Um recente e chocante informe do Sunday Times mostra os erros fatais cometidos pelos Conservadores, cuja incompetência e inação levaram a milhares de mortes evitáveis. Trabalhadores e jovens devem lutar para derrubar esse regime apodrecido.
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“Grã-Bretanha sonâmbula no desastre“. Assim concluíram os jornalistas do Sunday Times, investigando o rosário de erros fatais cometidos pelo governo conservador ao lidar com a pandemia da Covid-19.
Vistos isoladamente, cada um desses incidentes poderia ser considerado um erro honesto; o resultado de uma situação caótica, sem precedentes e imprevisível. Mas, quando considerados em conjunto, surge uma imagem clara: uma imagem em que a vaidade e a arrogância de Boris Johnson e seus ministros elitistas custaram milhares de vidas.
Esses crimes não serão esquecidos. Eles não podem ser varridos para debaixo do tapete, como foi feito com as decisões mortais que levaram ao desastre de Grenfell1. Um dia – em breve – haverá um acerto de contas com Johnson e os Conservadores, e a classe trabalhadora se organizará para exigir justiça contra esses assassinos.
Fracasso do governo
O relatório do Sunday Times de ontem é claro e inequívoco. Foi um fracasso do governo em escala monumental.
“Boris Johnson deixou de comparecer a cinco reuniões do Cobra sobre o vírus“, abre o artigo. “Os apelos para encomendar equipamentos de proteção foram ignorados e as advertências dos cientistas caíram em ouvidos surdos“.
“As falhas em fevereiro podem custar milhares de vidas.”
Semanas de tempo potencial de preparação foram desperdiçadas. A consultoria especializada foi ignorada. E equipamentos vitais – como respiradores, Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e kits de teste – não foram adquiridos. Enquanto isso, os conselheiros do governo riam nervosamente entre si, sabendo que o país estava totalmente mal equipado para lidar com uma doença altamente infecciosa e letal.
De acordo com uma fonte anônima de Downing Street:
“[Os assessores do governo] brincavam entre si: ‘Ha-ha, espero que não tenhamos uma pandemia’, porque não havia uma só área a ser fomentada para atendermos aos requisitos básicos de uma pandemia, não importa fazê-lo bem”.
“Se você esteve com os gerentes seniores do NHS2 nos últimos dois anos, saberia que o maior medo, o pesadelo mais terrível, era uma pandemia, porque não estavam preparados para isso”.
Inércia e incompetência
Enquanto o resto do mundo estava soando o alarme, na Grã-Bretanha, Whitehall e Westminster ficaram paralisados pela incompetência e inércia.
Os ministros conservadores pareciam indiferentes à ameaça iminente. Após a reunião inicial do Cobra – o conselho de emergência do governo – em 24 de janeiro, o secretário de saúde Matt Hancock declarou que o coronavírus era apenas um risco “baixo” para o Reino Unido. Mas a doença já estava devastando a China e os cientistas a comparavam com a pandemia de gripe espanhola de 1918, que matou 50 milhões de pessoas.
Quase um mês depois, em 21 de fevereiro, as autoridades britânicas decidiram manter o nível de risco em moderado. Isso ocorreu apesar do vírus já estar se espalhando rapidamente por todo o mundo, com um número estimado de 76 mil casos internacionalmente e de 2.300 mortes relacionadas à Covid-19 na China. No dia seguinte, a Itália registrou 51 casos e duas mortes. E, o mais importante, o Reino Unido já tinha casos conhecidos em diferentes áreas do país.
No entanto, nessas semanas, pouco ou nada foi feito. Em todos os níveis, as decisões urgentes foram adiadas. E os apelos dos consultores científicos para aumentar o nível oficial de ameaça foram ignorados.
Escassez
A austeridade conservadora, revelam os jornalistas do Sunday Times, também desempenhou o seu papel. Os estoques de EPIs haviam diminuído ao longo dos anos, à medida que os escassos recursos do NHS foram desviados para atender às carências mais imediatas.
As compras governamentais de equipamentos médicos essenciais, enquanto isso, foram todas baseadas em contratos “just in time” e nas cadeias de suprimentos globais, que evaporaram rapidamente à medida que países em todos os lugares lutavam para obter máscaras e luvas.
De fato, o Reino Unido estava enviando equipamentos de proteção na outra direção – para a China – nesse período, reduzindo os estoques domésticos ainda mais abaixo dos níveis já perigosamente baixos.
As tentativas de superar a escassez de respiradores, entretanto, foram um assunto ainda mais ridículo. Somente no final do dia o primeiro-ministro reconheceu o problema. Mas, mesmo assim, em vez de assumir o controle da indústria para produzir novas máquinas, ele implorou aos patrões que se juntassem à sua tática chamada “Operação Último Suspiro”.
