O artigo a seguir está baseado em um discurso proferido pelo editor de marxist.com, Alan Woods, na recente e altamente bem-sucedida Universidade Marxista Internacional. A situação mundial se caracteriza por guerras, caos e crise em todos os níveis, levando alguns a tirar as conclusões mais pessimistas. Na realidade, uma velha ordem está morrendo e uma nova está lutando para nascer. Vemos isso com as erupções revolucionárias no Sri Lanka e em outros lugares. O que está faltando é uma liderança clara e revolucionária para levar a classe trabalhadora à vitória e à derrubada deste sistema capitalista decadente.
Quando passamos a analisar a situação atual, ela em primeiro lugar nos parece uma complicada teia de processos contraditórios. Superficialmente, as principais tendências estão se movendo no oposto de uma direção revolucionária.
Mentes impressionistas tirarão as conclusões mais pessimistas. Mas isso seria um erro fundamental. Ao analisar os eventos, não devemos nos basear nas aparências, mas penetrar mais fundo para entender os processos subjacentes.
Os estrategistas do capital são incapazes de compreender os processos reais que ocorrem na sociedade porque são empíricos incuráveis que só veem a superfície dos acontecimentos.
Eles apelam constantemente para os “fatos”, mas são incapazes de ver os processos mais profundos que estão amadurecendo silenciosamente sob a superfície. Em um sentido bastante literal, eles não podem ver o bosque por trás das árvores.
O pensamento dialético para eles é um livro fechado com sete chaves. Mas ocasionalmente – muito ocasionalmente – eles chegam a uma ideia correta. Permitam-me citar o Financial Times de 28 de junho:
“Esta nova época do mundo está criando enormes desafios. É possível – talvez até provável – que o sistema mundial se desfaça.”
Se olharmos apenas para a superfície, essa previsão parece improvável. Mas se cavarmos mais fundo, é bastante correta. E essa é precisamente a nossa tarefa: ir mais fundo, usando o método científico da dialética.
Uma das leis básicas da dialética é a transformação da quantidade em qualidade, na qual uma série de pequenas mudanças aparentemente insignificantes acaba chegando a um ponto crítico em que há um salto qualitativo. A certa altura, as coisas se transformam em seu oposto.
É verdade que as condições objetivas variam de um país para outro. Os eventos podem se mover rapidamente ou em um ritmo mais lento. Mas em todos os lugares os acontecimentos caminham na mesma direção: para uma maior instabilidade e uma enorme intensificação das contradições em todos os níveis: econômico, social, político.
Mais importante ainda: mudanças significativas estão ocorrendo na psicologia das massas, o que prepara o caminho para grandes explosões sociais e políticas.
E uma coisa é absolutamente certa. Mudanças bruscas e repentinas estão implícitas em toda a situação. Vimos isso no início do ano no Cazaquistão e estamos vendo novamente agora no Equador e no Sri Lanka.
Não são eventos isolados. Assemelham-se a explosões de calor que anunciam a chegada de uma tempestade.
A guerra na Ucrânia
Em todos os momentos, devemos manter uma firme compreensão dos processos fundamentais. Isso é sobretudo necessário quando se trata de guerra.
No momento atual, o elemento dominante na situação mundial é a guerra na Ucrânia. Existe um velho ditado: se você brincar com fogo, provavelmente queimará seus dedos.
Essa excelente advertência parece ter sido esquecida pela burguesia e seus estrategistas. Agora eles estão aprendendo essa lição da maneira mais difícil.
Que atitude os marxistas devem adotar em relação à guerra? Em primeiro lugar, não podemos ter uma atitude sentimental ou moralista, como fazem os pacifistas quando reclamam que as guerras são muito cruéis, que pessoas são mortas, e assim por diante.
Isso é inegável. Mas, goste-se ou não, é igualmente inegável que as guerras são um fato da vida, que ocorrem a intervalos regulares na história humana e expressam o fato de que certas contradições atingiram um ponto crítico em que não podem ser resolvidas por meios “normais”, mas apenas pela força das armas.
Isso vale tanto para a guerra entre as classes quanto para a guerra entre as nações. Para citar as brilhantes e profundas palavras de Clausewitz: a guerra é apenas a continuação da política por outros meios.
Sim, as guerras são assuntos sangrentos e brutais. Mas às vezes são inevitáveis. E também servem para acelerar os processos, levando todas as contradições a um ponto crítico. A situação atual não é exceção. O conflito ucraniano serviu para definir nitidamente todas as tendências existentes.
Como seria de esperar, os social-democratas imediatamente abraçaram a causa da Ucrânia – isto é, da OTAN e do imperialismo norte-americano. Isso não surpreenderá ninguém.
Os reformistas de direita são apenas os agentes da classe dominante nas fileiras do movimento operário. Eles refletem fielmente os interesses dos banqueiros e capitalistas, seja em tempo de paz ou em tempo de guerra.
Mas o que se pode dizer sobre a “esquerda”? Embora possam falar desde a “esquerda”, os reformistas de esquerda não têm uma posição independente em oposição aos reformistas de direita. Isso porque, em última análise, eles também aceitaram o sistema capitalista – só que eles acreditam tolamente que ele pode servir aos interesses da classe trabalhadora.
Eles acreditam na conciliação entre as classes, não na luta de classes. Consequentemente, eles também defendem a unidade com os agentes de direita do capital. Isso é particularmente verdadeiro no contexto da guerra.
Como de costume, os covardes reformistas de esquerda foram arrastados para trás da ala direita. Eles caíram na propaganda hipócrita dos imperialistas, chorando lágrimas de crocodilo pelos pobres ucranianos.
Eles não compreendem o fato evidente de que, nesta guerra, os ucranianos são meros peões nas mãos do imperialismo dos EUA – e, no caso do governo de Kiev, peões reacionários.
Na Alemanha, os defensores mais fanáticos da guerra são os verdes, parceiros de coalizão do SPD no governo, que estavam fortemente identificados com o movimento pela paz dos anos 1980.
Agora, esses pacifistas pequeno-burgueses tornaram-se os mais raivosos traficantes de guerra e imediatamente saltaram para o campo da reação imperialista.
Oh sim, as coisas se transformam em seu oposto!
E muitas das chamadas seitas trotskistas também se renderam à pressão do imperialismo e à propaganda histérica da mídia.
Dizem-nos que Putin é nosso inimigo. Sim, Putin é nosso inimigo. Mas a tarefa de acertar as contas com Putin é da classe trabalhadora russa, e apenas dela.
Nossa tarefa é lutar contra nossa própria burguesia e nossa própria classe dominante imperialista, e não sermos empurrados – direta ou indiretamente – para uma aliança com eles, alegando que devemos lutar contra o malvado Putin.
