A economia mundial está minada pela turbulência, golpeada por uma tempestade perfeita de guerra, pandemia e protecionismo. A tóxica combinação de inflação e recessão vai sendo urdida pelo capitalismo. Esta é uma acabada receita para explosões revolucionárias em todo o lado.
Os preços das ações têm caído nas últimas semanas, enquanto o medo se apodera dos mercados em resposta à guerra na Ucrânia, inflação galopante, lockdowns na China e a ameaça duma nova queda económica.
O índex bolsista FTSE encontra-se na sua mais longa série de perdas diárias desde meados de 2008 – quando a crise das hipotecas “subprime” conduziu ao colapso do Lehman Brothers.
Tais erráticos movimentos das bolsas mundiais são um reflexo do pessimismo que assombra a classe dirigente. De acordo com Warren Buffett, o bilionário investidor: “Nós não estamos muito longe duma repetição de 2008, ou até de algo pior.”
“Os mercados estão a cair não apenas pelas taxas de juro mais altas”, assegurou Luca Paolini, estratega-chefe da Pictet Asset Management. “O Risco duma recessão [nas principais economias] é significativo” – acrescentou. “A realidade é que uma boa parte da economia global está a basicamente contrair-se.”
A Euforia evapora-se
A euforia pela recuperação económica pós-pandémica do ano passado evaporou-se. Tendo aparentemente superado uma crise, uma outra crise rapidamente se instalou no seu lugar. Isto criou o pânico nos conselhos de administração das grandes corporações.
Tal como o Financial Times, o porta-voz do capitalismo britânico, recentemente explicou:
“Apenas no ano passado, muitos economistas esperavam que 2022 fosse um período de forte ricochete económico. Os negócios retornariam ao pleno andamento num mundo pós-covid. Os consumidores estariam disponíveis para esbanjar as suas economias em todas aquelas férias e atividades que não tinham podido realizar durante a pandemia. Seriam uns novos «loucos anos 20», a década de consumismo e euforia que se seguiu à pandemia da Influenza entre 1918-21.” – Maio 2022
Tal boom económico, de acordo com eles, inauguraria uma nova época de crescimento e prosperidade. Mas num curto espaço de tempo, esta perspetiva foi reduzida a cinzas. Ao invés dos “loucos anos 20”, o capitalismo enfrenta uma nova recessão mundial.
Nós entrámos numa era totalmente nova – para citar Kissinger – uma era de profunda crise, onde as velhas normas foram viradas de cabeça para baixo. “A razão tornou-se irracional”. A crise subjacente ao capitalismo, que julgavam contida, reemergiu com uma sede de vingança.
Voltando ao Financial Times e a um seu recente editorial:
“Esta semana, a música económica mudou para um timbre mais ansioso, quando os recentes choques das economias mais avançadas ganharam um eco mais sonoro e prolongado do que era esperado. O que quer que você pensasse sobre a evolução económica há uma semana atrás, deveria agora ficar um pouco mais preocupado do que aquilo que estava.”
Estagflação à vista
As previsões económicas estão a ser rapidamente revistas em baixa. Muitos economistas esperam agora um crescimento económico de 3,3% este ano, ao invés dos 4,1% previstos em janeiro, antes da guerra.
A inflação, há muito considerada enterrada, voltou novamente a mostrar a sua cara feia com a depreciação monetária, o aumento dos preços e a deterioração das condições de vida. A inflação global está agora estimada para os 6,2% : 2,55 pontos percentuais acima das previsões de janeiro. Nos Estados Unidos, a inflação atingiu os 8,3% em abril e é esperado que suba ainda mais. Ao mesmo tempo, a economia americana também contraiu no primeiro quadrimestre, apesar das previsões em contrário.
Muitas economias estão a enfrentar a “Estagflação“. E “este choque «estagflacionário» em 2022 é verdadeiramente global” – explica o Financial Times.
Isto é um reflexo da crescente integração do mercado mundial, em especial nos últimos 30 anos. Os países estão economicamente unidos, como nunca antes, aumentando o problema de contágio. Este é o verdadeiro significado da “globalização”.
Desmontar do tigre
Os bancos centrais estão desesperados para que as coisas estabilizem. Mas as suas previsões, como sempre, são demasiado otimistas. No fim de contas, tinham dito que a inflação seria “ocasional” e “temporária”.
