O mais recente título da editora Wellred Books, The History of Philosophy: A Marxist Perspective, de autoria de Alan Woods, foi lançado no último dia 26. Publicamos a seguir um trecho da introdução do livro que explica a razão por que os marxistas revolucionários deveriam estudar a história da filosofia e apreciar a enorme dívida que o marxismo tem com os pensadores anteriores e, em particular, com os gigantes da filosofia que viveram na fase revolucionária e juvenil da época burguesa.
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O ponto de partida
Comecei a trabalhar em The History of Philosophy há cerca de 27 anos, quando escrevi Reason in Revolt, um livro que tratava da relação entre a filosofia marxista e a ciência moderna. O livro foi um grande êxito, mas acabou ficando muito mais extenso do que eu havia previsto inicialmente. Devido a questões de extensão, fui relutantemente obrigado a omitir a primeira parte, que tratava da história da filosofia que levou à grande revolução de Marx, a teoria do materialismo dialético.
A intenção era publicar The History of Philosophy como uma obra separada em algum momento no futuro. Mas, por distintas razões, essa decisão foi adiada para dar lugar a tarefas mais urgentes. Por mais de duas décadas o manuscrito ficou de lado, entregue à crítica corrosiva dos ratos, como disse certa vez Marx referindo-se ao texto inédito de A Ideologia Alemã. Ele acabou sendo publicado em nosso site e foi recebido favoravelmente, mas a intenção original de publicá-lo como um livro ficou por cumprir até agora.
Devo à pressão de vários camaradas com um interesse especial por filosofia o estímulo para publicar este trabalho. Ele representa uma contribuição para a campanha em curso da Corrente Marxista Internacional (CMI) de combater a ideologia burguesa e defender e propagar as ideias do marxismo. Essa foi uma decisão oportuna e necessária. Numa época em que o sistema capitalista se encontra em uma crise terminal, a falência da ordem existente inevitavelmente encontra sua expressão em um declínio evidente de todos os aspectos da vida intelectual.
Isso é particularmente evidente no campo da filosofia, onde o pensamento burguês expressa sua decadência da maneira mais escandalosa. A luta pelo socialismo não se limita à política e à economia. Deve ser travada em todos os níveis, começando pelo nível das ideias. Se a presente obra ajudar a armar os trabalhadores e os jovens nessa luta necessária, meu objetivo terá sido alcançado.
Aqueles que leram o manuscrito original verão que, em todos os pontos essenciais, ele foi mantido. Mas revisei o texto minuciosamente com a ajuda de camaradas e acrescentei novas seções, principalmente no capítulo sobre a Idade Média. Também acrescentei um capítulo final que explica por que a filosofia – pelo menos no antigo sentido da palavra – chega ao fim com o marxismo.
Deve-se também notar que o capítulo adicional sobre filosofia indiana, que foi incluído como um apêndice, foi omitido da presente edição, enquanto se reduziu o capítulo sobre filosofia islâmica, lidando principalmente com o papel que desempenhou na Idade Média. Não foi por acaso nem por falta de interesse de minha parte. Muito pelo contrário, na verdade. Como se poderá ver, a apresentação de dois milênios e meio de filosofia é uma tarefa muito assustadora e, por razões de espaço, fui compelido a omitir muitos aspectos importantes do assunto, que tiveram de ser despojados de tudo, exceto do essencial mais básico.
A evolução da filosofia oriental (que deveria abranger a filosofia chinesa – um vasto tópico em si mesmo) procedeu em linhas bastante diferentes da filosofia no Ocidente, que atingiu seu ápice com Hegel e culminou na revolução filosófica provocada por Marx e Engels. Fazer justiça a esse tema teria exigido não apenas uma grande (e bastante injustificada) expansão do presente livro, como também teria exigido um ou mais volumes adicionais. Portanto, em vez de publicar um resumo insatisfatório de um assunto bastante complicado, o que não agradaria a ninguém, muito menos a mim, resolvi deixar esse assunto de lado, com a intenção de talvez voltar a ele quando a pressão de tempo e de trabalho permitir.
O que é filosofia?
O marxismo começou como uma filosofia e o método filosófico do marxismo é de fundamental importância para a compreensão das ideias de Marx e Engels. Mas o que é filosofia?