Por mais malvado que ele seja, os cavalheiros em Washington e Londres são mil vezes mais malvados e contrarrevolucionários. Suas mãos estão manchadas com muito mais sangue.
Sim, de fato! A guerra é muito útil para desnudar todas as contradições e expor impiedosamente todas as fraquezas daqueles que alegam falsamente defender as ideias de Lenin e Trotsky.
Podemos nos orgulhar do fato de que a CMI manteve sua cabeça e permaneceu firme contra a histérica barragem belicista. Mantivemos uma posição de classe firme. Não há absolutamente nenhum espaço em nossas fileiras para elementos fracos que se dobram sob a pressão em tempo de guerra.
Devemos sempre defender firmemente a política de classe e defender o princípio leninista básico: o verdadeiro inimigo está em casa! Esse é o ponto essencial, e não devemos perdê-lo de vista nem por um segundo.
Hipocrisia imperialista
É muito divertido notar que, embora todos saibam que a OTAN é inteiramente controlada pelo imperialismo dos EUA, sua face pública nunca é estadunidense.
É sempre a de um simpático cavalheiro escandinavo, porque todos sabem que os escandinavos são um povo simpático e pacífico que abomina a guerra ou a violência de qualquer tipo.
Jens Stoltenberg, o norueguês com cara de pedra que finge ser o secretário-geral daquela organização, mal conseguiu esconder sua alegria quando anunciou que a Suécia e a Finlândia agora se juntariam à OTAN, depois que a Turquia retirou suas objeções.
Mas ele não disse por quê a Turquia retirou suas objeções.
Na realidade, isso foi o resultado de um acordo sórdido com Erdogan.
Ele apresentou à OTAN um ultimato: jogue os curdos aos lobos ou esqueça de a Suécia e a Finlândia se juntarem à OTAN.
O gabinete do presidente Erdogan disse que “conseguiu o que queria”.
Poucos dias depois, a artilharia turca bombardeou uma estância turística no norte do Iraque, frequentemente usada pelos curdos para escapar do calor do verão. O ataque não provocado contra um alvo civil matou homens, mulheres e crianças inocentes.
Agora, se essas fossem ações dos russos na Ucrânia, imaginem o clamor: Açougueiros! Monstros! Assassinos de mulheres e crianças! Atrocidade! Genocídio! Crime de guerra! E todo o resto.
Mas onde estava a condenação da Suécia e da Finlândia, ou de Washington e Londres? Não havia absolutamente nada. Nem uma palavra de condenação. Apenas um silêncio ensurdecedor: o silêncio cínico da cumplicidade descarada no assassinato a sangue frio.
Esta ação, por si só, expõe o completo cinismo e hipocrisia de ambas as principais potências imperialistas e da burguesa escandinava chorona que se esconde atrás de uma falsa fachada de “democracia”, “neutralidade” e “pacifismo” para encobrir seus crimes.
Sobre a guerra
Claro, é impossível ser preciso sobre o tempo dos eventos. Há muitas variáveis nesta equação. Não é à toa que Napoleão descreveu a guerra como a equação mais complicada de todas.
Certamente é verdade que Putin cometeu o erro, no início da guerra, de acreditar que conquistaria Kiev em um espaço de tempo muito curto. Eu mesmo pensei a mesma coisa, e não fui o único.
A CIA e o Pentágono tinham exatamente a mesma perspectiva, que revelaram quando ofereceram a Zelensky um helicóptero para levá-lo para fora do país.
Mas as coisas aconteceram de forma diferente. O exército ucraniano – armado e treinado pela OTAN – provou ser uma força de combate muito mais séria do que tinha sido no passado. Os russos tiveram que abandonar seus objetivos originais e operar com base em um plano mais realista, ou seja, tomar o Donbass.
Isso eles o fizeram, avançando lenta mas seguramente, conquistando um ponto estratégico após o outro e infligindo perdas muito pesadas aos ucranianos, perdas que estes não podem sustentar indefinidamente.
Um relatório recente de oficiais de inteligência ucranianos e ocidentais revela que os ucranianos estão enfrentando enormes dificuldades. As tropas ucranianas estão sofrendo perdas maciças, pois são superadas em 20 para um em artilharia e em 40 para um em munição pelas forças russas.
De acordo com fontes ucranianas, cerca de 200 soldados ucranianos estão sendo mortos todos os dias, contra 100 no mês passado. Isso significa que cerca de 1.000 ucranianos estão sendo retirados da luta todos os dias, incluindo aqueles que estão feridos.
Essa é uma posição insustentável, principalmente porque as perdas consistem principalmente de tropas experientes e endurecidas pela batalha, que estão sendo substituídas por recrutas não treinados e mal armados.
De acordo com o relatório, o agravamento da situação no Donbass está tendo “um efeito seriamente desmoralizante nas forças ucranianas”. Pela primeira vez desde o início da guerra, agora há preocupação com a deserção e com os soldados ucranianos que se recusam a obedecer às ordens de entrar na batalha.
Enquanto isso, os russos adaptaram suas táticas de maneira a permitir que aproveitem ao máximo seu poder de fogo, permanecendo à distância das posições ucranianas, atacando-as implacavelmente e tomando território assim que os ucranianos são forçados a recuar.
Mais armas, por favor!
O mesmo relatório de inteligência afirma:
“A situação tática na frente oriental é a seguinte… o lado ucraniano ficou quase completamente sem estoques de mísseis, o que havia possibilitado efetivamente deter as ofensivas russas nos primeiros meses da guerra a distâncias de [37 a 50 milhas].
“Hoje, o alcance máximo de fogo das Forças Armadas da Ucrânia é de [15,5 milhas].
Zelensky grita ainda mais alto por mais armas e mais dinheiro.
O ministro da Defesa ucraniano, Oleksiy Reznikov, insiste que as armas dos EUA mudarão o curso da guerra. Ele afirma que elas permitirão que a Ucrânia recupere o território ocupado pelos russos, incluindo não apenas o Donbass, mas também a Crimeia.
Reznikov disse que as autoridades de defesa ocidentais lhe disseram que seu apoio militar à Ucrânia “nunca vai parar”.
Mas isso está por se ver!
Os EUA deram bilhões de dólares em ajuda à Ucrânia. Mas isso representa uma drenagem muito séria de recursos, mesmo para o país mais rico do mundo. Toda a grande conversa sobre o fornecimento de novas armas não corresponde ao que é entregue. Os homens em Kiev não conseguiram esconder sua frustração e decepção.
As autoridades ucranianas reclamam que precisam de muito mais só para deter o avanço russo, sem falar de recuperar o território perdido, e que levará tempo para implantar os novos sistemas, como os 12 HIMARS M142 fabricados nos EUA, na linha de frente, enquanto o Kremlin continua sua ofensiva feroz no Donbass.
