Em 2 de maio do ano passado, fez 500 anos que Leonardo da Vinci morreu, em 1519. Da Vinci era um gigante absoluto na história do pensamento e da cultura humanos. Alan Woods presta homenagem ao grande artista, cientista e filósofo, cuja vida e ideias foram revolucionárias em muitos campos.
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“Obstáculos não podem me esmagar. Todo obstáculo cede à severa determinação. Quem está fixado a uma estrela não muda de ideia”. (Leonardo da Vinci, 1452-1519)
A Renascença
Existem períodos na história da humanidade que representam pontos de virada fundamentais. Tais períodos são caracterizados por grandes transformações sociais, políticas e culturais. Ideias, hábitos e tradições que foram aceitos inquestionavelmente por séculos ou mesmo milênios são subitamente desafiados. A sociedade se encontra em um estado de fermentação, uma fermentação que também afeta a mente de homens e mulheres. Um modo de vida que se tornou velho e decrépito começa a cambalear. Embora as pessoas não entendam o que está acontecendo, todos sentem que uma mudança fundamental se aproxima. Esse período de convulsão social se reflete necessariamente em profundas mudanças na religião, filosofia e arte.
O século 16 viu o culminar da expansão do poder da burguesia em um dos períodos mais marcantes da história da humanidade. Conhecido na Alemanha como Reforma, na Itália como Rinascimento e na França como Renaissance, deu origem a um extraordinário florescimento da cultura, arte e ciência. Nunca antes ou depois o mundo testemunhou uma tal galeria de heróis e gênios. Até hoje, as produções artísticas desse período único da história permanecem inigualáveis. Ele estabeleceu um padrão pelo qual as realizações artísticas de toda a história subsequente são medidas.
Engels descreve a Renascença assim:
“Foi a maior revolução progressista que a humanidade havia experimentado até então, uma época que exigia gigantes e produzia gigantes – gigantes em poder de pensamento, paixão e caráter, em universalidade e aprendizado. Os homens que fundaram o governo moderno da burguesia tinham tudo menos limitações burguesas. Pelo contrário, o caráter aventureiro da época os inspirou em maior ou menor grau. Quase não havia homem de importância na época que não tivesse viajado muito, que não falasse quatro ou cinco idiomas, que não brilhasse em vários campos. Leonardo da Vinci não era apenas um grande pintor, mas também um grande matemático, mecânico e engenheiro, a quem os mais diversos ramos da física são devedores de importantes descobertas. Albrecht Durer foi pintor, gravador, escultor e arquiteto e, além disso, inventou um sistema de fortificação que incorporava muitas das ideias que muito mais tarde foram retomadas por Montalembert e pela moderna ciência alemã da fortificação. Maquiavel foi estadista, historiador, poeta e, ao mesmo tempo, o primeiro autor militar notável dos tempos modernos. Lutero não apenas limpou o estábulo augiano da Igreja, mas também o da língua alemã; ele criou a prosa alemã moderna e compôs o texto e a melodia daquele hino triunfal imbuído de confiança na vitória que se tornou a Marselhesa do século 16. ” (Engels, Dialética da Natureza, Moscou, 1974, pp. 20-2.)
As raízes deste período extraordinário encontram-se na última metade do século 15, quando o longo declínio do feudalismo na Europa Ocidental deu origem às grandes monarquias absolutas, que antecipavam os modernos estados-nações europeus. Apoiando-se nos burgos das cidades, as monarquias absolutas conseguiram quebrar o poder da antiga nobreza feudal. A burguesia utilizou sua influência para forçar concessões do poder central na forma de cartas e privilégios reais. Aqui, em resumo, já vemos a ambição e o poder crescente da burguesia, que, finalmente, resultaram na derrubada das monarquias na Inglaterra e na França.
Arte e ascensão da burguesia
A burguesia jovem estava com pressa de se livrar dos trapos fétidos do feudalismo. Abraçou avidamente novas ideias, novas filosofias, nova ciência e novas formas de arte. Hoje em dia, a relação entre a ascensão da burguesia e a luta contra a ideologia dominante da Igreja Católica Romana é clara para todos. A luta entre classes hostis refletiu-se na luta entre religiões rivais que encontraram expressão naquilo que chamamos de Reforma, nas revoluções holandesa e inglesa e nas guerras religiosas que ocorreram na Europa ao longo do século 17. Mas muito antes disso, a burguesia e as massas estavam envolvidas em uma luta de vida ou morte contra a Igreja.
Com a decadência do feudalismo e a ascensão da burguesia, novas formas artísticas e literárias começam a aparecer. Elas surgem nas ricas cidades-Estado flamengas, com sua nova classe de comerciantes ricos. Os novos métodos de produção capitalista encontraram expressão na arte. Jan van Eyck, uma das figuras mais destacadas dessa escola, realizou oficinas com muitos aprendizes – assim como as primeiras fábricas que revolucionaram o processo produtivo. Eles eram, de fato, fábricas de arte. O próprio Van Eyck não era apenas um artista, mas um alquimista, a quem se atribui a invenção da pintura a óleo.
A partir de 1420, os retratos se tornam muito mais realistas. Os rostos são indivíduos reconhecíveis. Esta foi uma verdadeira revolução na arte. A nova arte surgiu primeiro na Itália e em Flandres – especialmente em Ghent e Bruges (os assim chamados primitivos flamengos). Na realidade, não há nada de primitivo nessas pinturas. São obras extremamente sofisticadas e complexas, inspiradas por um forte senso de observação e realismo vívido. Particularmente notável é o efeito da luz e da sombra, que são fortemente contrastadas.
O novo estilo de arte envolvia técnicas revolucionárias de grande sofisticação, que permitiam ao artista retratar detalhes nunca antes vistos – o fio de ouro em um vestido, as dobras de uma capa, o brilho dos raios de sol nas armaduras, o reflexo em um espelho polido, os quais apresentam dificuldades técnicas especiais. O pintor britânico moderno David Hockney acredita que esses artistas usaram técnicas desenvolvidas graças às recentes descobertas científicas em óptica: a câmera escura e as lentes, a fim de alcançar a qualidade quase fotográfica de seu realismo. Um exemplo é o célebre retrato de casamento de van Eyck, com seu espelho e lustre.
O novo realismo também estava ligado a um novo espírito de invenção, ao estudo da proporção e da anatomia, à invenção de novas cores e, sobretudo, à descoberta da perspectiva. A perspectiva matemática do tipo renascentista era desconhecida na Idade Média. Antes da Renascença, Deus Pai é mostrado como muito maior que as figuras humanas, enfatizando assim a insignificância humana em relação ao Todo-Poderoso. Mais uma vez, foi a Renascença, aquele maravilhoso amanhecer do espírito humano, que rompeu com o padrão.