No entanto, semanas depois, poucas das máquinas tão badaladas viram a luz do dia. Os ministros conservadores prometeram milhares de novos respiradores, produzidos por vários consórcios de grandes empresas. Mas a maioria dos projetos e protótipos foi rejeitada por não atender aos requisitos e padrões necessários para uso na prática, deixando o NHS com uma grande falta das ferramentas necessárias para salvar vidas.
Distante e arrogante
Os planos para a realização de testes também eram improvisados, na melhor das hipóteses, e inexistentes, na pior. Desde o início, os funcionários da Organização Mundial da Saúde gritaram para os países “testarem, testarem, testarem!” para identificar e conter a doença. Mas Johnson e os conservadores – imbuídos da arrogância Etoniana3 típica da degenerada classe dominante britânica que eles representam – ignoraram deliberadamente esse conselho.
A Grã-Bretanha possui uma infinidade de laboratórios e instalações de testes. Estes poderiam ter sido utilizados para implementar um programa de teste em massa e isolar surtos da doença. Isso foi feito em outros países, como a Alemanha, onde o número de mortes é agora uma fração dos números do Reino Unido. Mas o governo sequer entrou em contato com o setor de testes.
De acordo com Doris-Ann Williams, diretora executiva da Associação Britânica de Diagnósticos In Vitro, que representa 110 empresas de testes do Reino Unido, sua organização não recebeu ajuda do governo antes de 1º de abril – muito tempo após o confinamento e, logo depois, o vírus ficou fora de controle.
O governo conservador é claramente responsável por essa dificuldade. A estratégia de combate à pandemia que eles implementavam era totalmente inadequada. Os projetos existentes eram para combater uma doença semelhante à gripe – e não ao mortal coronavírus. Como resultado, o agora infame plano de “imunidade de rebanho” estava sendo rigidamente cumprido, muito depois de ficar claro que isso levaria a uma catástrofe.
É verdade que os principais cientistas do governo, como Chris Whitty, endossaram o conceito de imunidade de rebanho. Mas é evidente que a estratégia encontrou um terreno fértil entre os indiferentes ministros conservadores, para quem a ideia de bloqueio total e paralisia econômica era um anátema.
Diz-se que o hipnotizador de mau caráter de Downing Street, Dominic Cummings, é um firme defensor do plano; assim como Boris Johnson e sua equipe libertária, que sem dúvida queriam manter os negócios funcionando normalmente, para proteger os lucros dos patrões.
Condenado pela arrogância
Em 26 de fevereiro, estudos e modelos científicos estavam surgindo, alertando para a necessidade de medidas de distanciamento social a serem implementadas no Reino Unido, a fim de evitar um número de mortos na casa das centenas de milhares.
Nas semanas seguintes, foram impostas quarentenas em toda a Europa – com escolas fechadas, restaurantes e bares fechados e reuniões de massa proibidas – para proteger a saúde do público. Mas, na Grã-Bretanha, a mensagem oficial ainda era a de “manter a calma e lavar as mãos”.
Somente em 23 de março o país foi oficialmente fechado. Nesse momento, com dias e semanas vitais perdidos, a doença já havia se espalhado como fogo. Como resultado, as mortes aumentaram de forma trágica e completamente desnecessária. E o Reino Unido está agora a caminho de registrar o maior número de mortes por Covid-19 na Europa e o segundo maior do mundo depois dos EUA.
“Eu vi Wuhan”, declarou um funcionário do Departamento de Saúde ao Sunday Times, “mas presumi que não devíamos nos preocupar porque não fizemos nada. Nós apenas assistimos”.
“Uma pandemia sempre esteve no topo de nosso registro nacional de riscos – sempre – mas quando chegou, apenas constatamos. Poderíamos ter sido a Alemanha, mas, em vez disso, estávamos condenados por nossa incompetência, nossa arrogância e nossa austeridade”.
Desaparecido em combate
Então, onde estava Boris Johnson ao longo de tudo isso? O relatório do Sunday Times é conclusivo: o primeiro-ministro havia desaparecido em combate.
Embriagado por seu sucesso eleitoral em dezembro e se divertindo nas comemorações do dia do Brexit, o primeiro-ministro ignorou todos os sinais da catástrofe iminente.
A atitude complacente de Johnson é exemplificada por sua ausência em cinco reuniões do Cobra sobre o coronavírus. Somente em 2 de março o líder conservador participou de seu primeiro comitê Cobra referente à pandemia.