“Estamos, é claro, muito gratos aos nossos aliados por seu apoio”, disse uma autoridade ucraniana. “As novas armas são bem-vindas, mas quando eles anunciam que estão enviando ajuda militar para a Ucrânia, o governo ocidental talvez deva esclarecer ao público as quantidades envolvidas”.
Os sistemas de armas ocidentais recém-prometidos estão chegando, mas muito lentamente e em quantidades insuficientes para impedir os inexoráveis ganhos russos na região leste de Donbass, na Ucrânia.
As rachaduras começam a surgir
Em termos militares, Kiev está perdendo terreno. Enquanto isso, os EUA e seus aliados não conseguem sequer concordar com os objetivos reais da guerra. Um artigo recente o presidente Biden definiu o principal objetivo da América como a preservação de uma Ucrânia livre e independente. Mas esse objetivo não é compartilhado por seus principais aliados europeus, França e Alemanha.
Aqueles que mais se preocupam com a guerra entre a Rússia e o Ocidente falaram apenas sobre Moscou não vencer. Eles temem que pressionar pela vitória direta da Ucrânia possa levar a um conflito direto entre a Rússia e o Ocidente, ou ao uso de armas nucleares russas.
França e Alemanha estão neste campo. Olaf Scholz, chanceler da Alemanha, disse muitas vezes que a Rússia não deve vencer – mas nunca disse que a Ucrânia deve alcançar a vitória. Os EUA, crucialmente, estão em algum lugar no meio – tentando equilibrar sua resposta a ambas as ameaças, pois são os que fornecem a maior parte da ajuda militar à Ucrânia.
Os americanos decidiram não enviar artilharia que possa atacar dentro da Rússia porque isso pode parecer muito com um ataque direto dos EUA. (Enquanto isso, a entrega de armas pesadas da Alemanha continua sendo adiada.)
Estão se abrindo divisões tanto dentro dos EUA quanto entre os EUA e seus aliados europeus.
Enquanto isso, todos, incluindo Scholz e o presidente francês Emmanuel Macron, concordam (pelo menos em público) que não haverá um acordo de paz imposto à Ucrânia.
Mas a preocupação ucraniana é que eles serão, de fato, forçados a ceder território porque não receberão armas poderosas o suficiente para impedir que a Rússia avance no campo de batalha.
Mesmo quando o governo Biden anunciou mais assistência à Ucrânia, dúvidas estavam sendo expressas na Casa Branca sobre as perspectivas para a guerra.
Segundo a CNN: “Os conselheiros de Biden começaram a debater internamente como e se Zelensky deveria modificar sua definição de uma ‘vitória’ ucraniana – ajustando-se à possibilidade de que seu país tenha encolhido irreversivelmente”.
Crise econômica
E esse não é o fim dos problemas de Kiev. De acordo com o Financial Times:
“A crise fiscal da Ucrânia está piorando por causa do colapso da atividade econômica. O banco central queimou 9,3% de suas reservas cambiais somente em junho.”
“Oleg Ustenko, consultor econômico de Zelensky, diz que o país agora precisa de US$ 9 bilhões por mês do Ocidente para cobrir seu déficit orçamentário. Anteriormente, havia pedido entre US$ 5 bilhões e US$ 6 bilhões”.
“Sem o apoio financeiro de nossos aliados”, acrescenta Ustenko, “não será [apenas] difícil de fazer, será quase impossível de fazer”.
O FT informa ainda que “os EUA entregaram US$ 4 bilhões em ajuda econômica a Kiev e esperam distribuir mais US$ 6,2 bilhões até setembro”. Mas quando isso acabar, não está claro se essa generosidade se repetirá. E os burgueses europeus estão ainda menos entusiasmados em dar dinheiro para preencher um buraco negro.
Kiev afirma que precisa de US$ 5 bilhões por mês em ajuda para evitar um calote ucraniano no vencimento da dívida externa de € 900 milhões em setembro. Mas isso agora parece inevitável.
Em abril, a UE prometeu € 9 bilhões, embora houvesse atrito dentro do bloco sobre se o dinheiro deveria ser fornecido como doações ou empréstimos.
Mas até o momento, a UE conseguiu encontrar apenas € 1 bilhão de sua promessa e não parece ter pressa em enviar o restante. Isso não é surpreendente. A Alemanha, principal potência econômica da UE, se opõe a isso.
Zelensky está constantemente exigindo mais armas e mais dinheiro. Sem dúvida, o armamento ocidental – especialmente os sistemas de foguetes HIMARS – está causando algum impacto. Dizem que eles explodiram alguns depósitos de armas russos e ajudaram uma ofensiva ucraniana em Kherson explodindo pontes.
Isso pode ser verdade. Resta saber até que ponto essas alegações são exageradas por conta da propaganda. De qualquer forma, a investida ucraniana contra Kherson é claramente uma tentativa de afastar as forças russas da frente principal em Donbass. Nisso, é improvável que tenham sucesso.
A presença de algumas novas armas do Pentágono pode causar aos russos algumas dores de cabeça indesejadas. Mas elas não podem mudar o fato bem estabelecido da superioridade esmagadora da Rússia em poder de fogo, ou impedi-los de continuar avançando, lenta mas inexoravelmente, para ganhar o controle da importante região de Donbass.
Inquietação nos EUA
Já há sinais de que o Congresso dos EUA pode estar mostrando um apetite enfraquecido no apoio à Ucrânia, após meses de pródigos gastos militares. Algumas pessoas em Washington já estão suspeitando de todo o negócio. E as dúvidas estão sendo expressas abertamente em alto nível.
Em um artigo publicado em 13 de junho, intitulado “Com bilhões indo para a Ucrânia, autoridades alertam sobre potencial para fraude e desperdício”, o Wall Street Journal relata:
“Embora nenhum caso de má conduta tenha surgido, funcionários atuais e antigos dizem que é provável que seja uma questão de tempo.”
E a opinião pública está se voltando contra a guerra, como está se voltando contra o governo Biden em geral. Uma nova pesquisa mostra que mais americanos acreditam que:
- As sanções prejudicam os EUA mais do que a Rússia (56% a 42%)
- Não há problema em os EUA deixarem a Ucrânia perder para a Rússia (45% a 40%)
- E que “seria melhor” tirar Biden da Casa Branca do que Putin do Kremlin (56% a 43%)
Na verdade, apenas cerca de um terço dos americanos apoia a política de Biden para a Ucrânia.
Além disso, uma pesquisa recente descobriu que 58% dos eleitores desaprovam o desempenho de Biden e 39% o aprovam.
As sanções estão funcionando?
Já se passaram quatro meses desde que o Ocidente lançou sua guerra econômica contra a Rússia, e não está indo conforme o planejado. De fato, de acordo com a Reuters, “a Rússia pode estar obtendo mais receita de seus combustíveis fósseis agora do que pouco antes de sua invasão da Ucrânia [porque]… Os aumentos dos preços globais compensaram o impacto dos esforços ocidentais para restringir suas vendas”.