A essa altura, as cidades em todos os lugares haviam adquirido um considerável grau de independência, embora formalmente permanecessem sob o domínio da monarquia absoluta. Muito antes de a burguesia exigir “governo barato”, exigia religião barata. O conflito entre a nascente burguesia e a Igreja Católica Romana – o conflito central durante todo o período do nascimento do capitalismo – foi parcialmente determinado pelo fato de a Igreja fornecer o principal suporte moral e religioso para a ordem feudal existente.
Esse foi o período em que a burguesia estava desempenhando um papel progressista, lutando para se libertar dos grilhões do feudalismo que estavam impedindo seu desenvolvimento. A ideia de liberdade começou a tomar forma na imaginação dos homens: em primeiro lugar, liberdade em relação à mão morta da religião e da Igreja Católica Romana, o que, eventualmente, levou a Lutero e à Reforma.
Itália
No início dos anos 1400, o novo espírito estava se agitando na Europa. Mesmo antes disso, foi antecipado na Itália o verdadeiro berço da civilização europeia. A grande riqueza de cidades como Florença, Gênova, Milão e Veneza, com suas poderosas famílias dominantes de príncipes mercantes, criou as condições objetivas para um florescimento da arte que era incomparável desde os tempos antigos.
Nesse caldeirão fervilhante da vida intelectual, novas escolas de arte estavam surgindo, associadas a homens como Giotto di Bondone, Botticelli, Fra Filippo Lippi, Piero della Francesca, os Bellinis, Giorgione, Della Robbia. Depois vem uma galáxia de gigantes: Ticiano, Michelangelo, Rafael e, elevando-se sobre todos eles, Leonardo da Vinci. Esses desenvolvimentos na Itália ocorreram paralelamente em outras partes da Europa: Dürer e Holbein na Alemanha e Rubens e os Brueghels na Holanda.
O novo espírito aparece não apenas nas artes visuais mas também na literatura. O avanço é personificado na figura colossal de Dante Alighieri (1265-1321), que pode ser visto como o último escritor da Idade Média e o primeiro escritor da nova era. Petrarca e Boccaccio foram, junto com Dante, as maiores figuras literárias desse período. No Decameron de Boccaccio, temos os germes do romance moderno.
Maquiavel (1469-1527) foi um dos maiores intelectos desta época de grandes pensadores. Sua reputação moderna como intriguista sem princípios é completamente inadequada. Na verdade, ele foi um grande estudioso e pensador da Renascença. Sua História de Florença (que Marx admirava muito) é uma das primeiras obras-primas da escrita da história. Descreve com precisão as violentas lutas de classes que ocorreram nas cidades-Estados italianas da época. Maquiavel foi o primeiro escritor a fornecer uma análise científica do estado, desprovida de todo adorno moralista e idealista e a revelar sua essência como corpos armados de homens.
A nova arte está intimamente ligada à ascensão da burguesia. E com a ascensão da burguesia, vemos a ascensão do individualismo na arte. Essa é a era do individualismo, a vigorosa afirmação dos direitos do homem. É também, e por essa mesma razão, a idade do retrato individual. Na Idade Média, tal coisa estaria fora de lugar, se não completamente blasfema. O olhar do homem deveria estar voltado para cima, para os céus e a vida além do túmulo, e não para a vaidade deste mundo.
Até agora, o assunto apropriado da arte era Deus, não o Homem. Mas, assim como Copérnico e Galileu fizeram o mundo girar em torno do sol, a perspectiva humanista do mundo renascentista fez a arte girar em torno de seres humanos reais. Tal coisa seria impensável no período medieval. Pela primeira vez, temos o rosto de homens e mulheres reais e identificáveis. Aqui está um elemento novo e revolucionário: realismo e intimidade humana. Nasceu o espírito de uma nova era: a era do indivíduo.
Não é por acaso que a Itália desempenhou um papel tão marcante no período formativo da Renascença. A Itália (juntamente com a Holanda) foi o berço do capitalismo. Nas cidades do norte e centro da Itália, a burguesia nascente já estava flexionando seus músculos e adquirindo sua própria voz, tornando-se cada vez mais assertiva. Famílias mercantes poderosas dominavam a vida de Florença, como Maquiavel descreve graficamente em sua História de Florença.
Como o país onde a burguesia colocou pela primeira vez a sua marca na sociedade, lançando as bases para um novo tipo de civilização, a Itália legou à humanidade uma galáxia brilhante de artistas e escritores. As primeiras agitações do capitalismo podem ser vistas na Itália nos séculos 13 e 14 e foram acompanhadas pela mais tremenda explosão de criatividade artística. A ascensão da burguesia italiana se expressou como uma série de cidades-Estados independentes. Na ausência de uma forte monarquia central, os hambúrgueres de Florença, Milão, Gênova e outras cidades prósperas estabeleceram cidades-Estados, que se equilibravam entre o imperador e o papa para manter sua autonomia. Essas cidades eram repúblicas em tudo, com exceção do nome, embora estivessem formalmente sob a proteção dos monarcas.
No entanto, houve um problema que acabou atrapalhando o desenvolvimento do capitalismo na Itália. A falta de unidade nacional e as nítidas divisões entre as cidades-Estados incentivaram a interferência contínua de potências estrangeiras. Já durante a Idade Média, a política italiana era caracterizada pela luta entre duas facções opostas, os guelfos e os gibelinos, os primeiros apoiando o papado, os últimos apoiando os imperadores alemães (romanos sagrados).
Isso contribuiu para conflitos crônicos nas cidades do norte da Itália ao longo dos séculos 13 e 14. Como resultado, durante séculos, a Itália foi um campo de batalha no qual exércitos franceses, alemães e espanhóis travaram guerras assassinas para obter controle sobre as riquezas do país. As divisões resultantes impossibilitaram o desenvolvimento da Itália como um estado-nação unificado. Assim, todo o potencial do desenvolvimento capitalista inicial foi desperdiçado por conflitos internos, guerras e conflitos entre facções.
Leonardo da Vinci
Leonardo era o homem renascentista por excelência. Mais do que qualquer outra pessoa, Leonardo foi responsável por arrastar a pintura para fora da Idade Média e efetuar uma verdadeira revolução artística. Já podemos discernir os contornos indistintos dessa revolução nas pinturas de Giotto, cem anos antes. Aqui os rostos são mais humanos. Como Leonardo, Giotto não se limitou à pintura, mas também projetou fortificações para a Florença do século 14. Mas o futuro está presente aqui apenas de forma não desenvolvida – como potencial ou embrião. Com Leonardo, assume o seu desenvolvimento mais completo.
