No texto clássico, Lenin explica brilhantemente os princípios fundamentais da filosofia materialista do marxismo. Ele os defende contra os ataques idealistas do idealismo subjetivo do “machismo” [termo relativo às ideias de Ernst Mach, físico e filósofo austríaco], uma tendência filosófica que na época de Lenin estava se tornando muito popular, mesmo dentro do movimento operário.
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O objetivo era muito simples: trazer à tona a diferença real entre o materialismo dialético marxista e o idealismo subjetivo, o qual, em última instância, sempre leva a alguma forma de visão religiosa do mundo.
Joseph Dietzgen disse certa vez que a filosofia oficial não era uma ciência, mas uma salvaguarda contra o socialismo. Ele estava correto. Não importa o quão indignados eles neguem, os filósofos profissionais foram recrutados pelos defensores do status quo como aliados na luta contra o marxismo. Isso foi particularmente evidente no período da Guerra Fria, quando a CIA usava a filosofia e a arte como armas contra o comunismo, e continua sendo verdadeiro até hoje.
Desde que o marxismo emergiu como uma força significativa, desafiando a ordem existente, o establishment está em um estado perpétuo de guerra contra todos os aspectos da ideologia marxista, começando pelo materialismo dialético. A simples menção do marxismo certamente provocará uma reação automática em tais círculos. “Desatualizado”, “não científico”, “refutado há muito tempo”, “metafísica” e todo o resto da ladainha esfarrapada e cansativa dos reacionários.
Não apenas Marx e Engels são personae non grata nos corredores sagrados dos departamentos de filosofia, mas também o pobre e velho Hegel, que já foi aclamado como o filósofo dos filósofos por excelência, está submetido a um pacto de silêncio bastante vergonhoso, e até mesmo pior.
Essa situação não é apenas um reflexo da ignorância e do preconceito (embora haja muito de ambos). Estão em jogo poderosos interesses materiais, que logo convencem a todos, exceto as almas mais corajosas, de que não é sábio ofender aqueles que fornecem as bolsas e controlam as carreiras acadêmicas.
Também é evidente que a gangue acadêmica pós-moderna não gosta de ser lembrada do fato de que houve uma época em que os filósofos realmente tinham algo profundo e importante a dizer sobre o mundo real.
A importância da teoria
Já em O que fazer? Lenin apontava:
Sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário. Não se pode insistir muito nessa idéia em uma época em que a pregação da moda do oportunismo anda de mãos dadas com uma paixão pelas formas mais restritas de atividade prática.
Ele acrescentou que “o papel do militante de vanguarda só pode ser cumprido por um partido que se guie pela teoria mais avançada”.
E uma das contribuições mais importantes para a teoria marxista é, sem dúvida, Materialismo e Empiriocriticismo.
Lenin começou a escrever esse clássico marxista em fevereiro de 1908. Isso foi no auge do período de reação após a derrota do levante de Moscou em dezembro de 1905. A classe trabalhadora estava exausta. A revolta camponesa, na qual Lenin depositou suas esperanças de um renascimento revolucionário, chegou tarde demais. A iniciativa passou para o regime czarista, que partiu para a ofensiva.
Uma sombria onda de reação veio na sequência e durou vários anos. Prisões em massa, execuções sumárias e o esmagamento impiedoso de qualquer oposição dizimaram o movimento. Os marxistas (então conhecidos como social-democratas) foram submetidos à perseguição mais brutal. Seus líderes foram perseguidos, presos e enviados para a Sibéria ou executados. Outros milhares foram assassinados sem julgamento.
Essa derrota teve um efeito profundamente desmoralizante sobre o movimento, especialmente sobre os intelectuais que simpatizavam com a revolução quando ela estava em seu ápice, mas começaram a abandoná-la assim que a reação começou. Um clima de pessimismo se apoderou da pequena burguesia.
Isso encontrou expressão em um sentimento geral de desesperança, em uma tendência a abandonar a luta de classes e no olhar introspectivo, em busca de novas ideias e panaceias, incluindo ideias místicas e semirreligiosas (“construção de Deus”). É neste contexto que se deve ver o real significado da luta de Lenin contra o revisionismo filosófico.