Filosofia é uma forma de pensar diferente do tipo de pensamento a que estamos acostumados na vida cotidiana. Não se limita às questões imediatas da vida diária, mas tenta lidar com as grandes questões da vida e da morte, o universo, a natureza das ideias e da matéria, e o que é bom e o que é mau. Essas são questões que, em última análise, são de grande importância para cada um de nós. No entanto, elas normalmente não ocupam um lugar central nos pensamentos da maioria das pessoas.
Durante toda a história, pelo menos até o presente, as mentes da maioria dos homens e mulheres foram absorvidas principalmente pela luta diária pela existência. Elas estão totalmente ocupados com questões mundanas como: terei um emprego na próxima semana? Terei dinheiro suficiente para chegar até o final do mês? Terei um teto sobre minha cabeça, uma escola para meus filhos? E assim por diante.
No entanto, o pensamento humano é capaz de coisas muito maiores. A história do pensamento inclui a história da Arte, começando com as maravilhosas pinturas rupestres de Lascaux e Altamira; a história da ciência, que nos permitiu conquistar a natureza e estender as mãos às estrelas; e também a história da filosofia, com suas muitas e surpreendentes observações.
A filosofia surge assim que homens e mulheres começam a tentar explicar o mundo sem a intervenção de agentes sobrenaturais: deuses e deusas e todo o restante da parafernália supersticiosa da religião que foi carregada desde os tempos mais primitivos. Ela marca o início de uma compreensão científica da natureza e de nós mesmos.
Uma visão revolucionária do mundo
O marxismo é, antes de mais nada, uma visão de mundo, ou uma filosofia se você preferir. Ele tem um vasto alcance. É uma teoria da história e da economia, e também um guia para a ação revolucionária. Mas de onde Marx tirou suas ideias? Elas não caíram das nuvens. O próprio Marx explicou que havia três fontes principais para suas ideias: havia a economia burguesa clássica inglesa (Adam Smith e David Ricardo), depois os corajosos pioneiros do socialismo utópico: os franceses Saint-Simon e Fourier, e meu conterrâneo galês Robert Owen.
Mas o primeiro e mais importante elemento nos estágios de formação das ideias de Marx e Engels foi, sem dúvida, a filosofia clássica alemã, particularmente Hegel. Esta, por sua vez, foi o produto de um longo período de desenvolvimento de muitas escolas diferentes de pensamento filosófico. Veja, seria muito fácil descartar, por exemplo, as ideias dos socialistas utópicos (como o fez Dühring). Mas certamente é mais apropriado prestar tributo à sua notável contribuição à história do socialismo e reconhecer o papel que suas ideias desempenharam na fase de formação do marxismo.
Recentemente, reli partes da obra de Robert Owen e posso dizer que algumas de suas ideias ainda são bastante revolucionárias hoje. Isso significa que, ao homenagear Owen, defendemos o retorno às ideias do socialismo utópico? Claro que não! Mas é impossível negar que essas ideias desempenharam um papel importante no desenvolvimento do socialismo científico. Esse é um fato indiscutível.
De vez em quando deparo-me com o preconceito um tanto infantil de quem imagina que tudo o que veio antes de Marx e Engels pode ser descartado como conservador e reacionário. É bem verdade que não apenas Hegel, mas também Adam Smith e Ricardo foram “pensadores da classe alta”. Alguns tolos imaginam que só esse fato seria suficiente para desqualificá-los como grandes pensadores revolucionários. Também é verdade que alguns deles (embora não todos) defendiam opiniões políticas que tendiam ao conservadorismo ou mesmo à reação. O próprio Hegel era conservador em suas opiniões políticas, embora na juventude tenha simpatizado com a Revolução Francesa. Mas isso não altera o fato de que seu método dialético continha um elemento muito revolucionário – um fato que foi reconhecido pelas autoridades reacionárias prussianas, que chegavam a suspeitar que Hegel fosse ateu e tivesse visões subversivas.