De qualquer forma, as sanções ocidentais não conseguiram impedir a Rússia de vender petróleo e gás. Para citar apenas um exemplo: a Itália recebeu cerca de 400.000 barris de petróleo russo por dia em maio. Isso é quatro vezes o nível pré-invasão.
“Ao mesmo tempo”, segundo a Reuters, “a Rússia conseguiu vender mais carregamentos para outros compradores, incluindo grandes consumidores de energia, notadamente China e Índia, oferecendo descontos ao petróleo de outras origens. […] As compras de petróleo russo da Índia mais que dobraram em maio em relação ao mês anterior, atingindo um recorde acima de 840.000 barris por dia”, e provavelmente aumentará ainda mais.
Ao mesmo tempo, “a Rússia restringiu a exportação de gases (hélio, néon etc.) necessários à produção de microchips e isso poderia afetar negativamente as empresas dos EUA, Japão, Coreia do Sul e Países Baixos, entre outros, escreve The Economic Times.
O artigo explica que:
“Os mercados mundiais são altamente dependentes dos suprimentos russos – eles fornecem até 30% do consumo de néon.” E sem os néon, argônio e hélio russos, “será mais difícil para alguns países produzir eletrônicos”, o que significa que a Rússia poderá exportar esses gases em troca da importação de semicondutores.
EUA e China
Um efeito muito importante da guerra foi empurrar a China para uma aliança mais estreita com a Rússia. No passado, as tensões entre os EUA e a China já teriam levado à guerra. Isso está descartado devido ao equilíbrio real de forças. Mas as tensões entre os EUA e a China estão destinadas a aumentar continuamente.
Agora a segunda maior economia do mundo, a China responde por cerca de metade do déficit comercial líquido dos Estados Unidos. Trump impôs tarifas punitivas sobre produtos chineses, mas isso se mostrou contraproducente. Agora Biden quer removê-las. Mas tanto os democratas quanto os republicanos ainda veem a China como o principal inimigo.
No total, de acordo com a Harvard Business Review, “o Estado chinês e suas subsidiárias emprestaram cerca de US$ 1,5 trilhão em empréstimos diretos e créditos comerciais para mais de 150 países ao redor do mundo.
“Isso transformou a China no maior credor oficial do mundo – superando os credores oficiais tradicionais, como o Banco Mundial, o FMI ou todos os governos credores da OCDE juntos… A maioria dos empréstimos chineses ajudou a financiar investimentos em larga escala em infraestrutura, energia e mineração.”
O poder crescente da China se manifesta na tentativa de reforçar sua posição como potência dominante na Ásia. Washington alertou que os EUA estariam preparados para enviar tropas a Taiwan para impedir uma tomada chinesa – uma declaração que Pequim verá como uma provocação, já que considera Taiwan como parte da China.
Agora que a atenção dos Estados Unidos está voltada para a Rússia, crescem os temores de que a China possa se sentir tentada a dar um passo em direção a Taiwan. Isso provocou uma reação nervosa em Washington, que encontrou expressão na Cúpula da OTAN em Madri.
O elemento mais significativo foi sua declarada atitude em relação à China. A OTAN listou a China como uma de suas prioridades estratégicas pela primeira vez, dizendo que as ambições de Pequim e suas “políticas coercitivas” desafiam os “interesses, segurança e valores” do bloco ocidental.
“A China está aumentando substancialmente suas forças militares, incluídas as armas nucleares, intimidando seus vizinhos, ameaçando Taiwan… monitorando e controlando seus próprios cidadãos através de tecnologia avançada e difundindo mentiras e desinformação russa”, disse aos jornalistas o secretário geral da OTAN, Jens Stoltenberg.
Mas se apressou a adicionar: “a China não é nossa adversária… mas devemos manter os olhos abertos com relação aos sérios desafios que ela representa”.
E ele parecia estar falando sério.
A unidade nacional se transforma em seu oposto
À medida que a crise se aprofunda, a questão ucraniana, longe de ser um esforço nacional unificador, se transformará em uma questão política divisória, exacerbando as tensões sociais e políticas, tanto dentro quanto entre os diferentes países.
O apoio inicial à causa da Ucrânia, que fomentou a unidade nacional, inevitavelmente se transformará em seu oposto.
Os imperialistas não querem ser vistos em público pressionando Zelensky a fazer um acordo com Moscou. Mas podemos ter certeza de que nos bastidores estão ocorrendo negociações frenéticas.
Mais cedo ou mais tarde, a Rússia ganhará o controle total do Donbass. Nesse ponto, Putin poderia declarar a vitória e pedir a paz em termos favoráveis a Moscou. A burguesia europeia está sob a pressão do aperto energético da Rússia e pressionará Kiev a chegar a um acordo.
Mas Kiev já rejeitou a ideia de um possível plano de paz mediado pela França e pela Alemanha. Esta proposta deixou os nervos à flor da pele em Kiev. Um porta-voz do governo alertou sobre uma traição: “Eles dirão que temos que parar a guerra que está causando problemas alimentares e econômicos”.
Isso é apenas o que eles vão dizer. Em particular, eles já estão dizendo isso. E no final, é isso que vai acontecer.
Basta olhar para os fatos. Os americanos podem se dar ao luxo de falar muito sobre boicotar o petróleo e o gás russos. Mas eles têm seus próprios suprimentos. A Europa não.
A Alemanha é fortemente dependente do gás russo. Então, os russos decidiram apertar um pouco para mostrar quem manda: o homem do Kremlin está dando boas risadas da Alemanha, onde o governo está se contorcendo como um peixe no anzol.
Se os russos cortarem o fornecimento de gás para a Alemanha neste inverno, o resultado será uma catástrofe econômica. Uma parada repentina no fornecimento de gás da Rússia levaria a uma queda de 12,5% na economia alemã.
5,6 milhões de empregos seriam afetados em toda a Alemanha. Em muitos setores, como o siderúrgico, mas também na importante indústria do vidro, se os fornos forem desligados por algum tempo, as instalações serão severamente danificadas e serão necessários meses para reiniciá-las.
Em conjunto, isso significaria perdas de € 193 bilhões em apenas seis meses. Não é à toa que eles querem um acordo! As consequências sociais e políticas de não conseguir um acordo seriam enormes – e não apenas para a Alemanha.
Citando as palavras de Scholz: “O aumento dos preços da energia está colocando em risco a segurança e a estabilidade em muitos países”.
O que fazer?
Salientamos que esta é uma guerra reacionária de ambos os lados. Tampouco podemos apoiá-la. Tampouco podemos ter qualquer influência significativa no curso dos acontecimentos.
Nossa tarefa, para usar o slogan de Lenin, é explicar pacientemente aos trabalhadores e jovens mais avançados, expor impiedosamente a propaganda mentirosa dos belicistas e atacar e denunciar nossa própria classe dominante.