Mas o primeiro-ministro não estava apenas ausente das reuniões do Cobra. Durante grande parte desse tempo, ele ficou completamente ausente do centro do governo, passando semanas em sua casa de campo em Chevening com sua noiva grávida, Carrie Symonds.
“Não há como você fazer uma guerra se o seu primeiro-ministro não estiver presente“, afirmou um consultor de Downing Street ao Sunday Times. “E o que você aprendeu sobre Boris foi que ele não presidiu nenhuma reunião. Ele gostaria que seu país quebrasse. Ele não trabalhava nos finais de semana. Era como trabalhar para um executivo-chefe antiquado em uma comunidade local há 20 anos. Havia uma sensação real de que ele não fez um planejamento urgente da crise. Ele foi exatamente como as pessoas temiam que ele fosse”.
A quem os deuses desejam destruir…
Boris Johnson é sem dúvida um bufão; um imbecil; um renomado palhaço. Mas a atitude distante e complacente que ele demonstrou diante desse desastre histórico não é única. De fato, cada regime apodrecido ao longo da história mostrou a mesma arrogância e insensibilidade em suas horas finais.
O mesmo aconteceu com Luís XVI e sua esposa mimada, Maria Antonieta, que organizavam bailes decadentes enquanto as massas revolucionárias passavam fome e assaltavam o céu na França. O mesmo aconteceu com o czar russo e o kaiser alemão, que trocaram correspondência fraterna às vésperas da Primeira Guerra Mundial. E assim foi com o odiado imperador romano Nero, que se diz ter “tocado” sua lira em seu palácio enquanto Roma – e seus cidadãos – queimavam em um incêndio furioso.
Mas essas características compartilhadas não são acidentais. Como representantes de um sistema que já ultrapassou seu prazo de validade, tais figuras são enviadas pela história para parecerem dolorosamente impotentes e fora de contato com a realidade nos momentos mais decisivos.
“Indecisão, hipocrisia e mentira“, diz Leon Trotsky, observando as semelhanças entre as malfadadas monarquias francesas e russas, “eram, nos dois casos, a expressão, não tanto de fraqueza pessoal, mas também da completa impossibilidade de manterem firmes suas posições hereditárias”.
“Historiadores e biógrafos da tendência psicologista raramente procuram e encontram algo puramente pessoal e acidental, onde grandes forças históricas são refratadas através de uma personalidade“, continua Trotsky, escrevendo em sua História da Revolução Russa. “Mas, como disseram os antigos: a quem os deuses desejam destruir, eles primeiro o enlouquecem“.
Esses comentários sobre os antigos regimes da França e da Rússia são uma explicação adequada da depravação e degeneração do atual governo Conservador – os defensores de um sistema capitalista senil e decadente que deve ser derrubado de forma similar.
O establishment retomando o controle
O conteúdo chocante do informe do Sunday Times de ontem certamente lançou luz sobre os erros mortais cometidos no topo. E, seguindo o exemplo desse porta-voz da classe capitalista, de propriedade de Murdoch, o restante da grande mídia entrou em contato com peças de investigação semelhantes que descrevem os erros fatais do governo.
Similarmente, o novo líder trabalhista, Keir Starmer, surgiu recentemente de seu esconderijo e finalmente começou a fazer mais perguntas inquisitivas ao governo. Até agora, Starmer tem causado uma impressão maravilhosa de Homem Invisível – notável principalmente por sua ausência.
Onde “Sir” Keir Starmer levantou a cabeça, foi principalmente para oferecer seus serviços ao establishment na formação de um governo nacional. Ou, escandalosamente, para pressionar os conservadores a discutir uma estratégia pós-bloqueio, quando o foco do país deveria estar claramente em salvar vidas agora e aumentar o fornecimento de EPIs, respiradores e testes.
Mas a existência desses artigos – e da nova linha de ataque encontrada por Starmer – levanta tantas perguntas quanto respostas. A mais importante, por que agora? Por que essas revelações estão sendo trazidas à superfície apenas neste momento?
Afinal, até a Reuters – a agência de notícias internacional – estava divulgando esses mesmos eventos semanas atrás. De fato, Socialist Appeal tem comentado sobre os riscos da arrogância Tory desde antes do bloqueio, após a reviravolta do governo e do abandono de sua estratégia de “imunidade de rebanho”.
O fato de ser o Sunday Times – uma grande rede de negócios – que fez críticas tão contundentes ao governo conservador é significativo. Isso demonstra que a classe dominante não confia em Boris Johnson e sua gangue de Brexiteers para supervisionar esta crise. Em vez dos atuais dissidentes que ocupam a Downing Street, eles prefeririam ter um “par seguro de mãos” no comando, neste momento.