Foi nessa época que o idealismo subjetivo de Richard Avenarius e Ernst Mach se tornou moda entre uma camada da intelectualidade na Rússia. Correspondeu intimamente ao clima predominante de abatimento, pessimismo e misticismo.
O movimento socialista não ficou imune a esse desenvolvimento e uma camada dele começou a fazer concessões ao “machismo”. Isso fez parte do processo contrarrevolucionário na esfera das ideias.
A pequena burguesia e a revolução
O mesmo padrão pode ser observado repetidas vezes na esteira das revoluções derrotadas. Assim que o movimento revolucionário enfrenta reveses, vemos uma longa fila de intelectuais deprimidos, tropeçando nas próprias pernas, um após o outro, na pressa indecente de abandonar o movimento e de se retirar para a segurança de seus gabinetes de estudo.
A intelligentsia oferece um termômetro bastante preciso das mudanças de humor da pequena burguesia. Como um estrato intermediário entre o proletariado e a burguesia, eles formam uma camada social organicamente instável, constantemente oscilando entre os dois grandes polos da sociedade.
Na medida em que a intelectualidade é capaz de gravitar em torno da classe trabalhadora e do socialismo revolucionário, ela sempre se mostra um aliado altamente instável, vacilante e pouco confiável. Quando a classe trabalhadora se move em uma direção revolucionária, uma seção dos intelectuais pequeno-burgueses pode experimentar estados de ânimo, êxtase e entusiasmo, mas essas mudanças de humor correm o risco de se transformar muito em breve em seu oposto.
Perdendo a fé na força da classe trabalhadora, a intelectualidade cede à pressão da reação e se move para a direita. Os ideais de luta coletiva dão lugar à busca de soluções individuais. Subjetivismo, relativismo e agnosticismo, em outras palavras, idealismo filosófico, começam a ganhar terreno.
Eles inventam todos os tipos de idéias fantasiosas para explicar as causas das derrotas. Eles sempre culpam a classe trabalhadora por seus próprios fracassos. E invariavelmente começam a tagarelar sobre a necessidade de “novas idéias” e de “liberdade para criticar”, para dar um fim à “ortodoxia sufocante” (o marxismo) que, em sua opinião, os decepcionou.
“Liberdade de crítica”
Na Rússia, entre 1906 e 1908, apareceu uma série de livros e artigos escritos por Alexander Bogdanov, Anatoly Lunacharsky e VA Bazarov, além de outros intelectuais de esquerda, como o menchevique Pavel Yushkevich e o principal teórico do Partido Socialista-Revolucionário, Viktor Chernov. O principal argumento dessas obras era que o marxismo estava “antiquado” e que precisava ser atualizado, preenchendo-o com as “novas” descobertas feitas por Mach e Avenarius.
Mas o marxismo é uma visão de mundo unificada e harmoniosa. Não é uma coleção de boas ideias, cada uma das quais podendo ser alterada à vontade. Esses chamados “pequenos ajustes” equivaliam, na prática, a uma negação completa do marxismo e de sua filosofia materialista.
Essas ideias não eram apenas fundamentalmente erradas, mas também começavam a encontrar eco nas fileiras dos bolcheviques – até mesmo no nível da liderança. Bogdanov era, naquele estágio, uma das pessoas mais proeminentes no comitê central bolchevique e membro do conselho editorial do jornal bolchevique, Vperiod. No período anterior à revolução de 1905, ele e outros que seguiam sua linha filosófica desempenharam um papel proeminente. Ele também estava construindo uma reputação como especialista na questão da filosofia.
No entanto, ser bem lido no campo da filosofia não significa necessariamente que alguém o compreenda. Bogdanov e seus seguidores revelaram repetidamente que sua compreensão da teoria marxista era acanhada e bastante superficial, tendendo a esquemas e fórmulas rígidas. Eles exibiam uma completa falta de compreensão da filosofia marxista: o método dialético era bastante estranho para eles, fato que mais tarde os conduziria a uma série de erros ultra-esquerdistas no campo da tática.
Como outros revisionistas antes (e desde então), os bolcheviques “machistas” levantaram o grito pela “liberdade de crítica”. Eles insistiam que não eram contra o marxismo, mas que apenas desejavam “atualizá-lo”, de acordo com as “últimas descobertas” da ciência e da filosofia.