Como vimos na citação acima, Engels prestou uma homenagem calorosa ao homem que, acima de tudo, encarnava o espírito inquieto da época em que viveu. E pode ser Leonardo em quem Engels estava pensando quando escreveu as seguintes linhas:
“[…] os heróis daquela época ainda não haviam estado sob a servidão da divisão do trabalho, cujos efeitos restritivos, com sua produção de unilateralidade, frequentemente notamos em seus sucessores. Mas o que é especialmente característico deles é que quase todos perseguem suas vidas e atividades no meio dos movimentos contemporâneos, na luta prática; eles tomam partido e se juntam à luta, um falando e escrevendo, outro com a espada, muitos com ambos. Daí a plenitude e força de caráter que os torna homens completos. Os homens do estudo são a exceção – pessoas de segundo ou terceiro escalão ou filisteus cautelosos que não querem queimar os dedos. ” (Introdução à Dialética da Natureza)
Sua mente ferozmente inquisitiva girava em uma direção e outra buscando problemas para resolver, e nisso ele espelhava todo o espírito de sua época. Mas, no momento em que solucionara um problema, ele parecia perder o interesse e procurar outros. Por esse motivo, ele frequentemente deixava os projetos inacabados e demorava muito tempo para concluir aqueles que, de fato, finalizava. Ele levou quatro anos para terminar a Mona Lisa. Em outros casos, ele apenas deixou pinturas para seus aprendizes terminarem por ele. Era como se não houvesse mundos suficientes para ele conquistar e não houvesse vidas suficientes para ele viver.
Ele era um arquiteto e um engenheiro que planejava o tunelamento de montanhas e a conexão de rios através de canais. Ele antecipou a teoria de Copérnico do movimento da terra e a classificação de animais de Lamarck em vertebrados e invertebrados. Ele descobriu leis da óptica, gravitação, calor e luz. Ele estava obcecado com o vôo dos pássaros e passou muito tempo estudando a possibilidade de construir uma máquina voadora.
Entre seus numerosos desenhos, encontramos um que antecipa um helicóptero. Ele também projetou um tanque e um paraquedas, vários séculos antes de essas coisas terem um uso central nos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial. Ele também desenvolveu uma filosofia dialética, na qual dizia que a vontade seria a energia da vida, e isso resume adequadamente o significado interno de sua própria vida, que alcançou muito mais do que várias vidas normais poderiam realizar.
O verdadeiro gênio de Leonardo só começou realmente a ser entendido em nossos dias. Surpreendentemente, pouco se sabe sobre sua vida e pessoa. Mas, no começo, ele estava seriamente em desvantagem. Os fatos conhecidos sobre sua vida são simplesmente declarados. Nascido em 1452, na pequena cidade toscana de Vinci, nas colinas acima do Arno, Leonardo era filho ilegítimo de um advogado. Ele nunca soube quem era sua mãe, embora ela o tenha amamentado quando bebê.
Os primeiros anos: em Florença
Isso pode explicar em parte por que tantas cenas em suas pinturas contêm figuras maternas e cenas delicadas da infância. Freud escreveu um livro tentando explicar a arte de Leonardo a partir desse fato. Mas a partir de fatos pessoais e psicológicos, pode-se explicar apenas uma pequena parte da criatividade de Leonardo. A maior parte só pode ser entendida como parte do grande mosaico histórico em que se desenvolveu. Leonardo foi forçado a se adaptar às condições da era turbulenta em que nascera. Isso explica por que ele dedicou tanto tempo e esforço a projetar armas e mecanismos de cerco para vender para as gangues rivais de bandidos ricos que chegaram ao poder nas cidades-Estados da Itália naquele momento.
Este foi um período de tremendas convulsões na sociedade – uma era de guerras e revoluções. No século 15, a Itália era um lugar especialmente violento e, em nenhum lugar, essa violência era mais feroz do que em Florença, onde dinastias rivais de comerciantes lutavam entre si pelo poder. Era uma das maiores cidades da Europa e estava bem no coração do Renascimento – uma cidade barulhenta e movimentada de 40 mil habitantes, com uma vida noturna tempestuosa e, às vezes, perigosa.
Leonardo não tinha educação formal. Ele sabia apenas um pouco de latim – a condição prévia para uma boa educação naqueles dias, mas essa falta de aprendizado formal de livros, longe de ser um impedimento, foi um fator que incentivou o desenvolvimento daquelas faculdades que o tornaram grande. Ele estava totalmente despreocupado com o aprendizado de livros e, em vez disso, aprendeu com o maior livro de todos – o livro da vida e da natureza. Ele começou sua vida artística, como era comum na época, como um humilde aprendiz em Florença, na oficina do escultor-pintor Verrocchio, onde trabalhou ao lado de Botticelli e Perugino.
O artista daqueles tempos ocupava um status bastante modesto na hierarquia social. Devemos lembrar que o artista daquela época não era membro de uma casta especial, mas apenas um artesão, em um nível semelhante a artesãos como os alfaiates ou fabricantes de selas. Enquanto jovem aprendiz, proletário artístico, Leonardo produziu coisas práticas em uma oficina que era realmente uma fábrica. O mestre pintaria as figuras principais de um cenário e os humildes aprendizes preencheriam os detalhes e as figuras secundárias.
Os aprendizes pintavam com têmpera de ovo, um meio de pintura de secagem rápida, composto por pigmento colorido misturado com um meio solúvel em água, como a gema de ovo. Mas Leonardo usava a nova técnica desenvolvida nos Países Baixos – tintas a óleo. Isso proporcionava uma gama muito maior de cores. Mais tarde, a tinta a óleo foi usada em todo o sul da Europa, mas nessa época era uma grande novidade.
De acordo com a bem conhecida anedota em Vidas dos Grandes Artistas, de Vasari, quando Verrocchio viu a figura que Leonardo havia pintado em seu quadro de Cristo sendo batizado por João, ele exclamou que nunca mais pintaria. Se essa anedota é genuína ou não, não está claro, mas certamente a parte de Leonardo na pintura era extraordinária. Não era sua única inovação. Em pinturas como A Adoração dos Reis Magos, existe um tipo de poder e energia brutos que é novo e chocante.
Mas, apesar de seu talento óbvio, ou talvez por causa disso, ele logo teve sérios problemas com as autoridades. Ele foi acusado duas vezes de sodomia (homossexualidade) em 1476. Era um crime grave, punível com a morte por queimadura. E ele de fato ficou preso por dois meses. Sozinho em sua cela, parece que estava desesperado quando escreveu em um pedaço de papel: “Estou sem amigos” e “se não há amor, então?” Ele teve sorte suficiente de ter amigos importantes que o libertaram.
Entre inúmeras outras imprecisões naquele filme absurdo O Código Da Vinci, Leonardo é descrito como um “homossexual extravagante“. No entanto, não há absolutamente nenhuma base histórica para essa afirmação. Embora houvesse rumores produzidos por seus contemporâneos de que Leonardo fosse homossexual, na verdade, sabemos quase nada de sua vida sexual. As acusações contra ele (que foram retiradas por falta de testemunhas) podem muito bem ter sido inventadas. Era costume dos habitantes deixarem denúncias anônimas no notório Bocca della Verità, e Leonardo foi acusado dessa maneira.
Acusar alguém de sodomia era uma tática frequentemente usada para causar problemas a alguém na Florença do século 15, e é perfeitamente concebível que o acusador possa ter sido um artista ciumento. Qualquer que seja a verdade, ele deve ter ficado profundamente chocado com a experiência. Ele logo chegou à conclusão de que Florença era um lugar perigoso demais para morar.
