A juventude da Nigéria se revoltou contra a brutalidade da odiada unidade pelo Esquadrão Especial Antirroubo (SARS, na sigla em inglês). Nem as concessões nem o chicote da reação fizeram com que o movimento #EndSARS recuasse; pelo contrário, apenas lhe deu mais força. Esta manifestação espontânea de raiva deve ser colocada sobre uma base política organizada, voltada diretamente contra o apodrecido regime capitalista.
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Em 3 de outubro de 2020, por volta das 16h19, horário da Nigéria, uma pessoa no Twitter, que se autodenomina Chinyelug, com apenas 800 seguidores, tuitou o seguinte:
O SARS acabou de matar um jovem em Ughelli, no estado do Delta, neste momento. Em frente aos hotéis Wetland. Eles o deixaram morto na beira da estrada e foram embora com o jipe Lexus do falecido.
Eu tenho vídeos …
Em apenas alguns minutos, o tuíte recebeu mais de 10 mil retweets. Chinyelug não sabia que estava provocando um dos maiores movimentos juvenis da história da Nigéria. Ele não sabia que estava apenas deixando cair a gota d’água que agora finalmente fez transbordar o copo, assim como a morte de Mohammed Bouazizi foi a gota d’água que desencadeou a Revolução Tunisiana que mais tarde se tornou a Primavera Árabe em 2011.
O assassinato em Ughelli, relatado pelo citado tuíte, foi um dos milhares de outros assassinatos cometidos pelo SARS que ocorreram sem maiores repercussões. Os jovens com idades entre 15 e 35 anos são particularmente visados. Eles são constantemente perseguidos pelas coisas mais triviais e possíveis de imaginar como, por exemplo, trançar o cabelo. É ainda pior se forem encontrados em posse de telefones caros ou dirigindo carros luxuosos.
O Relatório de Monitoramento Global de Educação para Todos, da Unesco, disse que a Nigéria é responsável por quase um quinto das crianças fora da escola e por uma das maiores taxas de evasão escolar do mundo, mas a resposta a isso, oferecida pela elite governante nigeriana, é criminalizar toda uma geração de jovens. Todos são suspeitos de serem membros dos chamados “Yahoo Yahoo boys“: o que significa que seriam fraudadores da internet (a maioria dos quais são as infelizes vítimas da crise do capitalismo). Com poder exclusivo de prender ou até matar sem explicação, o SARS evoluiu para se tornar muito mais temido pelo povo do que os próprios ladrões armados, para cujo combate foi criado. Extorque, mata e prende sem qualquer apelo a regras ou regulamentos. Mas o assassinato em Ughelli foi um passo longe demais.
Os pontos fortes e fracos dos movimentos espontâneos sem líder
Lagos, como centro comercial da Nigéria, foi o primeiro local onde os jovens saíram às ruas. O movimento declarou-se sem liderança, e a quem poderíamos apontar inicialmente como o líder desta luta magnífica? Foi desencadeada por um acidente, mas a dialética ensina que às vezes “a necessidade se expressa na forma de acidente”. O que estamos vendo é uma confirmação material dessa lição dialética.
O movimento se anunciou para o mundo sob a hashtag #EndSARS e, em 9 de outubro, # EndSARS havia liderado os trending topics no mundo. Inocentemente alegou rejeitar todas as formas de demandas políticas: queria apenas uma coisa: “o fim do SARS”. Uma regra informal de adesão aos comícios é que não pode haver distribuição de folhetos e nenhuma exibição de cartazes políticos. Os que foram às reuniões com panfletos foram expulsos. Ninguém pode estar direta ou indiretamente associado à política. Isso, é claro, não é acidental, mas ditado por uma longa experiência da política do capitalismo, dominada por níveis extremos de corrupção, roubo, peculato e busca de interesses privados. Os participantes nunca experimentaram nenhuma outra forma de política (ou seja, a política revolucionária) em suas vidas. Esta é uma prova contundente da afirmação de que “as massas aprendem não com os livros, mas com a experiência de sua vida cotidiana”.
O movimento também afirmou que se opõe a qualquer forma de liderança. E por que os manifestantes não deveriam se sentir assim? Apenas duas semanas antes, 28 de setembro para ser preciso, a liderança sindical vergonhosamente engavetou uma greve geral planejada sem ganhar uma única concessão do governo. Isso criou um sentimento de repulsa em relação a qualquer forma de liderança por parte do movimento jovem, que equipara qualquer forma de liderança a concessões e traição.
Um movimento espontâneo dessa magnitude, que não tem uma liderança central clara, tem suas vantagens, mas também grandes desvantagens. O governo procurou em vão encontrar o líder com quem negociar, mas nenhum foi encontrado. Muitos líderes acidentais foram convocados para negociações, mas isso, ao invés de deter o movimento, apenas jogou mais gasolina no fogo. O movimento continuou se expandindo porque ninguém tinha autoridade suficiente para apagar o fogo. O governo anunciou imediatamente o banimento das unidades do SARS em todo o país e prometeu indenizar todas as vítimas das injustiças do SARS, mas também anunciou a formação de outra unidade policial, a SWAT, para substituí-la. Isso tudo é um caso de muito pouco e muito tarde. Em vez de desacelerar o movimento, as massas apenas se sentiram mais confiantes em sua força e suas demandas avançaram rapidamente, eventualmente se tornando políticas. De #EndSARS, o slogan passou a ser #EndSwat e #EndBadGovernance
Posteriormente, o movimento se espalhou por mais de 20 cidades do país, principalmente no sul. Abuja, Kaduna, Minna, Makurdi, Kano e Jos, no norte, logo depois se juntaram a este festival dos oprimidos.