Sem dúvida, o establishment gostaria de cortar as asas da facção Johnson e Cummings. Antes do surto, esses canhões dispersos estavam tentando entrar em guerra com altos funcionários públicos, tentando substituir “a bolha” em Whitehall por uma variedade de bichos “esquisitos e desajustados”. Agora, os “adultos” querem retomar o controle e colocar pessoas “sérias” no comando.
“O establishment revidou“, proclamou a edição mais recente de The Economist, por exemplo, comemorando como a pandemia supostamente marginalizou os “populistas“.
Governo nacional
A questão de um governo nacional também entra aqui. Com a saída de Corbyn e com a direita trabalhista recuperando o controle sobre o partido, o terreno está agora preparado para uma coalizão do establishment em Westminster.
Tal movimento traria uma série de benefícios do ponto de vista dos capitalistas. Por um lado, permitiria aos xonservadores dividir a responsabilidade por quaisquer erros futuros. Por outro lado, também permitiria que a classe dominante usasse o trabalhismo como um “escudo amassado” para conter trabalhadores radicalizados, à medida que a luta de classes se acentuar nas próximas semanas e meses.
Precisamente por essas razões, os membros do Partido Trabalhista devem se organizar e lutar contra quaisquer movimentos em direção à formação de um governo de “unidade nacional”. Tal passo seria um cálice envenenado para o partido, vinculando o movimento trabalhista aos interesses da classe dominante.
Em vez dessa “unidade nacional” reacionária, os trabalhistas devem lutar pela unidade de classe contra os capitalistas, a fim de proteger os trabalhadores da pandemia e exigir que os patrões paguem por essa crise.
Divisões no topo
Ao mesmo tempo, o informe do Sunday Times é outro sintoma da divisão que surgiu dentro da própria classe dominante. Muitas das “fontes” do artigo, por exemplo, são de Downing Street. E as tensões no gabinete Conservador estão sendo relatadas abertamente pelas principais vozes do capital.
Na superfície, essas divisões estão acima da questão do bloqueio – quando e como as medidas impostas serão levantadas. Por um lado, ministros como Rishi Sunak e Michael Gove refletem as pressões dos patrões, que estão desesperados para reabrir a economia o mais rápido possível. Por outro lado, Matt Hancock reflete as opiniões de uma ala mais perspicaz da classe dominante, que pode ver o perigo político de permitir que o número de mortos suba rapidamente.
Ironicamente, Johnson e Cummings se alinharam oportunistamente com esse último lado. Afinal, Boris, em última análise, só tem um interesse: seu próprio prestígio pessoal. E o líder conservador sabe que deve ser visto como salvador de vidas se quiser continuar sendo primeiro-ministro.
Na realidade, porém, essas cisões refletem uma crise muito mais profunda para a classe dominante. Como Trotsky explicou, as divisões no topo são uma característica de qualquer situação pré-revolucionária – refletindo o fato de que a classe dominante não pode mais governar como o fez no passado. Tudo o que eles fizerem dará errado, pois estão tentando sustentar um sistema que está morrendo sobre seus próprios pés.
Essas divisões, por sua vez, criam as condições para a revolução. À medida que as diferentes alas do establishment se separam, lavando suas roupas sujas em público, elas revelam o abismo no coração do capitalismo. E isso abre caminho para um profundo questionamento do sistema, com saltos dramáticos na consciência de classe.
Prepare-se para a batalha
“Um dia haverá uma investigação sobre a falta de preparativos durante essas cinco semanas“, concluem os autores do artigo do Sunday Times. “Serão os políticos que enfrentarão o escrutínio mais intenso.“
Os estrategistas mais astutos do capital costumam tirar conclusões semelhantes às dos marxistas, mas a partir da perspectiva de classe oposta. Hoje, eles também podem ver os desenvolvimentos explosivos que estão por vir. As greves espontâneas de trabalhadores vistas recentemente contra as condições inseguras são um presságio disso.
E esta é apenas a ponta do iceberg. Até os economistas tradicionais estão prevendo uma nova depressão – um retorno aos níveis de desemprego que não se vê desde os anos 1930. Com isso virá uma enorme intensificação da luta de classes.
A classe dominante quer se preparar para esses eventos limpando os Estábulos de Áugias e colocando figuras “confiáveis” no lugar. Também devemos nos preparar – construindo as forças do marxismo.
Notas:
1 O incêndio na torre Grenfell ocorreu em 14 de junho de 2017, em um prédio de 24 andares em North Kensington, Londres, na Inglaterra. O grande incêndio provocou 72 mortes.
2 Serviço Nacional de Saúde.
3 Referência ao Eton College, centro educador da elite britânica.