A segunda etapa: em Milão
Após esses eventos, Leonardo deixou Florença em 1481 e foi morar em Milão. Era uma cidade comercial próspera, ainda mais burguesa e consideravelmente mais pragmática que Florença. Mas o artista tinha outros motivos para viajar para Milão, uma cidade próspera no norte da Itália – uma cidade em expansão administrada por uma dinastia de gângsteres ricos com pretensões artísticas e muito dinheiro para apoiá-los. Ele era jovem e ambicioso, e tentou prosperar ao serviço de Ludovico Sforza, o duque de Milão.
Os Sforzas eram absolutamente típicos das dinastias dominantes que subiram ao topo na Itália naquele momento. Eles governavam com uma mão de ferro. O chefe do clã Sforza, Ludovico Sforza, era um rico parvenu com a obsessão típica de todos os nouveaux riches por classificação e criação. Ele pagou especialistas para elaborar uma árvore genealógica que rastreasse seus ancestrais, não para um aristocrata, mas para um deus. Vã e ambiciosa, a obsessão de Ludovico por hierarquia e genealogia tinha uma base material sólida.
A posse do poder por tais homens sempre foi um tanto tênue. O antecessor imediato de Ludovico havia sido esfaqueado 37 vezes por seus próprios cortesãos. Ele próprio estava inseguro em seu trono ducal, sua família sendo vista como pouco mais do que um monte de sapateiros presunçosos. Por esse motivo, Ludovico tentou aumentar seu status social, entre outras coisas, cercando-se de artistas e outros intelectuais de prestígio. Era tudo sobre poder e prestígio.
Leonardo tentou agradar seu novo patrono prometendo construir novos tipos de fortificações e máquinas militares. É interessante que, ao fazer seu pedido de emprego, ele não tenha apelado ao gosto artístico do duque, mas ao seu interesse mais prático pelas artes mecânicas – particularmente aquelas ligadas a mais importante – a arte da guerra. Ele investigou a composição dos explosivos. Ele inventou todos os tipos de coisas: moinhos de água, motores de guerra, incluindo um tanque, uma roda de pás para barcos, um canhão de carga na culatra e a bala de espingarda cônica.
Apesar de sua falta de educação formal, desde a juventude Leonardo mostrou uma profunda compreensão da matemática. Ele usou seu conhecimento de óptica tanto para a arte como para a engenharia. Ele projetou aquedutos e pontes. Ele até construiu um banheiro para a duquesa e administrou os banquetes, bailes e espetáculos luxuosos do duque. Era como se ele estivesse intoxicado com todo tipo de conhecimento. Ele investigou o vapor como uma potência locomotiva na navegação, atração magnética e a circulação do sangue. Ele até desenvolveu um protótipo para um automóvel. No entanto, ele recebeu menos do que o anão da corte.
Leonardo sabia que era necessário ter um patrono, mas ele se ressentia da situação de dependência e, em seu coração, se rebelava contra ela. Uma maneira de afirmar sua independência artística era sua recusa em ser apressado. Ele planejou uma enorme estátua equestre de Ludovico. Era para ser a maior estátua de um cavalo já construída. Dessa maneira, ele brincava astutamente com o desejo de Ludovico por todas as coisas grandiosas. Apesar da pressão contínua e uma enxurrada de reclamações, Leonardo manteve o duque esperando por 17 anos e, mesmo assim, só conseguiu produzir um modelo de terracota do cavalo.
A estátua estava destinada a nunca ver a luz do dia. Em 1498, um desastre aconteceu. A Itália havia atraído a atenção de potências estrangeiras. Os monarcas franceses e Habsburgos entraram em intrigas mortais com os papas para interferir nos assuntos italianos. No meio de guerras e intrigas, um exército francês sob Luís XII caiu sobre Milão. Quando as tropas francesas entraram na cidade, usaram o enorme modelo de terracota da estátua equestre de Leonardo para praticar tiro ao alvo, enquanto as 60 toneladas de bronze destinadas à fabricação da estátua foram derretidas para canhões. Mais uma vez, Leonardo foi forçado a fugir, desta vez para Mântua e depois para Roma.
A terceira etapa: em Roma
Em Roma, Leonardo trabalhou para mais um bandido rico cuja crueldade fez dele um terror para toda a Itália – o notório Cesare Borgia. Cesare tornara-se mestre de Roma por meio de uma combinação de determinação de ferro, audácia, total falta de escrúpulos e aquele elemento de boa sorte que frequentemente acompanha jogadores e aventureiros. Filho favorito do papa Alexandre, Cesare levara uma vida desprezível no Vaticano na companhia de prostitutas, bêbados e cortesãs.
Cansado dos rigores da vida religiosa, Cesare pediu a permissão dos cardeais e do papa para renunciar ao sacerdócio. Este último a concedeu “para o bem de sua alma”. Ele imediatamente tomou medidas que podem não ter contribuído muito para sua alma, mas fez maravilhas pelo avanço de seu estado mundano. Começando sua carreira política assassinando seu irmão e cunhado, ele tomou o poder em Roma. Um general de sucesso, seu estilo militar foi caracterizado por extrema crueldade.
Como resultado de suas façanhas bélicas, ele ganhou posse de extensos territórios, e o papa o designou duque de Romagna,mas ele foi ameaçado por uma série de conspirações organizadas principalmente pela poderosa família Orsini. Por uma combinação de astúcia desonesta e total crueldade, ele se manteve no poder. Mas, como Macchiavelli apontou, em última análise, seu sucesso dependia do apoio do papado, e isso provou ser uma fraqueza fatal. Quando seu pai morreu em 1503, sua boa sorte o abandonou. O novo papa, Pio III, prendeu-o e a ascensão do inimigo mortal dos Borgias, Júlio II, causou sua ruína final.
Quando Leonardo emigrou para Roma, tudo isso estava no futuro. Então, Cesare Borgia ainda era um dos governantes mais formidáveis de toda a Itália. Cesare não era um homem fácil de trabalhar. Sua ganância era insaciável e ele não podia aceitar nenhuma oposição. Pessoalmente, ele era sombrio, silencioso e antipático. No entanto, de alguma forma, Leonardo conseguiu conquistar sua benevolência. Em Roma, sua arte alcançou novos patamares. Ele estava levando a técnica artística ao limite de suas possibilidades.
Seu uso da luz solar e das sombras era altamente original e os efeitos, impressionantes. Aqui vemos um domínio perfeito da dialética da unidade dos opostos, expressa em luz e sombra. Ele deu uma profundidade de atmosfera à pintura florentina que ela nunca havia possuído antes. Nessas pinturas notáveis, objetos e pessoas retratadas parecem emergir da escuridão. Eles não parecem estar sozinhos, mas são parte integrante de seu entorno – parte de um todo orgânico. Esse senso de totalidade é uma visão muito dialética do mundo e transmite um sentido especial de poder e emoção às suas pinturas.