As suas mezinhas disfarçadas de teorias económicas – quer sejam keynesianas ou monetaristas – cegaram-nos para os perigos que o capitalismo enfrenta. E agora estão encostados entre a espada e a parede, ou mais concretamente, entre as contradições do capitalismo.
Durante anos, o capitalismo foi inundado de dinheiro, o que permitiu o sistema manter-se artificialmente à tona. Desde 2008 em diante, a classe dominante injetou dinheiro fácil e barato na economia, mantendo as taxas de juro a níveis historicamente baixos, de modo a evitar uma nova depressão.
Embora tenham sio bem-sucedidos nos seus objetivos imediatos, o sistema capitalista tornou-se viciado nestes estímulos. Mas agora vemos as consequências, com a classe dominante, tarde e a más horas, a ser obrigada a tomar resoluções para reverter as medidas da última década.
Normalmente este excesso de liquidez teria há muito conduzido a uma explosão inflacionária. Mas isso pôde ir sendo evitado pelo estado depressivo da economia mundial. Tudo tem os seus limites, contudo. E o fim dos lockdowns, seguidos rapidamente pela guerra na Ucrânia, serviram de ignição da inflação.
A classe dominante está, portanto, desesperada, por tentar regressar a uma situação de “normalidade”, através do travão aos estímulos fiscais e aos juros baixos, que claramente se tornaram insustentáveis.
Confrontados com uma espiral inflacionária, a Reserva Federal Americana e o Banco de Inglaterra foram forçados a aumentar as taxas de juro. Outros Bancos Centrais, a começar pelo Banco Central Europeu, inevitavelmente se seguirão.
Folhas de Balanço inchadas, sobrecarregadas com históricos níveis de endividamento, precisam de ser “emagrecidas”, mas sem causar um crash. De algum modo, a era do dinheiro fácil e barato tem de acabar. Mas isto não será fácil. É como tentar desmontar das costas dum tigre esfomeado sem ser comido.
Perspetivas sombrias
Dada a situação, aumentar as taxas de juro e cortar nos estímulos fiscais pode claramente provocar uma profunda crise. Muitos negócios mantiveram-se vivos devido a este dinheiro fácil. E cortar com ele agora irá atirar muitos para o abismo, conduzindo a uma onda de bancarrotas.
Mas esta é a única forma dos banqueiros conseguirem escapar da espiral inflacionária. Simplesmente continuarem a injetar liquidez no sistema, conduzirá também ao desastre, provocando uma hiperinflação e intensificando a crise.
Tal como Nouriel Roubini, professor da Stern School of Business em Nova Iorque, avisou: “Os Bancos Centrais podem prosseguir com uma política de normalização, apenas até ao limite de arriscarem um crash financeiro nos mercados de dívida e de transação bolsista. Mas eles têm muito pouca escolha.”
As perspetivas estão a tornar-se crescentemente sombrias. Voltando ao Financial Times:
“O risco duma recessão nas duas margens do Atlântico é agora bastante alto. Talvez seja já demasiado tarde, o génio da inflação saiu da lâmpada e as políticas monetárias necessárias para o erradicar, geram uma recessão no sistema. Em alternativa, se as políticas adotadas forem demasiado prudentes e lentas, permitirão que a inflação persista embutida na economia, com as mesmas derradeiras consequências. O caminho que todos desejamos é estreito e fica entre estes desastres económicos. É possível que sejamos capazes de erradicar a alta inflação sem um profundo colapso económico, mas as hipóteses deste cenário favorável são muito baixas, de facto.”
Recuperação frágil
Ao invés de “uma vez por século” evento, as crises começam a ser mais frequentes e mais sérias. Este é o novo ritmo dos ciclos de boom e crash económico.
Antes da pandemia atacar, a economia capitalista estava já a desacelerar, com um crescente protecionismo e uma superprodução afetando diversos sectores. O Coronavírus deu à crise uma nova e fatal guinada, servindo para aguçar e agravar as contradições do sistema. A cadeia do capitalismo quebrou-se numa série de elos, com efeitos disruptivos tanto na produção como no abastecimento. Isto, por sua vez, conduziu ao encerramento de largos setores da economia, que decorreu em paralelo com o colapso da procura. Milhões ficaram em layoff, foram despedidos, perderam rendimento, somando-se à espiral descendente.
Isto significou que mercados, comércio e cadeias de abastecimento – as artérias da economia mundial – foram severamente perturbadas ou até completamente paralisadas. O que começou com uma crise larvar de sobreprodução acabou no lockdown físico e no encerramento de muitos setores da economia capitalista.