Marx explicou há muito tempo que as ideias dominantes de cada época são as ideias da classe dominante. Aqueles homens representavam o pensamento mais avançado de sua época e Marx se baseou nessas ideias. A lei do valor, que foi descoberta por Adam Smith e desenvolvida por Ricardo, levou diretamente à teoria da mais-valia de Marx e a dialética idealista de Hegel levou ao materialismo dialético. A ideia de que os marxistas podem ignorar as ideias do passado é tão estúpida quanto o preconceito de alguns anarquistas radicais de que, para construir uma nova sociedade sem classes, é necessário destruir tudo o que veio antes e construir tudo de novo. Essa é a essência destilada do utopismo e, se a aceitássemos, excluiríamos a possibilidade de realizar uma revolução socialista na prática.
Uma revolução socialista não destruiria as conquistas reais do capitalismo. Pelo contrário, construiria sobre elas, enchendo-as de um conteúdo social e de classe inteiramente diferente. As conquistas da ciência e da tecnologia não serviriam mais aos interesses de uma minúscula classe dominante parasitária, mas seriam planejadas harmoniosamente no interesse de toda a sociedade. Vamos construir a nova sociedade usando os tijolos deixados pela velha, pela simples razão de que não existem outros tijolos pré-fabricados para essa tarefa.
Da mesma forma que faríamos uso das forças produtivas existentes – a terra, as fábricas, a ciência e a tecnologia – herdadas da velha sociedade, devemos nos basear nas ideias mais avançadas desenvolvidas no passado. O marxismo negou o idealismo de Hegel, ao mesmo tempo em que preservou tudo o que era progressista e revolucionário em seu método dialético. Os fundadores do socialismo científico resgataram a dialética, que nas mãos de Hegel se apresentava sob uma aparência distorcida e idealista, e a colocaram pela primeira vez sobre uma sólida fundação materialista. Ao fazer isso, eles criaram uma arma poderosa para mudar a sociedade ao longo de linhas revolucionárias.
Por que estudar a história da filosofia?
Todos os escritos de Marx e Engels são baseados em um método filosófico definido e não podem ser compreendidos sem ele, o método do materialismo dialético. O mesmo vale para as obras de Lenin e Trotsky, os mais destacados representantes do pensamento marxista no século XX. A dialética já era conhecida dos gregos antigos e mais tarde foi desenvolvida por Hegel. As ideias básicas do materialismo dialético não são tão difíceis de entender. Como todas as grandes ideias, elas são essencialmente simples e bonitas em sua simplicidade.
Mas muitos que se consideram marxistas se contentam em repetir algumas ideias básicas, sem se preocupar com o significado mais profundo do que estão dizendo. Esses “marxistas” parecem uma criança que aprendeu a recitar a tabuada de forma mecânica, ou melhor, um papagaio que aprendeu a imitar a fala humana e a repetir certas frases sem ter a mais vaga compreensão de seu significado. Para chegar a uma compreensão completa do materialismo dialético, muito estudo cuidadoso será necessário. No momento, estou trabalhando em um trabalho mais abrangente sobre a filosofia marxista que, espero, venha a ajudar a esclarecer as questões mais complicadas envolvidas.
Mas há uma dificuldade envolvida no estudo da filosofia em geral, e da filosofia marxista em particular, e que está no cerne do presente trabalho. Quando Marx e Engels escreveram sobre o materialismo dialético, eles podiam pressupor um conhecimento básico da história da filosofia por parte, pelo menos, do público leitor instruído da época. Hoje em dia é impossível fazer tal suposição.
“História da Filosofia” de Hegel
Comecei a ler a monumental História da Filosofia em três volumes de Hegel quando tinha dezessete anos e ainda estava na escola. Eu li todo o primeiro volume e metade do segundo antes de ir para a universidade. Eu a achei absolutamente fascinante. Ali, diante dos meus olhos, estavam 2.5000 anos do mais profundo pensamento humano, estabelecido de uma maneira dialética convincentemente clara e abrangente.
Ainda possuo vários cadernos escolares repletos de notas que fiz na época sobre a História da Filosofia, a Filosofia da História e a Fenomenologia do Espírito. Eu até tinha um caderno no qual copiei extensas seções da primeira parte da Enciclopédia de Ciências Filosóficas de Hegel. Eu havia procurado em vão por uma cópia daquela obra notável, mas quando finalmente consegui uma em uma biblioteca de referência, descobri que estava no alemão original! Mas não me deixei desanimar com tal detalhe. Na época meu conhecimento da língua alemã era muito bom, então comecei a ler e fazer anotações. Infelizmente aquele caderno em particular se perdeu no decorrer de minhas viagens.