A introdução da perspectiva representou uma verdadeira revolução na arte representacional. Ela foi fundamentada no espírito científico da época. Com rigor característico, Leonardo Da Vinci identificou não um, mas três tipos diferentes de perspectivas. Com essas técnicas, Leonardo transformou a arte europeia para sempre. Leonardo desenhou seus modelos da vida real – do mercado e do bordel. Enquanto trabalhava em seu enorme afresco de A Última Ceia, ele percorreu a cidade fazendo esboços de pessoas para serem usadas como modelos. Diz-se que o resultado – quando finalmente terminou em 1498 – surpreendeu o duque.
Sua genialidade fez para si muitos rivais no mundo da arte, em que a competição feroz pelo patrocínio deu origem a guerras e intrigas que se assemelhavam àquelas que caracterizavam a vida política da época. Ele entrou em choque com artistas jovens e em ascensão como Rafael e, especialmente, Michelangelo, que o odiava com paixão.
Leonardo teve problemas em outra frente, muito mais perigosa. A sede do papado, Roma era uma cidade dirigida por sacerdotes e seus modos livres de pensar logo o colocaram em problemas intermináveis com seus patronos e o papa. Na pessoa de Leonardo, arte e ciência se encontram e se combinam para produzir obras de grande genialidade. Leonardo era um observador compulsivo dos fenômenos naturais. Essa combinação de arte e ciência parece se chocar com a nossa obsessão moderna com a divisão do trabalho. Mas, no mundo da Renascença, era bastante normal. Arte e ciência frequentemente andavam de mãos dadas. Elas estavam unidas na tecnologia e em certos tipos de engenharia. Leonardo é o exemplo perfeito dessa unidade.
“A natureza será minha amante“, ele teria dito. E é isso que é essencial em sua arte – ela está enraizada na observação aguçada e na experimentação incansável. É totalmente livre da mão morta da rotina e do culto servil da tradição. Nas figuras de Leonardo, vemos o resultado de uma observação cuidadosa da anatomia humana. Seus escritos estão impregnados do espírito do materialismo filosófico. Para ele, o livro mais importante não era a Bíblia ou Aristóteles. Era aquele grande e belo livro da natureza, um livro aberto para todos aqueles com olhos para ver. Ele escreveu:
“A sutileza humana nunca conceberá uma invenção mais bonita, mais simples ou mais direta do que a natureza, porque em suas invenções nada falta, e nada é supérfluo.”
E de novo:
“Aqueles homens que são inventores e intérpretes entre a Natureza e o Homem, em comparação com ostentadores e declamadores das obras de outras pessoas, devem ser considerados e, de outro modo, não devem ser estimados como o objeto diante de um espelho, quando comparados à sua imagem vista no espelho. Pois o primeiro é algo em si e o outro nada. Gente em dívida com a natureza, já que é apenas por acaso que eles vestem a forma humana e sem ela eu poderia classificá-los com os rebanhos de animais”.
Conta a história que ele entrou em uma caverna profunda (chamada Boca do Diabo) e descobriu fósseis marinhos, que, ele percebeu, devem ter se formado há muito tempo. Isso o levou a questionar a versão bíblica da criação. Ele certamente sustentou visões muito avançadas e subversivas sobre a religião em geral e ficou próximo do ponto de vista materialista. Ele se envolveu na dissecação de cadáveres. Ele fez isso em parte com o objetivo de estudar a anatomia humana, por interesse puramente científico, mas também para aperfeiçoar sua técnica artística.
Despejou àqueles que recorreram à autoridade de Aristóteles e aos filósofos da antiguidade, em vez de se basearem na observação e no experimento:
“Muitos pensam que podem razoavelmente me culpar, alegando que minhas provas são opostas à autoridade de certos homens, mantidos na mais alta reverência por seus julgamentos inexperientes; sem considerar que meus trabalhos são a questão da experiência pura e simples, que é a única verdadeira amante. Essas regras são suficientes para permitir que você conheça o verdadeiro do falso – e isso ajuda os homens a procurar apenas coisas possíveis e com a devida moderação – e não se envolver na ignorância, algo que não pode ter bons resultados, ao ponto de que em desespero você se entregaria à melancolia. ”
Tudo isso causou uma rachadura crescente com o Vaticano, que tentou chamá-lo à ordem. Mas a insaciável sede de conhecimento científico de Leonardo não seria extinta por algo tão trivial quanto a religião. Ele continuou a caminhar por uma estrada perigosa – a estrada que enviou Giordano às chamas da Inquisição e parou a boca de Galileu. No final, ele foi forçado a se exilar na França.
A tarefa do artista não é apenas a de espelhar a realidade de uma maneira impensada, mas transmitir um significado e sentimento especial ao que está sendo retratado: “O pintor que desenha apenas pela prática e pelo olho, sem qualquer razão”, escreveu Leonardo, “é como um espelho que copia tudo o que é colocado à sua frente sem ter consciência de sua existência”.
A Mona Lisa
Leonardo desenvolveu uma técnica conhecida como sfumato (esfumaçado), que produz um efeito borrado. Ele entendia que, na vida real, não existem linhas fixas – uma profunda ideia que foi exposta filosoficamente por Heráclito, de que tudo é e não é, porque tudo está em fluxo. A ideia por trás disto é a da mutabilidade permanente, em que tudo está mudando constantemente, se deslocando, de forma que é e não é. O efeito sfumato, que borra o contorno, paradoxalmente torna o rosto mais realista, e não menos, enquanto, ao mesmo tempo, introduz uma atmosfera de mistério. Em torno das bochechas e sob o queixo, vemos áreas de sombra (chiaroscuro) – o efeito dramático resulta da unidade frágil de elementos opostos de luz brilhante e escuridão.
O melhor exemplo disto é o seu trabalho mais celebrado, a Mona Lisa. A Mona Lisa é imediatamente reconhecível, uma vez que adquiriu o status de ícone. Para muitas pessoas, a Mona Lisa é Leonardo Da Vinci. E, como veremos, esta percepção popular não é totalmente errada. No entanto, o quadro que vemos hoje já não é mais o mesmo quando foi pintado. As cores brilhantes desapareceram em um tom marrom escuro. No original, o céu, os lagos e o rio foram pintados em vívido azul ultramarino, feito a partir dos preciosos lápis lazulita importados a alto custo de locais distantes como o Afeganistão.
A concepção dialética da unidade de “é e não é” permeia toda a imagem e é particularmente visível no famoso sorriso. Aqui, a contradição é explícita. Mais uma vez, o efeito sfumato significa que não existem linhas claras em torno dos lábios ou qualquer um dos contornos da face. O sorriso é capturado, não como algo fixo, mas como algo em movimento. O sorriso é ou vir a ser ou algo que está desaparecendo. O que se descreve aqui é a transição entre dois estados – seja da alegria para a tristeza ou da tristeza para a alegria. E toda a vida humana consiste de uma tensão constante entre estes dois polos opostos, flutuando entre eles.
