A disseminação do novo coronavírus na Itália está se intensificando. Em 10 de março, o número de pacientes infectados era de 10.149 e o número de mortes 631 [Atualmente são mais de 24 mil infectados e 1.800 mortos]. A taxa de mortalidade é, portanto, de 6%, mais alta do que na província chinesa de Hubei, onde a pandemia começou. Essa situação marca o fracasso das medidas de contenção implementadas pelo governo nas últimas semanas.
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A tentativa de se criar um espírito de guerra nacional, no qual todos temos que cerrar fileiras por trás do governo para combater um inimigo fatal e misterioso, para não trair os mártires da linha de frente, também é uma forma de esconder as responsabilidades por trás dessa situação, bem como o caráter de classe e de confusão criado pelas medidas adotadas para gerenciá-lo.
Estamos convencidos de que se devem aplicar as medidas preventivas e que até mesmo medidas mais radicais devem ser tomadas, como deter as atividades não-essenciais, bem como fortalecer a infraestrutura dos cuidados médicos. Mas, para se fazer isso, devemos combater essa retórica de unidade nacional e expor a essência real dessa crise.
Responsabilidades concretas, não uma catástrofe inevitável
A emergência de saúde em andamento expôs sem misericórdia os efeitos de 30 anos de cortes ao sistema nacional de saúde. Hoje, as estratégias adotadas para conter a epidemia visam evitar o “colapso do sistema de saúde”. No entanto, essa situação não era inevitável e não foi causada por um inimigo todo-poderoso, mas pelo fato de o sistema de saúde já ter sido forçado a operar no limite de suas capacidades. Qualquer pessoa que esteja ciente do tempo de espera de um exame de saúde rotineiro, de uma visita ao médico, de uma cirurgia eletiva; qualquer pessoa que já esteve em um pronto soccorso (setor de emergência de hospitais) sabe que os leitos hospitalares colocados em corredores e a falta crônica de pessoal são uma realidade há muito tempo, muito antes da chegada do coronavírus.
Os gastos do governo com a saúde vêm diminuindo há anos e foram agora reduzidos a 6,5% do PIB. Abaixo desse limite, a Organização Mundial de Saúde (OMS) disse que um estado é incapaz de garantir o direito aos cuidados básicos de saúde. De fato, os dados oficiais mostram que, para 11 milhões de italianos, esse direito não é uma realidade.
De 2009 a 2017, 5,2% do pessoal ligado à atenção médica foram reduzidos: 46.500 trabalhadores a menos.
Nos últimos dez anos, 70 mil leitos hospitalares se perderam. Nas unidades médicas, que são cruciais para a atual epidemia, o número de leitos hospitalares disponíveis por 100 mil habitantes, em 1980, era de 922. Hoje, é de 262.
Nas unidades de terapia intensiva (UTIs), existem 5.090 leitos para uma população de 60 milhões de habitantes (dados de 2017 do Ministério da Saúde), 8,92 leitos por 100 mil habitantes. Em média, 50% desses leitos estão ocupados, com picos quando a ocupação é muito mais alta. Elas têm 667 máquinas de ventilação pulmonar. Nos últimos anos, os médicos-chefes de UTIs informaram que o mais leve surto de gripe faz com que as unidades fiquem cheias. Em 10 de março, havia 877 pessoas hospitalizadas em UTIs devido ao coronavírus, com unidades na Lombardia já saturadas e com pedidos de transferência de pacientes para outras regiões… e o pico ainda não foi atingido. Quando o for, terá consequências ainda piores.
O efeito desses cortes em um contexto como o atual não era apenas previsível, também foi explicitamente avaliado. Um estudo da Universidade John Hopkins atribuiu à Itália um Índice Global de Segurança em Saúde de 56% e uma capacidade de “resposta rápida e mitigação da pandemia” de 47,5%.
Hoje, essas cifras se traduzem em vidas humanas. A Sociedade Italiana para Anestesia, Analgesia, Reanimação e Cuidados Intensivos publicou algumas “Recomendações de ética clínica para a admissão e suspensão de cuidados intensivos”, nas quais, diante da escassez de equipamentos de cuidados intensivos, recomenda-se escolher a quem dar ventilação pulmonar baseado na probabilidade de sobrevivência e, em segundo lugar, baseado em uma estimativa de quantos anos de vida podem ser salvos. O documento define esse cenário como essencialmente dentro do escopo da “medicina para catástrofes”. Além disso, a decisão de suspender a maioria das consultas e cirurgias da medicina corrente, a fim de concentrar o pessoal médico e ter mais leitos para os cuidados intensivos, terá, por sua vez, um custo humano (diagnósticos atrasados, casos médicos deixados sem controle etc.) que será difícil de medir, porque se perderá no mar de dados gerais, longe dos holofotes do número de mortes por coronavírus. Os que podem pagar se voltarão para a oferta privada desses serviços.