Como resultado, em 2020, a atividade económica contraiu-se em 90% dos países do mundo. Isto excedeu, em proporção, o que sucedera durante as Guerras Mundiais, a Grande Depressão e a crise de 2008 e 2009. A economia inglesa, por exemplo, conheceu o mais acentuado declínio em 300 anos.
Claro que tal colapso não poderia continuar indefinidamente. Num dado momento, inevitavelmente, uma recuperação teria lugar, ajudada em larga medida, por pacotes de estímulos financeiros sem precedentes.
Esta recuperação foi saudada como o princípio duma nova era. Uma vigorosa procura e consumo em bares, restaurantes e férias, supostamente iriam resultar num robusto renascimento económico.
As economias certamente recuperaram por algum tempo. Muitas atingiram até índices pré-pandemia. Mas a recuperação foi continuamente perturbada pelas interrupções e até quebras completas nas linhas de abastecimentos, um legado da pandemia.
Uma produção a “tempo e horas” que tinha expandido os lucros capitalistas nas décadas prévias, tornou-se num caos de “nada em tempo útil”, à medida que indústrias chave e outros setores esgotavam peças e matérias-primas vitais. Essas privações, por sua vez, empurraram os preços para cima e provocaram um novo surto inflacionário.
Guerra e crise
Toda a situação mundial tornou-se excessivamente volátil. A própria integração do comércio mundial, que permitiu uma colossal expansão no passado, tornou-se no seu oposto. Um simples evento num determinado país pode ter efeitos devastadores noutra parte do mundo. Os recentes lockdowns na China, por exemplo, que diretamente afetam as exportações, estão a ter um impacto no conjunto do comércio mundial.
Igualmente, outros fatores – sejam os problemas pós-pandemia, a guerra na Ucrânia, choques políticos ou outros “acidentes” – podem ter um impacto decisivo nas engrenagens do sistema capitalista.
Hoje em dia, o conflito na Ucrânia fez disparar uma cadeia de eventos que estão a ter um alcance e consequências a longo prazo: sejam elas políticas, diplomáticas, sociais e económicas.
A guerra tornou-se numa guerra por procuração entre a Rússia e os países da Nato, especialmente os Estados Unidos, com biliões de dólares de armamento sendo despejados na Ucrânia pelo imperialismo ocidental.
Isto está a ter um impacto massivo em toda a parte. As sanções económicas impostas pelo Ocidente, com o objetivo de isolar a Rússia da economia mundial, terão graves implicações. Os imperialistas americanos e ingleses, em particular, parecem cegos perante as consequências que se anteveem. Eles estão preparados para arriscar tudo no ensejo de derrotar a Rússia, mas as suas ações apenas servem para exacerbar a crise.
A espiral dos preços de energia fez subir os custos e preços em geral, enquanto a inflação assenta arraiais por toda a parte. Se os abastecimentos de gás russo forem parados, como alguns exigem, isso levará a uma imediata queda no abismo, a começar pela Alemanha.
As sanções económicas – que são uma guerra por outros meios – estão a piorar a situação. Por sua vez, a procura dos consumidores continua a ser erodida e os investimentos de capital congelados, encaminhando a economia mundial na direção duma nova recessão.
Nacionalismo económico
Todos estes fatores estão a interagir dialeticamente uns com os outros. Todos os fatores que contribuíram para o ímpeto do capitalismo no passado, são agora as causas que estão a preparar o caminho para a catástrofe económica e social.
Voltando ao Financial Times:
“A guerra é, em suma, a multiplicação de perturbações num mundo já de si perturbado.
E estamos outra vez numa ladeira a caminho da divisão mundial, da disrupção e de perigo”.
A economia mundial está a fraturar-se em blocos, e as cadeias de abastecimento estão-se a partir, enquanto o Ocidente tenta desembaraçar-se do abastecimento de energia da Rússia e reduzir o seu acesso aos mercados.
Entrámos num período de nacionalismo económico semelhante ao período “Entre Guerras” – mais um reflexo de como a propriedade privada e o Estado nacional se tornaram barreiras ao progresso.
As consequências destas mudanças dramáticas foram sublinhadas por Pierre-Olivier Gourinchas, economista-chefe do FMI:
“Se nos tornarmos num mundo de diferentes blocos, teremos de desfazer muito das economias integradas que construímos e das linhas de abastecimento e comércio que organizámos… para construir outra coisa muito mais estreita e de pequena dimensão.