Esta pintura foi tão especial para ele que recusou entregá-la à pessoa que a tinha encomendado; uma pintura que ele manteve com ele até sua morte e que é considerada por muitos como sua maior obra-prima. Este quadro, La Gioconda – mais conhecida como a Mona Lisa – fascinou gerações de amantes da arte por seu caráter misterioso e indefinível, que são também, em última análise, o resultado da utilização magistral da luz e da sombra.
Este quadro tem sido objeto de muitas especulações e perplexidades. Qual o significado desta mulher enigmática e de seu misterioso sorriso? Neste quadro, as coisas não são o que parecem ser. Ao primeiro olhar, este quadro parece respirar um sentimento de calma e tranquilidade. Ele retrata uma jovem mulher no que parece ser um estado de repouso absoluto contra um fundo de natureza pacífica. No entanto, esta impressão estática é totalmente enganosa.
Leonardo acreditava que os “olhos são a janela da alma”. O olhar da Mona Lisa é uma das características mais marcantes da imagem. Como tudo o mais sobre a pintura, ele tem um caráter ambíguo e contraditório. Aquele olhar misterioso é altamente ambivalente. Está ela olhando para nós, ou além de nós, para alguma coisa que não podemos ver? Freud achava que este olhar continha conotações sexuais. Talvez, mas poderia também conter uma mensagem diferente – uma que diz: Eu sei de coisas que você não sabe e nunca saberá. É um olhar de quem sabe.
Ao primeiro olhar parece que este quadro é uma imagem de absoluto repouso. Mas, sob uma inspeção mais próxima, fica claro que é tudo menos tranquilo. Está mergulhado no espírito de contradição dialética em todos os níveis. A primeira contradição é o próprio sorriso. Se dividirmos o rosto em duas partes equivalentes, torna-se imediatamente evidente que o próprio sorriso contém uma contradição – uma metade está sorrindo, mas a outra está séria.
Esta contradição expressa a complexidade do sentimento humano, em que as emoções conflitantes frequentemente coexistem. Niccolo Machiavelli (1469-1527), um grande amigo de Leonardo, observou de perto as calamidades da sociedade em que vivia. Ele escreveu as linhas seguintes que expressam a tragédia de seu próprio tempo, com a qual Leonardo se encontrava bastante familiarizado:
“Io rido, e rider non passa dentero;
Io ardo, e l’arsion mia non par de fore”.
[“Eu rio, e meu riso não está dentro de mim;Eu queimo, e meu ardor não é visto lá fora”].
Os sentimentos humanos raramente são simples. Podemos rir e chorar ao mesmo tempo. Esta é uma expressão profunda da condição humana em toda sua complexidade. Aqui temos a agridoce combinação de sentimentos que dá à vida a sua beleza peculiar e que provoca em nosso íntimo uma reação emocional muito profunda.
Neste quadro, as emoções humanas estão intimamente conectadas com tensões e tendências contraditórias do mundo externo a nós. Há um paralelo implícito entre esta imagem e a figura humana. Dentro de nós estão a luz e a escuridão, risos e lágrimas, alegrias e tristezas. E estes elementos e emoções contraditórios coexistem e lutam dentro de nós, assim como a luz e a escuridão no mundo natural.
A conexão entre o homem e a natureza, entre vida orgânica e inorgânica, fica sugerida por seu cabelo, que cai em cachos que sugerem um turbilhão de água. A roupagem do vestido não é da Renascença, mas de um estilo atemporal clássico. Ela serpenteia como a água, sugerindo uma afinidade da figura central com o fundo natural. Isso sublinha a própria ideia de mudança constante. Mesmo a pose do modelo sugere mudança e movimento. Ela está sentada em uma cadeira com seu corpo virado para um lado e seu rosto em nossa direção. Esta rotação é um truque muito conhecido (usado por fotógrafos atualmente) para sugerir movimento.
A placidez do rosto oculta a existência de forças subterrâneas invisíveis – paixões que se escondem na superfície e que são tão perigosas e incontroláveis quanto as forças da natureza selvagem. A figura da Mona Lisa na pintura ergue-se de uma paisagem igualmente estranha e ambígua. Assim como o sorriso é “assimétrico”, também a paisagem é assimétrica e, de fato, vagamente ameaçadora. A ambiguidade em seu sorriso é ecoada na natureza.
Há uma profunda mensagem subversiva em tudo isto. Em um artigo muito perceptivo intitulado “A história por trás do sorriso”, Nicholas Rossiter escreve: “Leonardo está ilustrando o processo constante pelo qual o mundo natural se desenvolve ao longo de milênios, e desafiando a teoria bíblica de que foi criado por Deus em seis dias” (Radio Times, 3-9 de maio de 2003).
O particular e o universal
O quadro também sugere outra contradição – a unidade do particular e do universal. O fundo é a natureza – o universo atemporal – mas a figura em primeiro plano é intensamente pessoal e pertence ao aqui e agora. Temos diante de nós um momento único e fugaz no tempo, aquele momento evasivo quando um sorriso começa a se formar nos lábios, ou então começa a desaparecer – um momento de cada vez que é precisamente o oposto da atemporalidade e da eternidade da natureza. Os dois momentos opostos são aqui vistos em sua unidade.
O fundo, que parece ocupar uma posição subordinada, de fato desempenha um papel muito importante na pintura. Nele, vemos estranhas formações rochosas, que se assemelham àquelas que estão no Vale do Arno conhecidas pelos habitantes locais como O Vale do Inferno. Estes depósitos aluviais foram formados pela erosão das montanhas dos Apeninos. Leonardo era fascinado pela geologia e encheu muitas páginas de seus cadernos de notas com suas observações sobre esta área.
Também vemos algo parecido à Ponte Buriano, que cruza o rio Arno a cerca de 40 milhas de Florença. Leonardo estava bem familiarizado com essa ponte por causa de sua importância econômica e militar para a cidade de Arezzo, onde ele esteve empregado pelo notório Cesare Borgia como engenheiro militar. Em sua infância, Leonardo tinha visto os efeitos catastróficos das inundações do Arno. Aqui, o rio é visto descendo das montanhas, cortando uma estrada através do vale em seu caminho para o mar.
Abaixo da superficial placidez da natureza, forças terríveis e incontroláveis espreitam, embora sua presença só possa ser sentida de forma intuitiva. Nesta visão, a natureza nunca é tranquila, mas está mudando constantemente – e se transformando em seu oposto. A montanha que se ergue no fundo é muito alta – ameaça desabar. O rio está muito cheio – ameaça transbordar. Os dois lagos em ambos os lados do rosto foram fixados deliberadamente em níveis impossíveis, onde um parece inclinar-se sobre o outro.
Temos aqui o ciclo interminável e inquieto de nascimento e morte – da ascensão e queda de montanhas, o nascimento e a morte dos rios. Este sentimento de mudança na natureza era uma ideia que estava profundamente enraizada em Leonardo.