Esse entusiasmo por Hegel permaneceu comigo desde então. O que me impressionou na História da Filosofia foi a forma altamente original com que Hegel abordou o assunto. Ele é apresentado não como uma série de desenvolvimentos acidentais, mas como um todo orgânico – um processo que evoluiu por meio de uma série de contradições, em que um conjunto de ideias aparentemente nega o anterior, levando a uma espiral interminável de desenvolvimento do pensamento humano.
Claro, pode-se encontrar falhas na abordagem idealista de Hegel da história da filosofia. Mas o mais importante a se ver é o método dialético que caracteriza todas as suas obras. Onde outros viram apenas uma massa de ideias desconexas, acontecimentos acidentais e gênios individuais, Hegel foi o primeiro a ver um processo orgânico com uma lei e uma lógica interna próprias.
No desenvolvimento da filosofia por meio de uma série de contradições, Hegel viu não apenas um processo negativo, por meio do qual um conjunto de ideias aniquilava outro. Ele entendeu que esse processo de negação também implicava a preservação de tudo o que era válido e verdadeiro nas etapas anteriores. Essa ideia de negação que ao mesmo tempo preserva é o que ele chamou de suprassunção, e se expressa na linguagem mais sublime em sua introdução à Fenomenologia do Espírito:
“O botão desaparece no desabrochar da flor, e poderia dizer-se que a flor o refuta; do mesmo modo que o fruto faz a flor parecer um falso ser-aí [forma] da planta, pondo-se como sua verdade em lugar da flor: essas formas não só se distinguem, mas também se repelem como incompatíveis entre si. Porém, ao mesmo tempo, sua natureza fluida faz delas momentos da unidade orgânica, na qual, longe de se contradizerem, todos são igualmente necessários. E é essa igual necessidade que constitui unicamente a vida do todo.”
Engels, comentando sobre a Filosofia da História de Hegel, disse que esse método representou um passo colossal à frente:
“Ele foi o primeiro a tentar demonstrar que existe um desenvolvimento, uma coerência intrínseca na história, e por mais estranhas que algumas coisas em sua filosofia da história possam nos parecer agora, a grandeza da concepção básica ainda é admirável hoje, comparada tanto a de seus predecessores quanto a dos que o seguiram na aventura de avançar observações gerais sobre a história.”
Apesar de todos os seus defeitos, a grandeza da História da Filosofia de Hegel – seu alcance majestoso e suas profundas observações – ainda é uma fonte de admiração para mim até hoje. Quanto aos críticos pós-modernos de Hegel, repetirei o que Lenin escreveu uma vez sobre Rosa Luxemburgo, citando as palavras de um antigo provérbio russo: “As águias podem às vezes voar mais baixo do que as galinhas, mas as galinhas nunca podem chegar à altura das águias”.
A visão marxista da história da filosofia
No presente trabalho, tentei fazer uso da descoberta de Hegel, mas de um ponto de vista consistentemente materialista. Esta não é uma história da filosofia na noção empírica da palavra. Também não é um compêndio de tudo o que todos disseram sobre filosofia. Quem procura encontrar nesta obra, por exemplo, um estudo detalhado sobre a República de Platão ficará tristemente desapontado. Devo encaminhar essa pessoa à biblioteca pública mais próxima, onde espero que possa encontrar um número suficiente de obras eruditas para satisfazer sua curiosidade. Esta é uma história da filosofia em sua essência. Ou seja, tentei seguir a linha geral de desenvolvimento do pensamento, que tem suas próprias leis imanentes.
Por outro lado, temo que meu livro não satisfaça os “marxistas” mecanicistas que imaginam ser possível reduzir tudo sob o sol ao desenvolvimento das forças produtivas e/ou à luta de classes. É claro que, em última análise, essas são as forças motoras fundamentais da história humana e determinam o destino de países, estados e impérios. Mas tentar encontrar a explicação para obras de arte e música, por exemplo, ou para as fantásticas reviravoltas da filosofia e da religião impondo uma ligação direta com esse substrato seria uma tola perda de tempo.