Mas isso era apenas um estratagema e uma distração do fato de que estavam se afastando do marxismo e de que queriam arrastar o partido junto com eles. Lenin foi muito claro sobre isso:
O camarada Sazhin … exige que aos “membros do partido” deva ser “garantida total liberdade para seu pensamento revolucionário e filosófico”.
Este slogan é totalmente oportunista. Em todos os países, este tipo de slogan foi apresentado nos partidos socialistas apenas por oportunistas e, na prática, significou apenas “liberdade” para corromper a classe trabalhadora com a ideologia burguesa. “Liberdade de pensamento” (leia-se: liberdade de imprensa, expressão e consciência) nós exigimos do Estado (não de um partido) juntamente com a liberdade de associação. O partido do proletariado, no entanto, é uma associação livre, instituída para combater os “pensamentos” (leia-se: a ideologia) da burguesia, para defender e pôr em prática uma visão de mundo definida, a saber, o marxismo … Alguns Vperiodistas desejam com todo o seu coração e alma arrastar o proletariado de volta para as idéias da filosofia burguesa (“machismo”), enquanto outros são indiferentes à filosofia e apenas exigem “liberdade total” … para o “machismo”. (V. I. Lenin, “The Vperiod Faction”, 1910.)
A Bíblia nos diz que não há nada de novo sob o sol. E, na realidade, não havia nada de novo nem nas ideias de Mach e Avenarius, nem nas alegações dos “machistas” russos de possuírem uma atualização do marxismo. Marx e Engels travaram muitas lutas contra o revisionismo idealista, sendo o caso mais famoso a polêmica de Engels contra Eugen Dühring.
Ao longo da história do movimento revolucionário dos trabalhadores, de vez em quando algumas pessoas inteligentes se apresentam com afirmações de que desejam atualizar o marxismo. Bogdanov e seus correligionários eram exatamente esse tipo de pessoa. Na prática, esses elementos refletem as pressões de classes alheias.
A classe trabalhadora não existe no vácuo, é cercada por outras classes e camadas sociais cujas visões de classe podem encontrar um reflexo dentro do movimento operário. A luta de classes, portanto, não é apenas uma luta econômica e política, mas também uma luta filosófica, como Lenin repetidamente enfatizou.
A luta de Lenin contra o revisionismo
Lenin nunca escondeu suas diferenças com Bogdanov na questão da filosofia. Mas, por vários anos, estava disposto a colaborar com ele e colocar suas outras habilidades em benefício do partido. Porém, assim que Lenin se deu conta das tentativas sistemáticas de minar a base filosófica do marxismo, declarou guerra aos “machistas”. Ele embarcou em uma luta determinada para defender as idéias fundamentais do marxismo contra o revisionismo. A expressão máxima dessa luta foi a publicação, em 1909, de Materialismo e Empiriocriticismo. Na época, Lenin escreveu a Máximo Gorki, que era amigo próximo de Bogdanov e de Lunacharsky e simpatizava com algumas de suas opiniões:
Agora apareceram os Estudos na Filosofia do Marxismo [Uma série de artigos surgidos de um simpósio organizado por Bogdanov e seus aliados – Alan Woods]. Li todos os artigos, exceto o de Suvorov (estou lendo agora), e cada artigo me deixou furiosamente indignado. Não, não, isso não é marxismo! Nossos empiriocriticistas, empiriomonistas e empiriosimbolistas estão se afogando em um pântano. Tentar persuadir o leitor de que a “crença” na realidade do mundo externo é “misticismo” (Bazarov); confundir da maneira mais vergonhosa materialismo com kantismo (Bazarov e Bogdanov); pregar uma variedade de agnosticismo (empiriocrítica) e idealismo (empiriomonismo); ensinar aos trabalhadores o “ateísmo religioso” e a “adoração” das potencialidades humanas superiores (Lunacharsky); declarar o ensino de Engels sobre dialética como misticismo (Berman); tirar do poço fétido alguns “positivistas” franceses e outros, agnósticos ou metafísicos, que o diabo os carregue, com sua “teoria simbólica da cognição” (Yushkevich)! Não, realmente, é demais. Certamente, nós, marxistas comuns, não somos bons em filosofia, mas por que nos insultar servindo-nos essas coisas como a filosofia do marxismo?! Prefiro me deixar ser pego e esquartejado do que consentir em colaborar em um órgão ou organização que prega essas coisas. (V. I. Lenin, “A Letter to A. M. Gorki”, 1908.)