Apesar desses avanços surpreendentes, um movimento sem qualquer forma de liderança também tem sua fraqueza interna. Será incapaz de enfrentar o Estado bem organizado e seus sistemas de repressão. Não havia uma posição coerente a partir da qual mobilizar e dirigir o movimento.
O governo mobiliza bandidos e criminosos
O protesto colocou a Polícia Nigeriana na defensiva, pois o protesto é dirigido principalmente contra seus excessos. Isso tornou difícil para o governo usar a polícia contra o movimento. Mais tarde, recorreram ao uso de bandidos para atacar manifestantes pacíficos. Em quase todos os centros de protesto, bandidos armados com o apoio ativo dos Serviços de Segurança do Estado foram mobilizados para atacar os jovens. A situação em Abuja era particularmente ruim, com mais de 200 carros de manifestantes queimados e cerca de cinco vidas perdidas de ambos os lados. Isso ainda se mostrou incapaz de conter o movimento. O governo anunciou que todos os policiais considerados culpados serão demitidos, enquanto alguns infratores menores serão repreendidos. Isso também veio obviamente muito tarde e é muito pouco.
O massacre de Lekki de 20 de outubro
Em 20 de outubro, o regime, em desespero, jogou sua última cartada em Lagos. Soldados foram convocados para reprimir violentamente o protesto. No início do dia, o governo do estado de Lagos anunciou um toque de recolher de 24 horas, a partir das 16h. Mais tarde, o horário de início foi mudado para às 21h do mesmo dia, porque era óbvio que os manifestantes não iriam deixar o comício público. Tornou-se viral um vídeo de soldados em Ikeja (o primeiro centro principal convergente da manifestação em Lagos) confraternizando com os manifestantes e cantando canções de solidariedade com eles.
Foi por volta das 19 horas da noite que estourou a notícia do massacre organizado dos manifestantes no pedágio de Lekki, o segundo centro principal do comício. Foi um ataque bem orquestrado. O CCTV foi desativado pela primeira vez cerca de uma hora antes, as luzes também foram apagadas e, em seguida, os soldados começaram a abrir fogo contra os manifestantes pacíficos. Isso revelou a extensão da brutalidade crua da elite governante nigeriana. Cerca de 15 pessoas morreram imediatamente e quase 100 sofreram um ou outro grau de lesão.
Mas o chicote da contrarrevolução apenas conseguiu estimular o movimento. A reação foi imediata. O pedágio multimilionário de Naira Lekki, que supostamente arrecadava bilhões de Naira [moeda nigeriana] por mês, foi completamente destruído. Os hotéis da cadeia de Hotéis Oriental, pertencentes ao ex-governador do estado de Lagos e incondicional apoiante do partido no poder, Bola Tinubu, teriam sido atacados. Quase 100 grandes ônibus urbanos pertencentes ao governo foram incendiados. A casa da família do atual governador, onde sua mãe reside, foi incendiada. A TVC (uma rede de televisão, também ligada a Tinubu) foi incendiada. Impor um toque de recolher agora é impossível, e a fúria das massas se tornou incontrolável. Consta ainda que o próprio Tinubu fugiu do país na madrugada de hoje (21 de outubro).
Elite governante dividida
Não há realmente nenhuma possibilidade de um movimento desta magnitude deixar de criar uma rachadura visível nas fileiras da elite governante. O plano inicial era envolver os soldados muito antes, mas a alta hierarquia dos militares rejeitou o pedido. A raiva dentro do Exército é muito mais forte do que entre as massas civis. As razões para isso são óbvias: a corrupção dos generais, o não pagamento dos soldos adequados e as baixas contínuas nas mãos dos terroristas maltrapilhos do Boko Haram. Os membros da Assembleia Nacional instruíram o presidente a se dirigir à nação. Esta foi provavelmente a primeira vez que esta assembleia em particular se dirigiu publicamente ao presidente, na tentativa de se absolverem da culpa.
Que fazer?
Os marxistas se opõem a tumultos, saques e incêndios criminosos, mas nossa oposição não tem nada em comum com as objeções hipócritas da elite dominante e seus apoiadores. Se seres humanos são tratados como animais, agirão como animais; se tratados como humanos, responderão de acordo. O verdadeiro culpado é a elite governante e seu sistema de opressão e exploração, que reduz grandes camadas da sociedade a mera matéria-prima para exploração. Enquanto uma vida decente se tornar legalmente impossível para a maioria, alguns deles certamente tentarão resolver o problema numa base individualista e criminosa. Não nos corresponde levantar nossas mãos impotentes e condenar os tumultos, mas encontrar uma maneira de nos conectarmos com os jovens que protestam.
A juventude nigeriana está lutando para encontrar o caminho para escapar do beco sem saída a que o capitalismo os condenou. O nosso é despertar os jovens para a consciência política, e estamos muito confiantes de que em breve descobrirão que os distúrbios sem objetivo são um beco sem saída.
Como o ativista e escritor marxista Alan Woods disse certa vez, a respeito dos distúrbios que eclodiram na Grã-Bretanha em 2011:
“Os marxistas não se juntarão à burguesia e seus agentes em seu coro hipócrita de denúncia. Seguiremos o bom conselho de Spinoza: ‘Não chorar, nem rir, nem desesperar, mas compreender’. Nosso dever é encontrar um caminho para os jovens, ajudá-los a encontrar o caminho certo – o caminho revolucionário, o caminho para a reconstrução socialista de sociedade”