No entanto, na medida em que os filósofos (como todos os outros) podem ser afetados pelo estado geral da sociedade – a ascensão e queda das forças produtivas e as tensões sociais e políticas resultantes –, uma relação pode ser discernível em certas fases, embora indiretamente, como meu trabalho indicará.
Como Engels escreveu em uma carta ao economista alemão Conrad Schmidt:
“No que toca aos domínios ideológicos que ainda flutuam mais alto no ar (religião, filosofia etc.), eles têm uma componente [Bestand] pré-histórica, encontrada e retomada pelo período histórico — a que nós hoje chamaríamos absurdo. Essas diversas representações falsas da natureza, da constituição do próprio homem, de espíritos, forças mágicas etc. só negativamente têm algo de econômico por fundamento; o baixo desenvolvimento econômico do período pré-histórico tem como complemento, mas também, por vezes, como condição e mesmo como causa as representações falsas acerca da natureza.
E mesmo se a necessidade econômica foi — e cada vez se tornou mais — a mola principal do conhecimento progressivo da natureza, seria, no entanto, pedante querer procurar causas econômicas para todo esse absurdo de estado primitivo. A história das ciências é a história da gradual eliminação desse absurdo ou da sua substituição por um novo absurdo, mas sempre menos absurdo.
As pessoas que se ocupam disso pertencem, por sua vez, a esferas particulares da divisão do trabalho e apresentam-se como trabalhando em um domínio independente. E, na medida em que formam um grupo autônomo no interior da divisão social do trabalho, as suas produções (e inclusive os seus erros) têm uma influência retroativa sobre todo o desenvolvimento social, mesmo sobre o [desenvolvimento] econômico.
Mas, em tudo isto, elas próprias estão, por sua vez, sob a influência dominante do desenvolvimento econômico. Por exemplo, na filosofia, isto é muito fácil de demonstrar para o período burguês. Hobbes foi o primeiro materialista moderno (no sentido do século XVIII), mas [era] absolutista num tempo em que a monarquia absoluta estava, em toda a Europa, no seu apogeu e travava, na Inglaterra, uma luta com o povo. Locke era, na religião como na política, filho do acordo de classes de 1688. Os deístas ingleses e os seus continuadores mais consequentes — os materialistas franceses — foram os autênticos filósofos da burguesia — os franceses chegaram a ser os filósofos da revolução burguesa. Na filosofia alemã de Kant até Hegel emerge o pequeno burguês [Spiessburger] alemão — ora positivamente, ora negativamente. Mas, como domínio determinado da divisão do trabalho, a filosofia de cada época tem por pressuposto um certo material intelectual que lhe foi transmitido pelos seus antecessores e de onde ela parte.
E vem daí que países economicamente atrasados possam, na filosofia, tocar como primeiros violinos: a França no século XVIII face à Inglaterra, sobre cuja filosofia os franceses se basearam; mais tarde, a Alemanha face a ambas. Mas, na França como na Alemanha, a filosofia era, como o florescimento geral da literatura naquele tempo, também resultado de um surto econômico.
A supremacia final do desenvolvimento econômico, neste domínio também, para mim está estabelecida, mas tem lugar dentro das condições prescritas pelo próprio domínio singular: na filosofia, por exemplo, pela ação [Einwirkung] de influências [Einflusse] econômicas (que, na maior parte dos casos, operam, por sua vez, apenas sob o seu disfarce político etc.) sobre o material filosófico disponível que os antecessores forneceram.
A economia não cria aqui nada absolutamente novo (a novo), mas determina a maneira da alteração e da ulterior formação do material de pensamento encontrado, e mesmo isto, na maioria dos casos, indiretamente, na medida em que são os reflexos [Reflexe] políticos, jurídicos, morais, que exercem a ação [Wirkung] direta maior sobre a filosofia.
O que falta a todos esses cavalheiros é dialética. Eles só veem sempre: aqui causa, ali efeito. Nem uma vez sequer veem que isso é uma abstração vazia, que no mundo real semelhantes oposições polares metafísicas apenas existem em crises, que todo o grande curso [Verlauf] decorre, porém, na forma da ação recíproca — mesmo se de forças [Kräfte] muito desiguais, das quais o movimento econômico é de longe a mais forte, a mais originária, a mais decisiva; que aqui nada é absoluto e tudo é relativo, isso é coisa que eles nem sequer veem; para eles, Hegel nunca existiu.”