Este não foi de forma alguma um debate sobre doutrinas filosóficas obscuras. Foi uma luta pela alma do movimento revolucionário. Lenin foi muito claro sobre o que o ataque do “machismo” efetivamente significava:
… Temos entre nós pessoas que gostariam que os considerássemos marxistas, mas que trazem às massas uma filosofia que se aproxima muito do fideísmo. [1] (V.I Lenin, Materialismo e Empiriocriticismo, Wellred Books, 2021, p. 55.)
Materialismo e idealismo
O esboço principal da filosofia marxista (materialismo dialético) foi explicado por Friedrich Engels no Anti-Dühring e em Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. Aqui, Engels escreve que as tendências filosóficas fundamentais são o materialismo e o idealismo. Em seu livro, Lenin explica a diferença entre essas tendências filosóficas:
O materialismo considera a natureza como primária e a consciência como secundária; coloca o ser em primeiro lugar e o pensamento em segundo. O idealismo defende a visão contrária. Engels toma como pedra angular essa distinção básica entre os “dois grandes campos” em que os filósofos das “várias escolas” do idealismo e do materialismo estão divididos e acusa diretamente de “confusão” àqueles que usam os termos idealismo e materialismo de qualquer outra forma. (Ibid., P. 74.)
A luta de Lenin foi, em primeiro lugar, para trazer à luz a distinção fundamental entre idealismo e materialismo e para introduzir clareza quanto ao significado real do “machismo”, que, na verdade, não passava de uma forma de idealismo. Ele atacou impiedosamente os “machistas” russos por seu motim conta a submissão e exigiu que eles saíssem ao campo de luta “para acertar contas de forma aberta, explícita, resoluta e clara com os pontos de vista que eles haviam abandonado” (Ibid., p. 2.).
Como costuma acontecer com os revisionistas, Bogdanov e Lunacharsky tentaram disfarçar sua ruptura com o marxismo por meio de uma série de truques e ardis desonestos. Mas Lênin lhes arrancou impiedosamente a máscara para revelar o conteúdo idealista reacionário que estava por baixo.
Passo a passo, capítulo após capítulo, este livro expõe o idealismo em todas as suas formas. Da mesma maneira cabal com que Engels respondeu às ideias de Dühring, Lenin cita extensamente os escritos filosóficos dos “machistas” russos, bem como os escritos de outros cientistas e filósofos.
Algumas pessoas reclamam que o livro de Lenin é de leitura pesada. Talvez sim. Mas a única maneira de responder a ideias falsas, sem ser acusado de distorção ou mal-entendido, é precisamente citando o que está escrito, palavra por palavra. É isso que Lenin faz, e ninguém pode reclamar que ele não trata seus oponentes com justiça.
Mas, por isso mesmo, ele tem o direito de fazer o julgamento mais severo sobre eles – o que não hesita em fazer. Ele os chama de idiotas e outras coisas que não estamos acostumados a ouvir em salas de seminários universitários. Mas, como sabemos muito bem, lá também não faltam idiotas, mesmo que ninguém se atreva a chamá-los pelo nome adequado.
O objetivo de Lenin era muito simples: trazer à luz a diferença real entre o materialismo dialético marxista e o idealismo subjetivo dos “machistas”. Nisso ele teve um brilhante êxito.
Analisando os diferentes matizes e expressões do “machismo” internacionalmente, Lenin enfatizou que em “cada questão filosófica levantada pela nova física, nós [identificamos] a luta entre o materialismo e o idealismo” (Ibid. P. 283.) E ele mostrou que:
Por trás da massa de novos dispositivos terminológicos, por trás do lixo da escolástica erudita, sempre discernimos dois alinhamentos principais, duas tendências fundamentais na solução de problemas filosóficos. Se a natureza, a matéria, o mundo físico, o mundo externo devem ser considerados primários, a consciência, a mente, a sensação (a experiência, como diz a terminologia difundida de nosso tempo), o psíquico etc. devem ser considerados secundários – esta é a questão básica que, de fato, continua a dividir os filósofos em dois grandes campos. (Ibid.)
