais elevados.
Como resultado, aos olhos de uma seção da classe trabalhadora, a “luta contra as alterações climáticas” poderá tornar-se cada vez mais associada à austeridade capitalista e à crise do custo de vida. Isto poderia fazer o jogo das forças reacionárias que negam a existência do aquecimento global antropogênico e promovem os combustíveis fósseis. Para combater isto, é necessária uma política revolucionária.
A catástrofe climática é um resultado claro da loucura da economia de mercado. Há que se destacar que a existência do capitalismo representa hoje uma ameaça clara e presente para o futuro da civilização humana.
Se o movimento ecologista se limitar a uma política de gestos vazios, estará condenado à impotência. A única forma de alcançar seus objetivos é pela adoção de uma posição revolucionária clara e inequivocamente anticapitalista. Devemos nos esforçar para nos aproximar dos melhores elementos e convencê-los disso.
O papel dos marxistas
Principalmente por conta da debilidade do fator subjetivo, a crise atual não terá uma solução rápida. Esse atraso é vantajoso para os marxistas, porque nos dará o tempo que precisamos para reforçar nossas forças e construir uma base sólida na classe trabalhadora e no movimento dos trabalhadores.
A crise se prolongará no tempo e haverá muitos fluxos e refluxos da luta de classes. Os momentos de euforia serão seguidos por outros de cansaço, apatia e mesmo de desespero. Mas em todos os casos, a classe sempre se levantará disposta a renovar a luta, não por razões mágicas, mas simplesmente porque não tem outra alternativa além de lutar.
A classe trabalhadora em seu conjunto não aprende dos livros, mas da experiência. Mas aprende tanto das derrotas e dos reveses quanto das vitórias. Agora mesmo está aprendendo sobre as limitações do reformismo de esquerda. Engels disse uma vez que os exércitos derrotados aprendem bem suas lições. Ao que Lenin comentou: “Essas esplêndidas palavras se aplicam em muito maior medida aos exércitos revolucionários”.
Mas se trata de um aprendizado muito longo e serão necessárias muitas experiências futuras antes que a classe elimine finalmente suas ilusões no reformismo (particularmente em seu disfarce de “esquerda”) e chegue a compreender a necessidade de uma revolução social total.
Nosso papel não é o de dar lições à classe trabalhadora desde a margem, mas o de participar ativamente na luta de classes. É tarefa dos marxistas acompanhar este processo junto à classe trabalhadora, lutar ombro a ombro com os trabalhadores e ganhar assim seu respeito e confiança.
No entanto, se fosse este o único conteúdo de nossa atividade, seríamos meros ativistas e não teríamos razão de existir como uma tendência separada no movimento dos trabalhadores.
Nosso papel mais importante é ajudar os trabalhadores e a juventude, começando pela camada mais avançada, a tirar as conclusões necessárias de suas experiências e a demonstrar na prática a superioridade das ideias marxistas.
Isso levará algum tempo e devemos aprender as virtudes da paciência revolucionária. Não há caminho fácil. A busca de atalhos acaba invariavelmente em graves desvios, sejam estes do tipo oportunista ou ultra-esquerdista.
Recordemos que em 1917, em plena revolução, Lenin lançou a palavra de ordem: Explicar pacientemente! Temos as ideias corretas, que são as únicas que podem assinalar o caminho da vitória na luta de classes.
Não se pode prever o ritmo real dos acontecimentos. Mas o potencial para uma intensificação explosiva da luta de classes existe em muitos países. Não podemos dizer onde começará. Pode ser na França ou na Itália, no Irã, no Brasil, na Indonésia, no Paquistão, na Argentina ou mesmo na China.
Nós o veremos. Mas o principal é que se abrirão novas possibilidades para a tendência marxista sempre que sejamos capazes de aproveitá-las. E isso depende de uma só coisa: de nossa capacidade para fazer crescer nossas forças até o ponto crítico em que sejamos fisicamente capazes de intervir.
Isso, por sua vez, depende do trabalho que fizermos agora. Isso é o que temos de fazer com que cada camarada compreenda. Nossa palavra de ordem deve ser: todas as forças no ponto de ataque. E isso significa, precisamente, construir nossas forças.
Devemos trabalhar incansavelmente para construir as forças que serão necessárias para levar estas ideias a cada fábrica, a cada agrupamento sindical, a cada escola e universidade. Só assim poderá ser construída a futura direção revolucionária do proletariado.
Durante muito tempo lutamos contra a corrente. Nossos quadros se endureceram e se fortaleceram nessa luta. Ganhamos o respeito dos trabalhadores e jovens mais avançados. A autoridade política e moral de nossa Internacional nunca foi tão alta.
São conquistas colossais! Mas ainda nos resta um longo caminho a percorrer. É um caminho longo e difícil e nem tudo será fácil. A momentos de euforia se seguirão outros de decepção e mesmo de desespero. Devemos aprender a conviver com as dificuldades e a aceitar com a mesma otimista equanimidade tanto as derrotas quanto os êxitos.
Mas a maré da história mudou e agora começamos a nadar a favor da corrente, não contra ela. Os trabalhadores e a juventude estão muito mais abertos do que em qualquer outro momento. Todo o processo será acelerado.
Nossa Internacional enfrentará imensas oportunidades muito antes do que caberia esperar. Muitas portas se abrirão. Depende de nós aproveitar ao máximo todas as possibilidades e demonstrar que estamos à altura das grandes tarefas que a história nos impõe.