O que tentei fazer aqui é traçar o curso essencial e geral do processo de avanço do conhecimento, cujo pleno desenvolvimento, em cada época da história, estabelece a base para que o pensamento humano avance para o estágio seguinte.
A tarefa dos marxistas não é afirmar e simplesmente dissecar todas as escolas de pensamento que já existiram. Em vez disso, é extrair da miríade de tendências e ideias conflitantes os princípios racionais e essenciais que impulsionaram a humanidade ao estágio em que nos encontramos agora. Este processo contribuiu poderosamente para os enormes avanços na ciência e na tecnologia, que por sua vez lançam a base para a progressão da humanidade a um estágio de desenvolvimento qualitativamente superior, sob o socialismo.
A atitude pós-moderna em relação ao passado: onde a ignorância é uma bênção e é uma tolice ser sábio
A dialética tem uma longa história, começando com os gregos, os filósofos pré-socráticos e particularmente com Heráclito. Alcança sua expressão máxima nas obras de Hegel. Mas a tendência dominante na filosofia burguesa moderna trata toda a filosofia passada com desprezo. Não apenas o marxismo, mas todas as grandes ideias do passado são levianamente descartadas, rotuladas como “metanarrativas” e enviadas sem pensar duas vezes para a lata de lixo da história.
No passado, quando a burguesia ainda era capaz de desempenhar um papel progressista, ela tinha uma ideologia revolucionária. Produziu grandes e originais pensadores: Locke e Hobbes, Rousseau, Diderot e os outros pensadores revolucionários do Iluminismo francês, Kant e Hegel, Adam Smith e David Ricardo, Newton e Darwin. Mas a produção intelectual da burguesia no período de declínio exibe todas as evidências de uma avançada decadência senil.
Existem períodos na história que são caracterizados por estados de espírito de pessimismo, dúvida e desespero. Em tais períodos, tendo perdido a fé na sociedade existente e em sua ideologia, as pessoas têm apenas duas alternativas. Uma é desafiar a ordem existente e seguir o caminho revolucionário. A outra é voltar-se para dentro de si mesmo numa tentativa fútil de ignorar as contradições da sociedade buscando a salvação pessoal, seja na religião ou no subjetivismo filosófico extremo.
A velha sociedade está morrendo, mas se recusa obstinadamente a aceitar seu destino. Poderosos interesses materiais continuam a exercer um esforço decidido para sustentá-la, comandam recursos formidáveis e exercem uma influência irresistível em todos os aspectos da vida social e intelectual. Hoje a ideologia da burguesia está em processo de desintegração, não apenas nos campos da economia e da política, mas também no da filosofia. Não produz nada de valioso. Não mais exige apoio positivo, respeito ou autoridade, exala miasmas negativos como um cadáver emite mau cheiro. Esses estados de espírito inevitavelmente encontram sua expressão na filosofia predominante. É impossível ler os produtos estéreis dos departamentos de filosofia das universidades sem um sentimento de tédio e irritação, na mesma medida. Desnecessário dizer que esse retrocesso geral encontra seu reflexo nas atitudes em relação à história da filosofia.
Os jovens estudantes de olhos brilhantes que entram nos departamentos de filosofia com grandes esperanças de iluminação são rapidamente desencantados ou então arrastados para a fossa venenosa do jargão pós-moderno, de onde nenhuma saída é possível. Em qualquer dos casos, eles emergirão sem nunca aprender nada de valor com os grandes pensadores do passado. Não contentes em encher as mentes dos jovens com o lixo pós-modernista, os departamentos de filosofia têm a audácia de introduzir o mesmo lixo no estudo do passado. Evidentemente, a gangue acadêmica pós-moderna não gosta de ser lembrada do fato de que houve uma época em que os filósofos realmente tinham algo profundo e importante a dizer sobre o mundo real.