Lenin levou tão a sério essa luta ideológica que estava preparado para romper com toda a liderança da facção bolchevique nessas questões. A divisão ocorreu em 1909, quando Lenin escolheu romper com Bogdanov e Lunacharsky em vez de fazer a menor concessão ao revisionismo na filosofia, ao formalismo sectário e à política ultra-esquerdista deles. Isso ocorreu depois de quase dois anos de luta interna. No entanto, na época em que ocorreu a cisão, Lenin havia conseguido conquistar a maioria do partido para a posição do materialismo dialético, e foram Bogdanov e os “machistas” que partiram.
Idealismo e religião
O materialismo rejeita a noção de que a mente e a consciência são algo separado da matéria. O pensamento é apenas o modo de existência do cérebro, que, como a própria vida, é apenas matéria organizada de uma certa maneira. A mente é o que chamamos de soma total da atividade do cérebro e do sistema nervoso. Mas, dialeticamente, o todo é maior do que a soma das partes. Essa visão corresponde intimamente às descobertas da ciência, que está gradualmente descobrindo o funcionamento do cérebro e revelando seus segredos.
Em contraste, o idealismo persiste em apresentar a consciência como um “mistério”, algo que não podemos compreender. Isso confunde o vínculo físico e causal entre a mente pensante e o corpo humano. A chamada “questão mente-corpo” surge devido ao fato de que os fenômenos mentais parecem ser qualitativamente diferentes dos corpos físicos dos quais parecem depender. O materialismo consistente, entretanto, afirma que a mente e o corpo são uma só substância.
A tendência idealista na filosofia é pelo menos tão antiga quanto Platão e Pitágoras, que viam o mundo físico como uma imitação pobre da Ideia perfeita (Forma), que existia antes de o mundo chegar à existência. Esta é uma visão que se encaixa muito bem nos interesses criados do lobby religioso, que é bastante ativo na defesa de tudo o que ainda pode ser defendido dos preconceitos primitivos sobre a alma, uma vida após a morte e todas as demais bobagens religiosas que se acumularam no cérebro humano desde os tempos mais remotos e primitivos. Escondidas por trás da fachada respeitável do idealismo filosófico, estão a religião e a superstição. Supunha-se que “a alma imaculada e eterna” estava trancada dentro do corpo material imundo, imperfeito e de vida curta, ansiando pela liberação no momento da morte, quando “desencarnamos” e flutuamos até o Paraíso (se tivermos sorte).
Ao longo da história, a religião tem sido uma barreira para o avanço da ciência. A Igreja é hostil ao avanço do conhecimento porque cada passo dado à frente na ciência remove mais uma base da superstição religiosa. A religião é baseada na fé cega, não no conhecimento. Baseia-se no medo do desconhecido e, portanto, o desconhecido é seu maior aliado. É por isso que todas as religiões são baseadas no misticismo, obscurantismo, milagres etc.
A Igreja tentou bloquear o caminho do progresso e da ciência com as fogueiras da Inquisição, mas sem êxito. Os séculos 16 e 17 foram um período em que a filosofia ainda mantinha todo o seu vigor. Suas ideias eram relevantes, de uma forma que não são mais. Filosofia realmente era ciência e filosofia da ciência. Neste admirável mundo novo, parecia que Deus não tinha lugar.
Isaac Newton, um teísta, forneceu a Deus um papel em seu universo mecânico: o de proporcionar um impulso inicial. Mas depois dessa tarefa elementar, não havia realmente mais nada para o Todo-Poderoso fazer pelo resto da eternidade. A nova filosofia forneceu uma base para o ateísmo, e os defensores da fé estavam bem cientes disso.
O oponente mais declarado do materialismo na época foi George Berkeley (1685-1753). Berkeley era um inglês que se tornou bispo de Cloyne, na Irlanda. Como resposta final e definitiva ao materialismo, ele argumentou que a própria matéria não existia e que o mundo só existia quando estava sendo observado. Ele atacou o conceito de matéria com o fundamento de que era tão contraditório que era inútil na busca do conhecimento.