Não é possível prever o resultado preciso da guerra. Vários cenários são possíveis. Mas o resultado inevitavelmente significará mais instabilidade e uma crise cada vez mais profunda. Se a Rússia perder, isso significará o colapso de Putin e o início de uma revolução na Rússia. Mas se a Rússia vencer, será um golpe no imperialismo e na direita do Ocidente.
Qualquer resultado teria consequências revolucionárias.
Economia mundial
As manchetes estão pintando um quadro sombrio. O nervosismo da burguesia encontra sua expressão na volatilidade das bolsas mundiais.
A turbulência na política mundial é acompanhada pela turbulência do mercado. O aumento das taxas fez com que as ações americanas despencassem. O S&P 500 caiu um quinto desde o início do ano. Desde 1962, não se vê um comércio tão pobre. As oscilações selvagens nas bolsas de valores demonstram precisamente como a situação se tornou fora de controle para os bancos centrais. A consequência mais provável será uma recessão global.
Nos EUA, a inflação atingiu um recorde de 40 anos e continua teimosamente alta. Na zona do euro, a inflação subiu para mais de 8%, com grande parte disso impulsionada pelos altos preços do gás. A economia britânica já caminha para uma recessão antes do final do ano.
Outros países europeus enfrentam os mesmos problemas, se não piores, já que a maioria deles depende mais do gás russo do que o Reino Unido. Como resultado, as fábricas fecharão, as empresas falirão, os investimentos serão sufocados e o desemprego aumentará acentuadamente.
Os níveis de dívida pública e privada são muito mais altos hoje do que no passado como porcentagem do PIB global, tendo aumentado de 200%, em 1999, para 350% hoje. Uma combinação de política monetária restritiva e taxas de juros crescentes levará famílias, empresas, instituições financeiras e governos endividados à falência e à inadimplência.
Nouriel Roubini, o conhecido economista burguês, resume bem a situação:
“O espaço para expansão fiscal também será mais limitado desta vez. A maior parte da munição fiscal foi usada e as dívidas públicas estão se tornando insustentáveis…
“As coisas vão piorar muito antes de melhorar.”
O “Terceiro Mundo”
A guerra na Ucrânia provocou ondas de choque econômicas não apenas na Europa, mas também nos países pobres do Oriente Médio, Ásia e América Latina. Para esses países, a perspectiva é um pesadelo.
Os preços das principais culturas alimentares nos mercados mundiais aumentaram quase 40% nos últimos cinco meses. Como resultado, “44 milhões de pessoas em 38 países estão em níveis emergenciais de fome”, segundo a ONU. Diante da escolha de alimentar suas populações ou pagar seus credores internacionais, os governos optarão pela primeira opção.
Aterrorizados com as consequências sociais e políticas da escassez de alimentos, os imperialistas tiveram que intervir, intermediando um acordo instável através da ONU e da Turquia para permitir a exportação de grãos ucranianos e russos. Isso fornecerá alguma ajuda para a Ucrânia, mas é muito mais útil para a Rússia.
Resta saber se esse acordo funcionará e, em caso afirmativo, por quanto tempo. Mas, de qualquer forma, a turbulência social e política relacionada à escassez de alimentos e ao aumento dos preços já começou a provocar desenvolvimentos revolucionários.
Sri Lanka
A crise econômica criou uma colossal turbulência social e política no Sri Lanka. Isso nos mostra a rapidez com que uma situação revolucionária pode se desenvolver.
O movimento de massas já havia conseguido forçar a saída do presidente Gotabaya Rajapaksa, que foi forçado a fugir para Cingapura. Mas quando as massas souberam de uma conspiração para instalar o primeiro-ministro, Ranil Wickremesinghe, como presidente interino, isso provocou uma insurreição.
O presidente interino declarou estado de emergência e ordenou que o exército reprimisse o povo. Eles foram recebidos com uma barragem de gás lacrimogêneo e canhões de água. Mas nada poderia parar aquele tsunami humano.
Se você deseja ver como é uma revolução, basta olhar para a maravilhosa insurreição no Sri Lanka. Aqui vemos o colossal poder potencial das massas. Se alguém duvidava da capacidade das massas de fazer uma revolução, esta foi uma resposta retumbante.
Os acontecimentos no Sri Lanka merecem um exame mais atento. O que eles mostram é que, quando as massas perdem o medo, nenhuma quantidade de repressão pode detê-las.
Sem liderança, sem organização e sem programa claro, as massas saíram às ruas e derrubaram o governo. Mas o Sri Lanka também nos mostra outra coisa.
Sem uma liderança correta, a revolução não pode ter sucesso. O poder estava nas mãos das massas, mas se permitiu que escapasse por entre seus dedos.
O fracasso em derrubar o governo permitiu que Ranil Wickremesinghe manobrasse no parlamento para recuperar a iniciativa, reprimindo os protestos na tentativa de restaurar a ordem.
O poder estava nas ruas, esperando que alguém o recolhesse. Teria sido suficiente para os líderes dos protestos dizerem: “Nós temos o poder agora. Nós somos o governo”. Mas essas palavras nunca foram ditas.
As massas silenciosamente deixaram o palácio presidencial e o antigo poder foi autorizado a retornar. Os frutos da vitória foram devolvidos aos velhos opressores e aos charlatães parlamentares. Essa é uma verdade intragável. Mas é a verdade.
No entanto, isso não significa que a revolução acabou. A agitação no Sri Lanka não acabou. Os problemas econômicos e sociais subjacentes que levaram as massas à ação não foram removidos.
A revolução ressurgirá em um nível ainda mais alto. Mas enfrentará um período muito mais difícil e doloroso, com muito mais sacrifícios.
“Uma cascata de inadimplências”
O Sri Lanka foi o primeiro país desde o início da guerra na Ucrânia a não pagar suas dívidas, mas é improvável que seja o último. A Bloomberg alerta que “uma cascata histórica de inadimplências está chegando para os mercados emergentes”.
Mais de 19 países, com uma população de mais de 900 milhões de pessoas, têm níveis de endividamento que significam uma possibilidade real de inadimplência. A lista de países inclui El Salvador, Gana, Tunísia, Egito, Paquistão, Argentina e Ucrânia. Sua dívida combinada chega a US$ 237 bilhões.
O Paquistão é um caso extremo. De acordo com um relatório de Michael Rubin, membro sênior da revista National Interest, com sede em Washington: “Embora muitos países dependam do trigo ucraniano ou russo ou de importações de energia estrangeira, o Paquistão exige ambos. Entre julho de 2020 e janeiro de 2021, por exemplo, o Paquistão foi o terceiro maior consumidor de exportações de trigo ucraniano depois da Indonésia e do Egito”.