Haverá custos de ajustamentos e também perdas de eficiência e isso levará a um aumento nos custos porque as coisas não serão produzidas tão diligentemente como antes.
E se tivermos um mundo em que coexistam diferentes blocos, então também não sei exatamente como poderemos [FMI] funcionar. Tornar-se-á numa instituição que trabalha para um bloco e não para outros? Como trabalhará através de diferentes partes do mundo? É certamente algo que não desejaríamos em muitos, muitos aspetos.”
Limites do Capitalismo
A presente crise está a minar o que sobrava das suas estruturas expondo claramente os limites do sistema capitalista.
“A instrumentalização e transformação da finança em «armamento» terá profundas implicações para o futuro das políticas económicas e internacionais”, explica o Financial Times:
“Muitas das assunções básicas acerca do pós-guerra fria estão a ser viradas de cabeça para baixo. A globalização era antes apresentada como uma barreira ao conflito, uma teia de dependências que aproximaria antigos inimigos para cooperarem juntos. Ao invés, tornou-se num novo terreno de batalha.”
A guerra na Ucrânia criou uma onda de destruição e estilhaçou qualquer esperança de recuperação. As dramáticas subidas nos custos de energia, por si só, seriam suficientes para abalar a situação. Mas no topo disto, contudo, a queda da produção de trigo e demais cerais na Ucrânia e as sanções à Rússia estão e levar os preços alimentares para níveis estratosféricos, com todas as implicações daí decorrentes.
Tal como o Financial Times avisou em março:
“Quando o preço dos alimentos disparou em 2008, isso ajudou a deflagrar a Primavera Árabe e, eventualmente, a guerra civil na Síria. A invasão Russa da Ucrânia semeou as sementes duma crise que será sentida muito para lá das fronteiras da Europa.”
Conclusões Revolucionárias
Pelas suas próprias ações, a burguesia abriu a Caixa de Pandora. Destruíram qualquer aparência de estabilidade ou equilíbrio, aprofundando as contradições capitalistas em toda a parte. Embriagados pela sua própria propaganda, intensificaram a crise capitalista de um modo que dificilmente poderia ter sido previsto.
Todo este cenário está a lançar as bases para uma poderosa convulsão na luta de classes na Europa e internacionalmente. A inflação deteriorará dramaticamente os níveis de vida e a classe trabalhadora não terá outra alternativa se não lutar.
Na sequência da Primeira Guerra Mundial, Leon Trotsky explicou que “o custo de vida é o mais poderoso elemento do fermento revolucionário em todos os países”. Foi esta questão que, uma vez mais, serviu para levantar a luta de classes a novas alturas na década de 70, colocando na agenda várias situações revolucionárias. Isto está à beira de repetir-se, mas numa escala ainda maior.
Tal como uma diretora do FMI, Kristalina Georgieva avisou: “A história já nos mostrou que a fome é muitas vezes o catalisador para a agitação social e para a violência”.
Não são os ciclos de expansão ou retrocesso económico que engendram por si as revoluções, mas as mudanças rápidas entre um e outro ciclo, agitando as consciências nesse processo. Bastante material inflamável tem sido acumulado no período recente. E esse material inflamável está constantemente a acumular-se. A estabilidade do passado está acabada.
Engels referiu-se aos “40 anos de adormecimento” da classe operária britânica, que precedeu a explosão do “Novo Sindicalismo” na década de 1890. Esse movimento inaugurou uma nova era de luta de classes, guerra e revolução.
Hoje em dia, o refluxo na luta de classes nos principais países capitalistas – um refluxo com mais de três décadas – está finalmente a chegar ao fim.
À medida que se levantar o nevoeiro da propaganda de guerra e a realidade da crise capitalista nos atingir em cheio, milhões de trabalhadores e jovens serão chamados à luta de classes. E uma nova geração está prestes a entra na luta, sem as máculas das derrotas passadas. Dada a crise, muitos irão tirar conclusões radicais e até mesmo revolucionárias.
O lamento de Martin Wolf, um estratega do capitalismo, segundo o qual “estamos outra vez numa ladeira a caminho da divisão mundial, da disrupção e de perigo” é um aviso sério que faz à classe dirigente para o que está para acontecer. Do que ele fala, mas nãos e atreve a nomear, é a Revolução. Para aqueles que têm olhos para ver, esta é exatamente a natureza do período em que entrámos.