Lenin mostra claramente a relação entre a filosofia idealista e o clericalismo, citando longamente as obras do Bispo Berkeley e outros protagonistas da Igreja:
“Porque assim como demonstramos que a doutrina da Matéria ou da Substância Corpórea foi o principal pilar e suporte do Ceticismo, da mesma forma, sobre o mesmo fundamento, foram levantados todos os esquemas ímpios do Ateísmo e da Irreligião … Quão grande amiga a substância material foi para os ateus de todas as idades era desnecessário relatar. Todos os seus sistemas monstruosos têm uma dependência tão visível e necessária dela que, quando se remove esta pedra angular, todo o tecido não tem escolha senão cair no chão, de tal forma que já não vale a pena outorgar uma consideração particular aos absurdos de cada seita miserável de ateus.” (Ibid., p. 12.)
Como podemos ver acima, o bispo Berkeley desenvolveu seu idealismo subjetivo como uma resposta ao que ele via como o ateísmo materialista de Newton e dos outros cientistas de sua época. Ele rejeitou o cálculo infinitesimal de Newton e Leibniz porque o reconhecimento da divisibilidade infinita do “espaço real” contradizia os postulados básicos de sua filosofia.
Ele habilmente usou os argumentos do empirismo para refutar o materialismo e defender a religião. Ele fez isso deliberadamente para combater o ateísmo que ele sentia – muito corretamente – estar ganhando terreno como resultado do progresso da ciência.
O Bispo Berkeley mostrou muito engenhosamente que a lógica do empirismo, quando levada ao extremo, nos leva à conclusão de que não podemos provar a existência do mundo físico independente de nossos (meus) sentidos. Partindo da proposição inegável “Eu interpreto o mundo através dos meus sentidos“, ele chegou à conclusão de que não posso conhecer nada, exceto minhas sensações.
No lugar da declaração de Locke “Nihil est in intellectu quod non sit prius in sensu” (“Nada está na mente que não esteja primeiro nos sentidos”), Berkeley afirmou: “esse est percipi“, isto é, “ser é ser observado”. As coisas só podem existir na medida em que são percebidas. Portanto, é impossível dizer com alguma certeza que o mundo existe fora da minha percepção sensorial. Essa doutrina filosófica, onde o sujeito determina o ser, é chamada de idealismo subjetivo.
Mas havia uma falha fatal no caso de Berkeley. A lógica inescapável de seu argumento é o solipsismo – só eu existo. Visto que minha percepção sensorial determina o ser, portanto, não posso provar a existência de nada além de mim mesmo. Mas se for esse o caso, onde é que Deus entra nisso? Certamente ele também deve ser apenas uma invenção da minha imaginação – apenas mais um “conteúdo sensorial”.
Berkeley não era um idiota. Como veremos, ele estava bem ciente desse fato inconveniente, que tentou contornar postulando a existência de uma multiplicidade de substâncias espirituais e também de uma “mente cósmica” (Deus).
Esse dilema foi tema de uma poesia cômica, que é a seguinte:
Certa vez um jovem disse “O Todo-Poderoso
Deve achar curioso
Pensar que a árvore aqui
Deve continuar a existir
Sem que haja ninguém em seu entorno.”
Resposta:
Estimado senhor, seu espanto é curioso;
Estou sempre no entorno.
Por isso a árvore aqui
Continuará a existir
Observada por, seu querido, O Todo-Poderoso.
(R. Knox, Deus no Entorno)
O poema é divertido e engenhoso, mas só é de sério interesse para quem sente a necessidade de invocar um Espírito invisível para provar que a árvore que olhamos realmente existe. Antes de darmos esse salto de julgamento, no entanto, o que precisa ser demonstrado não é a realidade de uma árvore, que todos podemos ver, mas de um Espírito invisível, que, por definição, não podemos.
A teoria do conhecimento
A teoria do conhecimento – também conhecida como epistemologia – ocupa um lugar central na história da filosofia e está no cerne da diferença entre o materialismo filosófico e o idealismo.