A reportagem continua:
“O aumento dos preços do petróleo atingiu duramente o Paquistão, elevando o custo de suas importações em mais de 85%, para quase US$ 5 bilhões, apenas entre 2020 e 2021. No final do ano fiscal do Paquistão, em 30 de junho de 2022, seu comércio deficitário se aproximou de US$ 50 bilhões, um aumento de 57% em relação ao ano anterior”.
Esta é uma situação catastrófica. Produziu uma divisão aberta na classe dominante e a queda do governo de Imran Khan. A posição desesperada das massas está preparando o caminho para uma explosão social nos moldes do Sri Lanka. Esta é uma receita pronta e acabada para a luta de classes e até mesmo para uma explosão revolucionária nos moldes de 1969.
Isso nos dá uma imagem muito precisa do que acontecerá em um país após o outro. Veremos uma enorme intensificação da luta de classes e uma situação prenhe de possibilidades revolucionárias.
Isso, e só isso, é a coisa mais importante desde uma perspectiva marxista.
Os Estados Unidos
A crise afeta todos os países, dos mais pobres aos mais ricos. A inflação nos EUA está agora em aproximadamente 9%. É a maior em 40 anos. E há uma poderosa corrente de descontentamento. Biden tentou usar a Ucrânia como distração. Mas falhou. 85% dos americanos dizem que o país está no caminho errado.
O problema é a ausência de um ponto de referência coerente. Dada essa ausência, o único ponto é Donald Trump. O Financial Times apresenta uma imagem sombria: “Os Democratas enfrentam uma provável dizimação nas eleições de meio de mandato deste ano em novembro, o que configurará uma revanche esmagadoramente deprimente em 2024 entre Biden e Trump”.
Mas a experiência de um governo Trump em condições de crise capitalista acabará com ele para sempre. Servirá para aprofundar todas as contradições, como já vimos quando da decisão da Suprema Corte em Roe v. Wade que, de um golpe de caneta, trouxe a proibição efetiva do direito ao aborto em muitos estados e ameaça a proibição dos direitos ao aborto completamente.
O espetáculo de um órgão não eleito de juízes reacionários decidindo o destino de milhões de mulheres provocou uma onda de protestos e manifestações de rua. Esse é apenas mais um exemplo do fato de que não há escassez de material combustível na sociedade norte-americana, apenas esperando uma faísca para desencadear uma conflagração.
A classe trabalhadora está começando a despertar depois de um período mais ou menos longo de adormecimento. Terá que reaprender muitas lições, até mesmo lições elementares como a necessidade de se organizar em sindicatos. Marx disse que a classe trabalhadora sem organização é apenas matéria-prima para a exploração.
Como resultado da falta de organização dos líderes sindicais, a nova geração de jovens trabalhadores se vê com pouco mais do que isso. Eles se encontram trabalhando em fábricas modernas chamadas call centers, ou na Amazon, onde são submetidos a uma exploração brutal, a longas horas de trabalho e a maus salários.
O recente movimento para sindicalizar os trabalhadores da Amazon e da Starbucks é, portanto, um grande passo à frente. Houve uma enxurrada de greves nos EUA, o que indica o início de um renascimento na frente industrial. E há o início de uma mudança também nos sindicatos: entre os caminhoneiros e os trabalhadores da indústria automobilística.
Tudo isso começa a preocupar os estrategistas do capital. A pergunta está sendo feita abertamente: pode haver uma nova guerra civil nos EUA? De fato, existem vários livros sobre esse assunto, como How Civil Wars Start: And How to Stop Them [Como começam as guerras civis: e como detê-las], de Barbara F Walter.
Uma pesquisa recente da Universidade de Chicago mostrou que 28% dos americanos dizem ter tão pouca fé em seu governo e que pode “em breve ser necessário pegar em armas” contra o governo.
37% dos proprietários de armas estão preparados para se revoltar, e a maioria diz que o sistema é “corrupto e manipulado” contra eles. O que isso mostra é o crescente sentimento de alienação ao status quo das pessoas comuns e o ódio e a desconfiança em relação ao establishment – tanto democrata quanto republicano.
Se isso terminará ou não em guerra civil em breve parece ser uma avaliação bastante impressionista, é mais o reflexo de um cérebro superaquecido, motivado pelo pânico, do que uma análise racional.
Mas que as sementes de uma futura guerra civil estejam sendo plantadas neste momento é inteiramente possível. Mais corretamente, as sementes de uma explosão social todo-poderosa estão sendo plantadas e inevitavelmente darão frutos em um determinado estágio.
As condições estão sendo criadas para o surgimento de toda uma nova geração de combatentes revolucionários. E prevejo que alguns dos revolucionários mais determinados virão das fileiras dos desiludidos apoiadores de Trump.
Polarização
A principal característica da situação atual é uma extrema polarização entre ricos e pobres. Isso nunca foi maior em toda a história.
Existem forças centrífugas poderosas que estão dividindo o consenso existente e ameaçando o próprio tecido da vida social. Mas também existem forças poderosas que estão puxando na direção oposta.
A tendência conhecida como centro político atua como uma espécie de cola que mantém o tecido unido. Mas este centro está agora sob pressão como nunca antes. O principal medo da classe dominante é que este tremendo conflito termine na destruição do centro.
E há sintomas claros que indicam que esse processo destrutivo já começou nos EUA. Vemos exatamente o mesmo processo na Europa.
Itália
Perante todos estes problemas, a última coisa que a Europa precisa é de agitação política e desunião. Mas essa é a imagem que vemos em todos os lugares. Costumávamos dizer que a Grécia era o elo mais fraco da cadeia do capitalismo europeu. Mas essa honra está agora reservada à Itália.
A dívida pública da Grécia é agora de 186% do PIB. Esta é exatamente a mesma crise como antes da intervenção da UE, exceto que o BCE não pode mais imprimir dinheiro para escapar dela, com a inflação disparando.
Mas a Itália não é a Grécia. A crise na Itália representa uma ameaça mortal para uma das maiores economias da zona do euro.
A dívida pública da Itália agora está em cerca de 150% de seu PIB. Isso é insustentável. Mas, para reduzi-la, serão necessários cortes profundos nos gastos públicos. A burguesia italiana precisa de um governo forte para realizar um ataque à classe trabalhadora. Mas é impossível alcançar um governo de coalizão estável.
A queda de Draghi na Itália é mais uma indicação da instabilidade política. Um colapso financeiro na Itália representaria uma séria ameaça para a zona do euro em um momento em que as taxas de juros crescentes dificultam o financiamento das dívidas.
França
Processos semelhantes estão em andamento na França. Emmanuel Macron, a própria personificação do “Centro”, está perdendo o controle do poder. O povo francês deixou Macron com o nariz sangrando, tirando sua maioria nas eleições legislativas.