A distorção da história filosófica
Recentemente, me assinalaram que uma nova (e muito elogiada) tradução de Hegel contém um erro de tradução grosseiro do alemão que coloca a terminologia pós-modernista na boca daquele grande pensador dialético. A prestigiosa nova tradução para o inglês da Ciência da Lógica de Hegel, realizada pela Universidade de Cambridge e que está se tornando canônica em universidades de todo o mundo, traduz repetidamente as palavras alemãs Denken e Denkend (que em inglês significam claramente “pensamento” e “pensar”) como “discurso” e “discursivo”.
Essa é uma falsificação flagrante das ideias de Hegel e uma transgressão de todas as normas éticas de tradução. É um ato criminoso tentar infiltrar o subjetivismo pós-modernista em Hegel. Ao defender essa escolha, o tradutor George di Giovanni tranquilamente afirma sem qualquer prova que:
“O assunto da Lógica não é a ‘coisa-em-si’ ou suas manifestações fenomênicas, quer se conceba seu ’em-si’ como um substância ou como liberdade, mas é o próprio discurso”.
Isso é nada menos que um escândalo. No entanto, passou despercebido pelos “críticos”, que estão todos encantados com a nova “narrativa”. É um ato de vandalismo, mais ou menos o equivalente a pintar um bigode na face da Mona Lisa. Esse pequeno detalhe já deve nos colocar em guarda.
Uma falsa objetividade
Não tenho a menor dúvida de que os espertalhões das universidades não perderão tempo em me acusar de apresentar uma versão unilateral da história da filosofia. Para essa acusação eu me declaro culpado. Como marxista convicto, tenho toda a intenção de defender um ponto de vista filosófico particular – o do materialismo dialético.
Os departamentos de filosofia da universidade não são torres de marfim de conhecimento e cultura, mas apenas trincheiras na guerra entre as classes. Essas trincheiras são cuidadosamente disfarçadas com uma camuflagem artisticamente construída de falsa objetividade pseudocientífica. Mas, por trás dessa teia emaranhada de mentiras, sempre encontramos interesses materiais, preconceito de classe e uma defesa cínica do status quo.
Toda a história da filosofia tem sido uma luta constante entre dois pontos de vista hostis e mutuamente excludentes: o materialismo filosófico e o idealismo filosófico. Ou seja, a abordagem científica e a tentativa de arrastar a consciência humana de volta ao mundo do misticismo religioso. Uma vez que o campo da filosofia sempre foi dividido em uma série de “versões unilaterais”, é totalmente impossível evitar tomar o partido de uma ou de outra dessas visões de mundo. A única diferença entre o presente autor e seus críticos é que fui honesto o suficiente para declarar meu interesse desde o início, enquanto meus críticos sempre se escondem atrás de uma “objetividade” hipócrita e inteiramente espúria, que apenas serve para disfarçar suas opiniões partidárias e pontos de vista de classe.
Até hoje, a filosofia permanece uma batalha sem limites entre o materialismo e o idealismo onde os inimigos do materialismo são numerosos e têm muitas vantagens. Mas será que o fato de se assumir um ponto de vista filosófico e político definido exclui a objetividade? Essa é uma suposição que é desmentida pelos fatos. O grande marxista Leon Trotsky respondeu a essas objeções da seguinte forma:
“Aos olhos de um filisteu, um ponto de vista revolucionário é virtualmente equivalente a uma ausência de objetividade científica. Nós pensamos exatamente o contrário: apenas um revolucionário – desde que, é claro, esteja equipado com o método científico – é capaz de desnudar a dinâmica objetiva da revolução. Apreender o pensamento em geral não é algo contemplativo, mas ativo. O elemento da vontade é indispensável para penetrar nos segredos da natureza e da sociedade. Assim como um cirurgião, de cujo bisturi depende uma vida humana, distingue com extremo cuidado os vários tecidos de um organismo, também um revolucionário, se tiver uma atitude séria para com sua tarefa, é obrigado com estrita consciência a analisar a estrutura da sociedade, suas funções e reflexos”.
Uma palavra sobre meus críticos
Desde que o marxismo emergiu como uma força significativa desafiando a ordem existente, o establishment tem estado em uma perpétua situação de guerra contra todos os aspectos da ideologia marxista, começando com o materialismo dialético. A simples menção do marxismo com certeza provocará uma reação automática em tais círculos. “Desatualizado”, “não científico”, “refutado há muito tempo”, “metafísico” e todo o resto da ladainha esfarrapada e cansativa dos reacionários.