A chamado “questão sujeito-objeto” ocupou a atenção dos filósofos durante séculos. Ela está preocupada com a análise da experiência humana, e do que, dentro da experiência, é “subjetivo” ou “objetivo”.
Como conhecemos o mundo “fora” de nós? A questão é colocada em termos de uma dicotomia:
a) o “sujeito” pensante (“eu”), e
b) o objeto do pensamento (o mundo “externo”).
Essa questão já foi levantada nos escritos de Aristóteles, mas no sentido moderno – epistemológico – data do século 17, levantada por filósofos burgueses como René Descartes e John Locke. Descartes, que era um idealista, introduziu a noção de dualismo. O dualismo de Descartes descreve a mente e o corpo como duas substâncias totalmente separadas. Daí o elemento “dual”.
O erro é tratar a consciência como uma “coisa”, uma entidade independente, separada e à parte da atividade sensorial humana. A dificuldade intransponível com o dualismo é esta: se a mente é totalmente diferente do corpo físico, como podem interagir?
Agora sabemos o que Descartes não sabia sobre o funcionamento da natureza, o mundo das moléculas, dos átomos e das partículas subatômicas, dos impulsos elétricos que governam o funcionamento do cérebro. No lugar de uma alma misteriosa, estamos começando a adquirir uma compreensão científica de como o corpo e o cérebro humanos funcionam.
As descobertas da ciência moderna baniram para sempre a noção da consciência como uma “coisa” independente. No entanto, por estranho que possa parecer, esse absurdo místico não carece de defensores mesmo no século 21.
Sujeito, objeto e dialética
A primeira questão é “o que” se sabe. O segundo problema é “como” sabemos o que sabemos. Isso é essencialmente o que a epistemologia tenta responder.
É uma proposição elementar que interpretamos o mundo por meio de nossos sentidos. Essa afirmação, na realidade, é pura tautologia, visto que não posso possuir nenhum conhecimento do mundo sem olhos, ouvidos, mãos e cérebro. O idealismo subjetivo interpreta isso como significando que, na realidade, não posso ter nenhum conhecimento real do mundo fora de minhas próprias sensações.
Para usar a expressão do filósofo positivista lógico A. J. Ayer, tudo que posso conhecer são meus “conteúdos sensoriais”.
O chamado problema do conhecimento só surge quando a consciência é considerada:
a) como algo separado de um corpo físico, e
b) como algo separado do mundo material.
Na realidade, o idealismo subjetivo e o dualismo filosófico são apenas uma idealização da separação rígida entre trabalho mental e manual. Com efeito, a mistificação do pensamento humano é levada a tal extremo que se alega que apenas o meu pensamento é real. “O lado daqui” é justaposto ao “lado de lá” como se os dois estivessem separados por uma barreira impenetrável.
O materialismo dialético parte da proposição de que o mundo objetivo existe independentemente do sujeito, mas os dois fazem parte de uma unidade dialética. A consciência não é uma “parede” separando sujeito e objeto, mas uma ponte que conecta os dois. O próprio sujeito é um objeto, na medida em que os humanos estão sujeitos às leis objetivas da natureza e da sociedade.
Mas, por meio de sua atividade subjetiva, os humanos podem interagir e o fazem com o mundo objetivo que os cerca, modificando profundamente não apenas a natureza, mas também a sociedade.
Assim, sujeito e objeto não são antíteses eternamente fixas e imutáveis, mas podem mudar e mudam de lugar, um passando ao outro. Eles reagem constantemente uns aos outros como resultado da prática socioeconômica da humanidade. É na prática, e não na contemplação passiva, que homens e mulheres transformaram constantemente seu ambiente e, portanto, transformaram-se a si mesmos.
Isso não está necessariamente relacionado ao pensamento, uma vez que a maioria das modificações ocorreu sem qualquer planejamento ou pensamento consciente. Essas transformações são o resultado da atividade sensorial humana: do trabalho humano, desde o trabalho com ferramentas de pedra primitivas à atividade dos reatores nucleares.
[1] A palavra fideísmo vem de fides, a palavra latina para fé, e é uma teoria que sustenta que a fé é independente da razão, e que a fé é superior para se chegar a verdades particulares.