Os serviços de saúde privados, que produzem lucros estratosféricos sob circunstâncias normais, ganharão ainda mais com essa emergência, enquanto os serviços públicos de saúde suportam o peso da crise. O fato de que algumas das instalações privadas estejam fazendo campanhas publicitárias milionárias, com a ajuda de compositores de baixo nível, é o bastante para causar náusea. O medíocre rapper Fedez e sua esposa começaram uma campanha de financiamento coletivo para o Hospital San Raffaele, que é um dos maiores hospitais privados da Itália.
O coronavírus é certamente um acontecimento pouco comum, mas não imprevisível. É o quinto vírus agressivo dos últimos 17 anos, uma eventualidade para a qual o sistema de saúde deveria estar preparado para responder. Não deveria estar no campo da medicina para as catástrofes, mas no campo do planejamento normal. A catástrofe foi gerada pelas escolhas econômicas e políticas feitas em nome da austeridade e para garantir o lucro privado, em um setor onde vidas humanas estão diretamente em jogo. Essa catástrofe se chama capitalismo e os que aprovaram essas medidas e fizeram lucros da privatização do sistema de saúde são os responsáveis diretos pelas mortes evitáveis das últimas semanas.
O governo está se escondendo por trás dos enormes esforços dos trabalhadores da saúde, mas não está fazendo nada para mudar a forma como o sistema é gerenciado. O acordo coletivo dos trabalhadores da área de saúde ainda não foi renovado. O plano de contratação de 20 mil trabalhadores que foi alardeado e aprovado três semanas depois do início da crise não prevê empregos estáveis, mas apenas a “contratação de trabalho autônomo, incluindo cooperação coordenada e continuada, de uma duração que não exceda seis meses” ou “atribuições individuais de prazo fixo”, que, no máximo, darão um status de prioridade para futuras contratações. Ainda mais escandaloso é o fato de que o decreto não inclui a proposta de integrar 5 mil médicos residentes.
O gerenciamento da crise
Com os decretos de 8 e 9 de março, o governo Conte queria dar a impressão de ser um agente decisivo e determinado. No entanto, a verdade é que a emissão desses decretos foi um certificado de falência das medidas adotadas durante todo o período precedente, caracterizado pela falta de planejamento e prevenção, por uma gestão aproximativa sempre adotada pela surpresa dos acontecimentos e pela natureza contraditória dos decretos.
De fato, o que falta é ação preventiva e rápida identificação dos primeiros focos da epidemia. Para um vírus que tem período de incubação assintomática de vários dias, isso teria sido decisivo para impedir a propagação.
Na Coreia do Sul, um país que desenvolveu um número de casos semelhante ao da Itália, mas onde a curva do contágio já está caindo, os testes já estavam sendo realizados antes mesmo de haver um “paciente zero”. Por enquanto, 200 mil testes foram realizados (na Itália, esse número está em torno de 60 mil), somando 20 mil por dia. Estações especiais foram montadas onde as pessoas poderiam ser testadas sem precisar deixar seus automóveis; foram usadas câmaras térmicas para controlar a temperatura corporal e foram criados aplicativos para mapear os movimentos das pessoas em risco. Isso permitiu ao governo adotar medidas mais específicas para isolar as pessoas que testaram positivo e as que representavam um risco para o restante da população, evitando assim a propagação do vírus. Simplesmente isolar a população, como a Itália está fazendo, tem suas próprias vantagens – mas principalmente como último recurso. Também teve o efeito de facilitar a propagação do vírus entre pessoas que estão na mesma área de quarentena – seja territorial ou doméstica.
Na China, esse tipo de ação faltou inicialmente e, na verdade, o regime tentou negar a existência da epidemia, o que levou a sua ampla propagação. Isso foi resolvido com a quarentena de toda a população da província de Hubei e com a suspensão de todas as atividades, mas acima de tudo através da mobilização de uma impressionante quantidade de recursos de saúde: construção de novos hospitais, centros de hospitalização pública com divisões baseadas na seriedade dos sintomas, testes de lençóis e cobertores, fornecimento de equipamentos e meios de prevenção em escala massiva e uma afluência de trabalhadores da saúde de toda a China. Esses recursos foram o que impediu a propagação do vírus, não o “espírito de disciplina”, que é o que as autoridades italianas estão brandindo hoje para colocar a culpa nas massas, pintando os italianos como preguiçosos indisciplinados.