A figura em primeiro plano emerge de um fundo natural e está intimamente ligado a ele. O elemento predominante na pintura é a água, tanto nos dois lagos quanto no rio (presumivelmente o rio Arno). Isso tem profundo significado filosófico. Que elemento é mais mutável e, portanto, intangível do que a movediça água? Heráclito disse: “Pisamos e não pisamos na corrente d’água; estamos e não estamos”. Essa é a ideia filosófica que permeia a pintura.
Vida e morte
No quadro, o universal está unido ao particular e é indistinguível dele. Embora a Mona Lisa seja tão altamente individualizada para se tornar inesquecível, ela também é uma generalização – a eterna feminilidade, acima do tempo e do espaço – que emerge da natureza e representa seu eterno princípio criador. E aqui outro mistério da Mona Lisa se torna claro: ela está grávida. Isto se torna óbvio a partir da posição de sua mão, que descansa gentilmente sobre seu ventre.
Assume-se que o objeto retratado seria Lisa Del Giocondo (daí o título popular de La Gioconda). Esta hipótese parece se justificar pelo fato de que a Mona Lisa está usando um véu negro. Sabe-se que a filha de Lisa Del Giocondo morreu em 1499, quatro anos antes de Leonardo começar a pintura. Por isso, é sobre a morte e também sobre a vida nova. Seja qual for a perspectiva, ela parece estar grávida. Não há vida sem morte, e vice-versa.
No momento em que ele estava trabalhando na Mona Lisa, Leonardo dissecou cadáveres de mulheres e examinou fetos – uma atividade completamente ilegal – para obter uma melhor compreensão da anatomia feminina e do mistério do nascimento. Tão incrivelmente precisos foram os seus desenhos que mais tarde foram utilizados por estudantes de anatomia.
Neste quadro, temos um sentimento de oculta (ou reprimida) paixão – o tipo de paixão que é geralmente considerada como perigosa porque ameaça romper a ordem estabelecida e porque é incontrolável. Ela nos lembra de que, sob a superfície aparente de calma, forças terríveis estão se acumulando e que podem nos destruir. Isto é verdadeiro tanto para as forças inanimadas da natureza (inundações, avalanches, erupções vulcânicas, terremotos, tempestades) quanto para a natureza humana (paixões incontroláveis como ira, medo, raiva, ciúmes e qualquer coisa relacionada ao desejo sexual). Tudo isso se esconde sob a superfície o tempo todo.
Em seu estudo sobre Leonardo, Freud especula que pinturas como a Mona Lisa expressam impulsos sexuais inconscientes relacionados a experiências de infância de Leonardo. Ele perdeu a mãe, embora ela aparentemente tivesse sido sua ama de leite em seus primeiros três anos de vida. Assim, ele teria algumas lembranças da afeição e do natural amor de uma mãe. Mais tarde, teve uma madrasta que também o tratou com grande ternura.
É essa ternura maternal que está refletida nesses rostos femininos, ligados a inconscientes impulsos sexuais? É possível, embora se deva dizer que há muitas hipóteses de Freud em seu ensaio que são forçadas e arbitrárias. Mas, em qualquer caso, a questão não termina aí. Se tudo o que a pintura de Leonardo expressa for uma mensagem puramente pessoal, referida ao estado psicológico do artista, nunca teria obtido o impacto universal que obteve.
Essas pinturas nos oferecem uma maravilhosa percepção da passagem do tempo e a percepção do eterno. Há também a ideia de geração, do elemento da reprodução sexual como o princípio da regeneração na natureza. Pode, no entanto, ser outra mensagem pela forma como Leonardo descreve o cabelo da Gioconda. Na Itália do século XVI, era considerado indecente para uma mulher usar o cabelo solto sobre os ombros como vemos aqui: cabelos soltos e fluentes eram sinônimos de moral duvidosa. Parece que Lisa Del Giocondo e seu marido não aceitaram a pintura, e isso pode ser em parte a razão de sua insatisfação.
Aqui, nada é o que parece à primeira vista. Mesmo o que parece ser a quintessência da feminilidade acaba por ser outra coisa. A unidade de opostos é igualmente transmitida pelo fato de a Mona Lisa – e muitas outras mulheres de Leonardo – serem realmente andróginas, isto é, contêm elementos masculinos e femininos. Isso pode ser visto na linha da pronunciada mandíbula – uma característica masculina. O ideal de beleza é metade masculina, metade feminina – uma concepção bem conhecida na arte grega clássica.
Observou-se, frequentemente, que os rostos das mulheres de Leonardo têm um estranho caráter andrógino. Há uma explicação para isso. Ficou estabelecido que as proporções desses rostos correspondem exatamente às do próprio rosto de Leonardo em seu autorretrato. Temos aqui a unidade de opostos levada ao extremo: vemos a unidade de homem e mulher, completamente misturados e indiferenciados. Homem e mulher são um só.
O rosto da Mona Lisa, aparentemente um retrato único e não reproduzível de um indivíduo, de fato, não é único. O mesmo rosto e as mesmas misteriosas expressões podem ser vistas na pintura maravilhosa da Virgem com Santa Ana. Não é mesmo o rosto de uma mulher, embora pareça ser. Pelas medidas e comparando os rostos, chegou-se à conclusão que todos eles são basicamente o mesmo rosto: é a face do próprio Leonardo.
Os últimos anos: na França
Diz-se que um profeta nunca é honrado em sua terra natal. Mostrando agora sinais da idade avançada e com a ameaça da ira Papal sempre pairando sobre sua cabeça, finalmente ele se decidiu a deixar completamente a Itália dominada pelos padres. Ele passou os últimos anos de sua vida na França, onde foi recebido com todas as honras na corte do rei. Temos um autorretrato maravilhoso de Leonardo como um homem velho, pintado nessa época. Ele nunca mais voltou à Itália.
O fracasso da Itália em conseguir a união nacional fez com que este maravilhoso potencial não pudesse ser realizado. A Itália foi reduzida ao atraso econômico e cultural. O centro de gravidade da história mundial estava se movendo para longe da Itália em direção aos novos Estados-nações da França e da Inglaterra. Suas estrelas estavam crescendo, enquanto que a Itália estava prestes a entrar em um cruel eclipse, que duraria séculos, até que a Itália estivesse finalmente unida por meios revolucionários.
É possível que Leonardo tenha passado seus últimos anos na França devido a este fato, ou, pelo menos, como uma antecipação dele. Negligenciado em sua Itália natal, onde sua estrela foi eclipsada pela ascensão de Michelangelo e Rafael, o velho homem recebeu as boas-vindas de herói na França, onde foi venerado como o maior artista de sua época. O rei francês era um daqueles monarcas renascentistas que, quando não estava engajado em guerras e caçadas, tinha um vivo interesse pelas ideias e pela arte. Francisco I aspirava a dar a sua corte a atmosfera da Renascença italiana trazendo para a França artistas e homens de letras, incluindo não apenas Leonardo, mas também Cellini.