Menos de dois meses depois de ter sido reeleito presidente, Macron perdeu o controle da Assembleia Nacional. Ele pediu aos eleitores que lhe fornecessem uma maioria sólida. Mas sua coalizão centrista sofreu uma derrota total em uma eleição que deixou a política francesa fortemente polarizada.
Marine Le Pen, do Rally National, ganhou terreno às custas do Centro. Mas foi o Bloco de Esquerda (Nupes) de Jean-Luc Mélenchon, que inclui o que resta do Partido Socialista, dos Comunistas e dos Verdes, que obteve os maiores ganhos. O que ele vai fazer com sua vitória continua por ser visto. Mas o que está claro é que o centro político na França está desmoronando diante de nossos olhos.
O governo Macron é fraco. Será confrontado com uma enorme pressão tanto da esquerda como da direita. Será um governo de crise desde o início. O fato mais significativo foi o alto índice de abstenção: 53% no primeiro turno e 56% no segundo. Esta é uma indicação clara do colapso do apoio aos partidos existentes, uma extrema alienação do status quo.
Marx disse que a França era o país onde a luta de classes é sempre travada até o fim. O palco está montado para uma explosão da luta de classes na França, onde os trabalhadores têm uma longa tradição de ir às ruas.
A situação atual é bastante sem precedentes. Alguns falam de um renascimento do movimento Gilets Jaunes. Mas tal é a raiva colossal que se acumula e o ódio a Macron que uma nova edição de 1968 é inteiramente possível.
Uma grande diferença com 1968 é o colapso completo do Partido Comunista. Os stalinistas não possuem nada remotamente parecido com a autoridade que tinham no passado. Eles não serão capazes de frear o movimento quando ele começar.
E, como em 1968, tudo pode acontecer sem qualquer aviso. Devemos estar preparados.
Grã-Bretanha
O fim do governo de Boris Johnson foi simplesmente uma parte desse fato; um reflexo do aprofundamento da crise do capitalismo britânico. A Grã-Bretanha, que já foi o país mais estável da Europa, tornou-se possivelmente o mais instável. A situação tornou-se cada vez mais convulsiva – política, econômica e socialmente.
Há um claro processo de radicalização – e não apenas na juventude, que continua sendo nosso principal campo de trabalho. Os ataques inevitáveis serão expressos em uma reativação das lutas na frente industrial.
Na Grã-Bretanha, onde o nível de greves era historicamente baixo, agora temos a primeira greve nacional de ferrovias em 30 anos, na qual 40.000 trabalhadores ferroviários entraram em greve. E os professores e outros trabalhadores mal pagos do setor público estão ameaçando seguir seu exemplo.
Juntamente com os trabalhadores ferroviários, vimos movimentos em direção à ação industrial por trabalhadores de ônibus, trabalhadores do lixo, trabalhadores de aeroportos, trabalhadores da construção civil e trabalhadores dos correios. Funcionários públicos, professores, conferencistas e até advogados estão em movimento.
A classe dominante britânica está se preocupando de que a combinação de baixos salários e inflação cause uma explosão de greves, principalmente no setor público, e se prepara para uma batalha com os ferroviários, um sindicato tradicionalmente militante.
Os temores da burguesia foram expressos em um artigo recente do Financial Times em 18 de junho:
Um ministro do gabinete disse que o governo estava andando em uma “delicada corda bamba” de manter os salários baixos e evitar uma espiral inflacionária de salários sem forçar vários setores à greve:
“Se errarmos, corremos o risco de entrar em uma greve geral de fato que criará mais turbulências que arriscam paralisar toda a economia.”
Isso abrirá grandes possibilidades para o trabalho da corrente marxista nos sindicatos.
Na Alemanha também há perspectiva de recuperação no front industrial.
Três grandes negociações coletivas estão previstas para ocorrer nos próximos seis meses – nas indústrias metalúrgica e elétrica, no setor químico e no setor público – afetando um total de cerca de 7 milhões de trabalhadores.
O aumento do custo de vida e a ameaça de um colapso social levantam o espectro de protestos em massa generalizados nas ruas.
Rússia
Da Rússia, já disse muitas vezes que, se o Partido Comunista fosse um verdadeiro Partido Comunista, não haveria problemas. Isso é verdade. Mas sob Zyuganov, o PCRF desempenha um papel semelhante ao dos reformistas social-democratas do Ocidente: a oposição leal de Sua Majestade. Eles são o principal apoio que mantém Putin no poder.
Na fase inicial da guerra, houve uma série de protestos anti-guerra. Mas a principal fraqueza do movimento antiguerra na Rússia é que ele é controlado pelos liberais burgueses.
Os trabalhadores russos podem não gostar de Putin, mas odeiam o imperialismo norte-americano e a OTAN, que veem com razão como uma ameaça. Os trabalhadores deram uma olhada nos elementos burgueses pró-ocidentais nas manifestações e imediatamente se afastaram com desgosto.
O movimento anti-guerra não pode ganhar a confiança da classe trabalhadora russa a menos que rompa com os liberais.
Nossos camaradas têm se mantido firmes contra a posição social patriótica da direção do PCRF. Mas também devemos levar em consideração o humor da classe trabalhadora, que neste momento é principalmente a favor da guerra. A essência da tática é fazer uso de demandas transitórias oportunas que possam ecoar na classe trabalhadora em um determinado momento.
Ainda não há uma situação revolucionária na Rússia, mas isso pode mudar. Devemos evitar usar slogans que cairiam em ouvidos surdos e apenas nos isolariam dos trabalhadores russos. Seria um erro gravíssimo confundir a atitude dos trabalhadores com o social-chauvinismo reacionário de Putin e dos dirigentes do PCRF.
Lenin apontou em 1917 que as massas adotaram o que ele chamou de “defensismo honesto”, e esse fato deve ser levado em consideração pelos bolcheviques:
“O slogan ‘Abaixo a Guerra!’ é, claro, correto. Mas não leva em conta a natureza específica das tarefas do momento presente e a necessidade de abordar a grande massa do povo de uma maneira diferente. Isso me lembra o slogan “Abaixo o czar!” com o qual o agitador inexperiente dos “bons velhos tempos” foi simples e diretamente para o campo – e levou uma surra por seus esforços. As massas que acreditam no defensismo revolucionário são honestas, não no sentido pessoal, mas no sentido de classe, ou seja, pertencem a classes (operários e camponeses pobres) que de fato nada têm a ganhar com as anexações e a subjugação de outros povos. Isso não é nada como a fraternidade burguesa e ‘intelectual’, que sabe muito bem que não se pode renunciar às anexações sem renunciar ao domínio do capital e que engana inescrupulosamente o povo com belas frases, promessas ilimitadas e garantias sem fim.” (Lenin: Defensismo Revolucionário e seu significado de classe, de As Tarefas do Proletariado em Nossa Revolução)
Os trabalhadores veem a guerra como uma guerra defensiva contra as ações agressivas da OTAN e do imperialismo norte-americano. Portanto, eles estarão preparados para tolerar Putin e suportar as consequências negativas da guerra por um tempo.