Não tenho dúvidas de que o presente trabalho será saudado por um coro de desaprovação semelhante. Isso não me incomoda nem um pouco. Tenho ouvido a mesma torrente tediosa de insultos nas últimas seis décadas e os argumentos dos críticos de Marx não ganham mais força por serem repetidos com tanta frequência e monotonia. Eu entendo que meus oponentes fiquem ofendidos com isso. Eles tentarão refutar meus argumentos escavando textos antigos para tentar provar que, afinal, preto é branco e branco é preto. Esta é uma reação bastante natural, já que eles próprios defendem um determinado ponto de vista filosófico que é totalmente incompatível com o meu. Com isso me refiro ao ponto de vista do idealismo filosófico – seja este do tipo objetivo ou subjetivo.
Naturalmente, não tenho nenhuma objeção a isso. Eles têm todo o direito de defender quaisquer ideias místicas e irracionais que os atraiam. Mas que não tentem esconder sua parcialidade por trás de uma fachada de falsa objetividade, nem tentem distorcer as ideias de grandes pensadores do passado para que se encaixem em sua própria visão estreita e reacionária.
A filosofia como arma revolucionária
Apesar de sua aura de elevada superioridade e desprezo pela luta de classes, a filosofia oficial é apenas mais uma arma nas mãos da classe dominante, e é usada deliberadamente para confundir e desorientar os jovens e desviá-los do caminho da revolução. Nas palavras do velho Joseph Dietzgen, a filosofia não é uma ciência, mas uma trincheira contra o socialismo.
Antigamente os filósofos eram rebeldes, hereges perigosos empenhados em subverter a ordem moral e social existente. Sócrates foi forçado a beber cicuta; Spinoza foi acusado de ateísmo, excomungado e injuriado; Giordano Bruno foi queimado na fogueira pela Inquisição; os filósofos franceses do século XVIII prepararam o caminho para a tomada da Bastilha. Entretanto, em nossa própria época, a maioria das pessoas considera a filosofia e os filósofos com indiferença ou desprezo, o que é muito merecido. Mas é profundamente lamentável que, ao se afastarem do deserto filosófico atual, as pessoas negligenciem os grandes pensadores do passado que, ao contrário dos modernos pigmeus, foram gigantes do pensamento humano.
A velha filosofia idealista manteve obstinadamente sua independência imaginária da vida social. Até hoje, os filósofos da academia afirmam se distanciar do mundo sujo dos seres humanos reais, da vida social e da política. Mas isso é uma ilusão. Na realidade, eles representam apenas um reflexo desse mesmo mundo, embora de forma mistificada. Em última análise, tenham eles consciência disso ou não, as ideias que defendem são uma defesa mal disfarçada da sociedade existente e, no fundo, o mais sórdido e cínico interesse pessoal.
De minha parte, não tenho intenção de dançar um minueto complexo com acadêmicos que são guiados apenas por um ódio cego ao marxismo e um desejo fervoroso de manter o status quo. Somente tirando do caminho esse lixo ideológico podemos preparar o terreno para a busca bem-sucedida da luta de classes. O marxismo tem o dever de fornecer uma alternativa abrangente às ideias velhas e desacreditadas. Mas não temos o direito de dar as costas aos grandes pensadores do passado: os gregos, Spinoza, os materialistas franceses do Iluminismo e, sobretudo, Hegel. Esses foram pioneiros heroicos que prepararam o caminho para as brilhantes realizações da filosofia marxista e podem ser corretamente considerados como uma parte importante de nossa herança revolucionária.
Temos o dever de resgatar tudo o que foi valioso na história da filosofia ao mesmo tempo que descartamos tudo o que era falso, antiquado e inútil. Assim como a Revolução de Outubro, a Comuna de Paris e a Tomada da Bastilha apontaram o caminho para a futura revolução socialista que transformará o mundo inteiro, as grandes batalhas filosóficas do passado lançaram as bases para o materialismo dialético – a filosofia do futuro. E assim como prestamos muita atenção às lições fornecidas pelas lutas de classes do passado, também temos o dever de estudar a grande batalha de ideias que constitui o significado essencial da história da filosofia.