Na Itália, não foram seguidos os exemplos da Coreia ou da China. A busca do fantasmagórico paciente zero assumiu o tom de uma novela de detetives, mais do que uma operação de controle completa e sistemática. Além da criação de zonas vermelhas, os primeiros decretos eram contraditórios: as escolas foram fechadas, mas os bares podiam continuar abertos até às 18 horas. Não, na verdade, eles poderiam continuar abertos até mais tarde, mas as pessoas deveriam manter uma distância segura umas das outras…, mas, enquanto isso, as pessoas podem continuar indo trabalhar. Esses decretos chegaram ao ponto de prever jogos de futebol em que aos torcedores de uma região seria permitida a entrada no estádio, enquanto esta não seria permitida aos da região vizinha, como se a propagação do vírus seguisse a divisão regional completamente insana do sistema de saúde.
Foram entregues boletins aos hospitais instruindo-os a gerenciar a emergência, informando aos funcionários as normas precisas a serem respeitadas. Só que perceberam, dois dias depois, que o equipamento necessário para fazer cumprir essas normas estava praticamente ausente e o pessoal médico foi forçado a trabalhar sem proteção adequada. Hoje, 12% dos pacientes infectados são da equipe médica, o que está levando a uma falta adicional de recursos. Houve uma campanha contra os que não seguiam as diretrizes de higiene, pintando-os como transmissores conscientes da enfermidade, mas não foram dados aos trabalhadores equipamentos básicos de higiene (luvas para os caixas de supermercados, para dar um exemplo). Existem milhares de informes desse tipo vindos dos locais de trabalho.
O Santo Graal da propriedade privada
O governo Conte, mesmo com toda a sua determinação, sempre hesitará antes de ameaçar o Santo Graal da propriedade privada. A vida das pessoas pode ser disciplinada, os serviços públicos fechados sem proporcionar alternativas ou salvaguardas para os que sofrem as consequências (como ocorre no fechamento de escolas e creches), mas a propriedade privada deve continuar lucrando. Chegaram ao ponto de exortar os trabalhadores a não fazer greves, em um paradoxo que abarca perfeitamente a natureza de classe das medidas adotadas e determina sua eficácia.
O vídeo #Milanononsienferma (“Milão não para”), encomendado pelo prefeito Sala foi uma exibição lírica do voluntarismo e produtivismo, com afirmações como “trabalhamos a um ritmo impensável todos os dias”: uma ode à exploração. Também em 10 de março, o Sole24Ore, o jornal das grandes empresas, exibiu a manchete “Fábricas abertas na Lombardia. Produção continua com cautela”. Exatamente a que medidas cautelosas se referiam não foi divulgado. Em STMicroeletrctronics, em Agrate, onde houve dois casos, o único turno a ser suspenso foi o dos dois trabalhadores doentes, deixando o restante da produção em funcionamento. Estamos recebendo informes de fábricas, onde houve casos do vírus, de que os próprios trabalhadores precisam trazer suas próprias máscaras de casa. Os patrões estão aterrorizados com o impacto econômico dessa crise e a última coisa com que se preocupam é proteger a saúde dos trabalhadores.
São os próprios trabalhadores que neste momento estão se mobilizando para exigir medidas que garantam sua segurança sanitária ou até mesmo que lhes seja permitido o auto-isolamento. Houve uma greve espontânea na planta da Fiat em Pomigliano, uma operação padrão em Leonardo (uma empresa aeroespacial), uma greve de coletores de resíduos em Acerra, pondo pressão sobre os representantes dos trabalhadores; bem como muitos que se ausentam espontaneamente de seus locais de trabalho. É possível que Confindustria (a federação dos empregadores) vá, relutantemente, encerrar as atividades, pelo menos em algumas áreas do país.