Ele instalou Leonardo na residência palaciana próximo aos aposentos reais, onde teria facilmente acesso a ele. Parece que Francisco reverenciava o velho homem e se engajava em longas conversas, nas quais Leonardo surpreendia pela grande variedade de temas que conhecia em profundidade. Mas, fica claro que Francisco via Leonardo mais como um grande filósofo que como um grande artista (devemos lembrar que naqueles tempos a filosofia era vista com sinônimo de ciência).
A pintura de Lisa Del Giocondo tinha, claramente, um significado profundo para Leonardo, tanto que nunca foi entregue a quem a havia encomendado. O quadro ficou com ele durante os últimos 16 anos de sua vida, tendo-o levado em seu exílio final na França. Claramente, o seu significado para ele era muito maior que seu valor artístico. A Mona Lisa, portanto, terminou ficando na França, onde Leonardo o vendeu ao rei Francisco I, que o pendurou em seu banheiro! Esta foi provavelmente a causa da miríade de pequenas fissuras na pintura. Outros trabalhos de Leonardo também sofreram de tratamento negligente ou simplesmente mau: os ignorantes monges milaneses abriram uma porta através de seu friso de A última ceia.
Como Aristóteles e Hegel, Leonardo tinha uma mente verdadeiramente enciclopédica. Leonardo – o homem da Renascença – era um cientista e um filósofo. Parece que no final de sua vida, ele tentou reunir seus numerosos cadernos sobre diferentes questões. Se tivesse conseguido, teria produzido uma enciclopédia filosófica muito antes de Diderot e D’Alembert na França do século 18. Este foi o lado de Leonardo que mais impressionou ao seu benfeitor em sua velhice. Depois de sua morte aos 67 anos de idade, o rei francês disse que ele foi “um filósofo muito grande”. No final, ele o via mais como filósofo do que como artista. Na realidade, ele foi ambos. O homem mais típico da Renascença combinava em sua pessoa os papéis de artista, escultor, cientista, filósofo, diplomata e inventor.
A reputação de Leonardo como artista descansa em apenas um punhado de pinturas. A quantidade da produção artística de Leonardo foi limitada por seu perfeccionismo. Ele disse: “Ofendi a Deus e a humanidade porque o meu trabalho não atingiu a qualidade que deveria ter”. É por isso que muitas vezes ele começou um trabalho e não o terminou. Todos os pleitos e ameaças de seus exasperados patronos o deixavam indiferente. O único Senhor que reconheceu foi sua própria arte. Para ele, era como se o ato da própria criação constituísse a questão essencial. O resultado final era relativamente sem importância. Era isto o que queria dizer quando escreveu: “A arte nunca termina, apenas é abandonada”.
Com Michelangelo, a arte da Renascença italiana alcança novos níveis de perfeição sublime. Mas Michelangelo foi impulsionado pela inspiração religiosa, enquanto que Leonardo, o verdadeiro homem da Renascença, não era religioso de forma alguma. Em última análise, Michelangelo fez o que seus patronos da Igreja queriam, enquanto Leonardo era um espírito livre e independente – um rebelde nato.
Com Leonardo, no entanto, vemos a união perfeita de ciência, técnica, filosofia e arte. Ele fez um estudo completo da ótica, a fim de entender a natureza de luz e sombra e logo aplicou este conhecimento científico a sua pintura. Fez o mesmo com a anatomia, e até estudou embriões humanos, a fim de ter uma melhor visão sobre o corpo feminino antes de retratar a mulher grávida na Mona Lisa.
Provavelmente, nunca houve um artista maior que Leonardo na história do mundo. Não é somente uma questão de sua técnica, que era tão avançada que mesmo hoje os especialistas não sabem como ele conseguiu certos efeitos, ou mesmo como ele conseguiu suas cores. Essa arte não é apenas esteticamente bela, não é somente tecnicamente perfeita. Ela também contém uma profunda ideia filosófica.
Durante toda sua vida, Leonardo foi impulsionado por uma curiosidade insaciável sobre o mundo. Ele tinha curiosidade sobre todas as coisas sob o sol, e essa curiosidade o levou a muitas e diferentes direções. Por essa razão, muitos de seus projetos permaneceram inconclusos. Seu espírito inquieto e inquiridor – que era o espírito de sua época – não lhe permitia permanecer quieto em nenhum momento, e várias vidas teriam sido insuficientes para ele concluir todas as tarefas a que se propôs.
Acima de tudo, Leonardo era um atento observador do mundo natural. A influência nociva da religião tinha condenado a realidade material como a obra do demônio e ensinado aos homens e mulheres a se envergonharem de seus corpos e a dirigir o seu olhar para o Paraíso ou para o seu íntimo, para a salvação de suas almas eternas. Isso era a antítese da nova visão científica. A visão de mundo de Leonardo era essencialmente materialista e científica. Ele disse: “Somente a observação é a chave para a compreensão” e “Todo o nosso conhecimento se origina de nossas percepções”.
Ele também escreveu: “Embora a natureza comece com a razão e termine na experiência, é necessário que façamos o oposto, isto é, que comecemos com a experiência e dela continuar a investigar a razão”. Essa frase contém a essência de toda a ciência moderna. Esse incansável investigador não temia questionar o viés aceito pela Igreja e trilhar caminhos perigosos.
Apesar de sua insistência na observação, Leonardo não era um empirista vulgar. Ele também escreveu: “Todos os que estão apaixonados pela prática sem conhecimento são como o marinheiro que entra em um barco sem leme ou bússola e que nunca pode saber para onde ele está indo. A prática deve sempre estar baseada na teoria sólida, e para isto a Perspectiva é o guia e a porta de passagem; e sem isto nada pode ser feito também em matéria de desenho”.
Ele viu que a ordem surge do caos e é essa ideia profunda e dialética que está no coração da Mona Lisa. Mas o contrário também é verdadeiro: abaixo da aparentemente calma e assentada realidade existem forças que podem explodir a qualquer momento. Essa ideia expressa perfeitamente os tempos turbulentos da Itália em que ele tinha nascido e as experiências atribuladas que ele compartilhou. As profundas linhas gravadas sobre a face de seu autorretrato como um homem idoso contam toda a história. Aqui está uma imagem de sofrimento que foi superada pela quieta resignação da sublime velhice. As contradições que, finalmente, encontraram uma resolução.
No final, ele disse que, da mesma forma como um dia bem vivido leva a um descanso feliz, também uma vida bem vivida traz uma morte feliz. Vamos deixar a palavra final para Leonardo:
“Amo aqueles que podem sorrir dos apuros, que podem ganhar forças do sofrimento, e crescer corajosamente através da reflexão. O negócio das mentes pequenas é encolher, mas os que têm coração firme e cuja consciência aprova sua conduta perseverarão em seus princípios até a morte”.