Mas a paciência das massas tem limites definidos. Em um determinado momento, especialmente se a guerra se prolongar por muito tempo, isso se transformará em seu oposto, criando um público muito mais receptivo a slogans antigovernamentais e revolucionários.
América latina
A América Latina como um todo enfrenta uma grande crise econômica e social. Aqueles que vivem em condições de extrema pobreza passaram de 11,4% da população para quase 15%! Outros 7,8 milhões de pessoas se juntarão às pessoas que sofrem do que a CEPAL descreveu como “insegurança alimentar”, chegando a um total de 86,4 milhões de pessoas.
Isso agravará todas as tensões sociais em um país após o outro. Já vemos essa tendência na Colômbia e no Equador.
Na Colômbia, a vitória de Gustavo Petro representa uma importante virada, com grandes implicações para o resto da América Latina. Petro ganhou por causa dos eleitores nas grandes cidades, votando contra a corrupção, pobreza, desigualdade e violência, e por mudanças.
Mas que tipo de mudança pode se esperar de Petro é outra questão. Na verdade, debati com ele em Caracas alguns anos atrás e tive uma impressão muito desfavorável. Ele confirmou minha suspeita de que os ex-guerrilheiros sempre são os piores reformistas.
É significativo que os EUA tenham saudado a vitória de Petro. O governo Biden o vê como a melhor maneira de manter as massas sob controle, já que décadas de repressão esgotaram esse caminho.
As massas terão que passar pela escola de Petro e será uma escola muito dura. Mas a paciência das massas não é ilimitada. Quando as deficiências de Petro se tornarem claras, o caminho estará preparado para um novo período de movimentos revolucionários massivos em um plano ainda mais alto.
Em seguida temos um grande movimento nas ruas do Equador, e agora há indícios de um movimento semelhante começando no Peru. Tenho o prazer de informar que nossos primeiros camaradas naquele país participaram ativamente do movimento.
A greve nacional levantou a questão de quem governa a sociedade. Mas esta questão não foi resolvida. Este impasse pode causar fadiga e desmobilização e levar a uma derrota. E esse é o problema central.
Por muito tempo, a classe trabalhadora foi submetida a imposições intoleráveis. Estas foram suficientes para provocar uma cadeia de explosões revolucionárias. Agora, em um país após o outro, vemos a existência de um grande fermento. Em outras palavras, as condições objetivas estão maduras para a revolução.
Mas o fator essencial – o fator subjetivo – não corresponde de forma alguma às condições objetivas.
Bancarrota da “esquerda”
A verdadeira explicação para esse atraso é a completa ausência de liderança, a completa falência dos líderes dos trabalhadores. Em particular a chamada “esquerda”, que em todos os lugares se revelou covarde.
As esquerdas zombam dos marxistas, que consideram utópicos sem esperança. Na realidade, eles abandonaram há muito tempo qualquer ideia de mudar a sociedade e fizeram as pazes com o sistema capitalista.
Por alguma razão, eles se consideram grandes realistas. Mas este é o realismo do homem que deseja persuadir um tigre a comer salada em vez de carne humana. Em outras palavras, eles são o pior tipo de utópicos.
Tendo perdido toda a confiança no poder da classe trabalhadora para mudar a sociedade, eles agem constantemente como um freio ao movimento, fazendo tudo ao seu alcance para detê-lo e buscar compromissos com o inimigo de classe.
Mas a fraqueza convida à agressão. Para cada passo para trás que os reformistas derem, a classe dominante exigirá mais dez.
Os velhos partidos e dirigentes serão postos à prova e, um a um, serão rejeitados, preparando o caminho para o surgimento de uma genuína oposição marxista. Portanto, a crise do capitalismo significa também a crise do reformismo.
As perspectivas dos marxistas se mostrarão corretas. Essa é a nossa principal força: não números ou dinheiro ou um aparato poderoso, mas o poder das ideias. Isso é algo que os reformistas estúpidos nunca entenderão.
Em 1938, Trotsky disse que a crise mundial pode ser reduzida a uma só coisa: a crise de liderança da classe trabalhadora. E isso ainda é verdade hoje. Vimos o papel decisivo da liderança no Sri Lanka. E a mesma tragédia se repetirá várias vezes, até que a classe trabalhadora esteja armada com o único programa que pode garantir seu sucesso final.
A classe operária só poderá triunfar quando estiver armada com um programa socialista revolucionário. Este programa é defendido hoje pela Corrente Marxista Internacional.
“Céus econômicos escurecendo”
The Economist adverte sobre os “céus econômicos escurecendo e a ameaça iminente de um inverno amargo de descontentamento… olhe em quase qualquer direção e há razões para se preocupar com ameaças assustadoras à economia mundial”.
A perspectiva dos economistas burgueses é pessimista.
Todo o seu sistema está desmoronando em torno deles. No entanto, a classe trabalhadora, através de seu trabalho, criou uma imensa riqueza que, se usada adequadamente, poderia resolver todos os problemas da humanidade.
O valor do PIB global de US$ 94 trilhões pode parecer enorme para nós hoje, mas esse total parecerá extremamente modesto no futuro. Em 1970, a economia mundial era de apenas US$ 3 trilhões em termos de PIB – ou 30 vezes menor do que é hoje.
Nos próximos 30 anos, espera-se que a economia global mais ou menos dobre novamente. Em 2050, o PIB global pode chegar perto de US$ 180 trilhões. Isso em uma base capitalista. Sob uma economia socialista planejada, seria muito maior.
O que esses números significam? Eles significam que não há absolutamente nada de utópico nas perspectivas para o socialismo. Na realidade, a base material para um mundo socialista já existe. Temos em nossas mãos tudo o que é necessário para construir um paraíso na Terra.
Mas a condição prévia é a derrubada do sistema capitalista. Grandes oportunidades podem se apresentar diante de nós muito mais rapidamente do que imaginamos. Mas devemos estar preparados! Essa preparação deve ocorrer agora e pode ser resumida em uma palavra: crescimento.
Temos as melhores ideias, mas isso por si só não é suficiente. Temos que trabalhar para que essas ideias se transformem em números militantes, para que a qualidade se transforme em quantidade, e a quantidade se transforme em qualidade. Não é o mesmo entrar na nova situação com uma organização de cem comparada a uma organização de mil.
Não devemos nos deixar distrair por este ou aquele detalhe, mas concentrar todas as nossas energias no objetivo principal, que é a construção da Internacional revolucionária.
Esse é o desafio diante de nós. É uma corrida contra o tempo. Não se deve permitir que nada se interponha em nosso caminho.