Encerrar atividades não-essenciais para garantir a saúde e a segurança dos trabalhadores é agora uma medida necessária. No entanto, o custo econômico disso não pode ser colocado nas costas dos trabalhadores. O governo disse aos trabalhadores que debitem isso como dias de folga e licenças: isso deve ser rejeitado, porque faz os trabalhadores pagar pela emergência e nem todos têm acesso às medidas. Os salários pelos dias de fechamento devem continuar a serem pagos normalmente, da mesma forma que a garantia do salário deve ser observada para aqueles que não têm essa segurança porque estão auto-isolados. Também deve ser criado um fundo de proteção aos trabalhadores autônomos e pequenas empresas que irão abaixo com esses fechamentos.
O movimento sindical deveria liderar essa luta. Em vez disso, os líderes sindicais desertaram da luta pela defesa sanitária e econômica dos trabalhadores, capitulando totalmente à retórica de unidade e sacrifício nacional, limitando-se a fazer tutoriais explicando como aplicar os decretos do governo ou, na melhor das hipóteses, explicando em termos técnicos como os trabalhadores podem pedir algumas almofadas de segurança social.
Diante de uma situação de emergência, medidas de emergência são necessárias. A proteção da saúde pública deve a prioridade número um e todos os recursos disponíveis devem ser utilizados de forma coordenada e planejada. Necessitamos de:
- Um plano especial de longo prazo para contratar profissionais da saúde para lidar com as necessidades do sistema. Isso inclui eliminar os limites de admissão nas faculdades de medicina das universidades;
- Um plano para aumentar o número de leitos e UTIs, começando com um retorno aos níveis históricos máximos. Bloquear todos os planos de redução da infraestrutura do sistema de saúde;
- Abolição de todos os planos de regionalização e mercantilização do sistema nacional de saúde;
- Requisição imediata de instalações do setor privado da saúde sem indenização, para serem utilizadas com o objetivo de gerenciar a crise. Depois disso, expropriação das estruturas privadas a serem integradas em um sistema nacional de saúde com garantia total de emprego para o pessoal;
- Requisição de empresas estratégicas que produzem equipamentos e materiais sanitários, a fim de garantir a produção em grande escala de equipamento médico, equipamentos de cuidados intensivos e produtos de segurança pessoal como máscaras, para distribuição gratuita;
- Interromper atividades de trabalho não-essenciais que ponham em risco a saúde dos trabalhadores, com a possível adaptação de máquinas para satisfazer as necessidades criadas pela crise da saúde;
- Salário total para os trabalhadores de empresas fechadas. Garantia de salários para os trabalhadores não protegidos que se auto-isolaram;
- Controle operário da produção em atividades que devem permanecer abertas, com base no RSU (representação unitária sindical) e no RLS (representantes dos trabalhadores para a segurança do trabalho).
O custo dessas medidas deve ser coberto não pelo aumento da dívida pública ou fazendo com que os trabalhadores paguem a fatura, como está sendo proposto atualmente, mas cancelando o pagamento da dívida pública.
Medidas essenciais como as acima listadas entram em conflito com as operações do sistema em que vivemos, onde os meios de produção estão concentrados nas mãos de um punhado de capitalistas, onde a produção e os serviços estão dominados pela motivação do lucro em vez do bem-estar coletivo. Basta assinalar que, ao se resolver a crise epidêmica em um país, não ficaria garantido que não retorne, se continuar ativa em outros países. O que é necessário é uma operação internacional planejada, mas, sob o capitalismo, essa emergência corre o risco de se tornar apenas mais uma variável da guerra protecionista. Na Itália, parece difícil a coordenação, até mesmo em escala regional.
Segundo as regras desse sistema, as consequências econômicas dessa pandemia serão traduzidas em políticas de austeridade renovadas, o que, paradoxalmente, levará a um enfraquecimento adicional do sistema de saúde. No momento, há o fator do choque inicial criado pela emergência do coronavírus, mas a essência do sistema em que vivemos está ficando claramente exposta aos olhos de todos na sociedade.
Uma vez superada a emergência, os patrões não vão esperar muito para exigir indenização pelos danos sofridos. Irá surgir um conflito para dividir os fundos públicos entre eles mesmos (contribuindo para aumentar a dívida pública), e duros sacrifícios serão exigidos em cada local de trabalho para recuperar a produção perdida. Depois da guerra contra o vírus, seremos convocados para participar da guerra para restaurar a economia, e a carne de canhão mais uma vez será a classe trabalhadora. Mas a retórica de unidade nacional já está cheia de contradições e não demorará muito para explodir em milhões de pedaços.
Quando isso acontecer, apresentaremos a conta aos que estão lucrando com essa crise – e eles vão pagar um preço alto.