O que começou como um protesto contra o pacote do FMI imposto pelo presidente Lenin Moreno se transformou em uma insurreição nacional que coloca a questão de quem governa o país. A enorme mobilização de massas forçou o governo a fugir da capital Quito e a fechar a Assembleia Nacional. Também começou a abrir rachaduras dentro das forças armadas. Para avançar, o movimento deve levantar a questão do poder.
[Source]
Na semana passada, a segunda da insurreição operário-camponesa, resultou em cinco mortes (pelo menos); centenas de feridos e detidos e repressão brutal em nível nunca visto no Equador há décadas – e tudo isso não conseguiu deter o movimento. Nem o estado de emergência, nem o toque de recolher, nem as mentiras da mídia, nem as falsas ofertas de negociação, nem o exército nas ruas detiveram as massas. O governo de Lenin Moreno – com o apoio de toda a oligarquia capitalista, do imperialismo estadunidense, de todos os governos reacionários da região – não conseguiu esmagar o movimento decidido dos camponeses, do povo indígena, dos trabalhadores e dos estudantes.
Greve geral
Na quarta-feira, 9 de outubro, uma poderosa greve geral paralisou o país. Em Quito (a capital abandonada pelo governo), uma enorme marcha (entre 50.000 e 100.000 manifestantes) se dirigia novamente ao Palácio Presidencial Carondelet, apressadamente desocupado por Moreno no dia anterior. Por alguns momentos, o movimento tomou o controle da também desocupada Assembleia Nacional, com a intenção de instalar uma Assembleia do Povo.
Em Guayaquil, a oligarquia liderada pelo prefeito Viteri e seu mentor Nebot, agitou uma máfia racista e pequeno-burguesa contra os “Índios”. “Que fiquem nos pântanos”, gritou o empresário e banqueiro Nebot, um líder social-cristão, invocando o espectro do “cerco da capital” pelo movimento indígena: “eles não merecem pisar no chão de Guayaquil, eles vêm para destruir”. Mas apenas alguns milhares de pessoas compareceram a essa “demonstração de força”. Uma enorme força policial e militar foi necessária, além de caminhões de obras públicas, para bloquear a Ponte da Unidade Nacional que liga a populosa cidade operária de Durán a Guayaquil, para impedir a passagem de milhares de manifestantes anti-governo.
Dentro da própria cidade de Guayaquil também houve manifestações contra o pacote do FMI, sobre as quais a mídia cúmplice fez silêncio. E foi precisamente ali que um incidente muito significativo ocorreu. Um grupo de policiais motorizados chegou à avenida 9 de Outubro com a intenção de atacar um pequeno grupo de manifestantes anti-governo, mas, ante o ataque da polícia motorizada, alguns militares protegeram os manifestantes, entrando em confronto com os policiais.
Esse foi um incidente pequeno, mas pode ser adicionado a outros incidentes similares que indicam que a insurreição popular, por um lado, e a repressão brutal do Estado, por outro, estão começando a produzir estragos entre os soldados rasos – que também vêm de famílias pobres, da classe trabalhadora e camponesas.
No mesmo dia, em Quito, o exército e a polícia foram mobilizados de forma agressiva contra a enorme manifestação pacífica que marchava pela capital. Eles usaram gás lacrimogêneo e cassetetes, e avançaram com veículos blindados sobre a multidão. A repressão foi dirigida igualmente contra todos: mulheres e crianças incluídas. No fim do dia, a polícia lançou gás lacrimogêneo no campus de duas universidades em Quito, os dormitórios do povo indígena que se mudaram para a capital em números de dezenas de milhares. Houve tentativas da polícia de atacar o Ágora na Casa da Cultura: o centro da logística e gestão do movimento.
O balanço geral foi de cinco mortos. Um deles, Inocencio Tucumbí, o líder indígena de Cotopaxi, foi assassinado por um impacto direto de um cilindro de gás na cabeça. Três jovens foram mortos ao serem lançados de uma ponte em San Roque durante confrontos com a polícia. Testemunhas oculares disseram que a polícia os empurrou.
O governo – de fato, toda a classe dominante, que se uniu por trás do pacote e contra a insurreição – combinou a repressão mais brutal com informações falsas sobre uma suposta negociação, mediada pelas Nações Unidas e pela Igreja Católica. De fato, “conversas” estão ocorrendo com sindicatos e “líderes” indígenas de organizações que não representam ninguém e não são os que lideram o movimento. O governo pretende comprar o movimento com algumas migalhas na forma de “desenvolvimento”, pagas com parte do dinheiro economizado pela abolição do subsídio ao combustível (1,3 bilhões de dólares). Mais uma vez, a organização nacional dos povos indígenas, CONAIE, negou a existência de tais negociações.
Guerra de classes
10 de outubro, o oitavo dia da insurreição, foi de raiva e luto. A mídia e o governo espalham mentiras e desinformação continuamente, apresentando os manifestantes como violentos. Grande quantidade de imagens compartilhadas na redes sociais deram conta da brutalidade da polícia nos dias anteriores. Policiais motorizados foram mostrados golpeando duas mulheres indígenas que estavam paradas silenciosamente em uma esquina; havia imagens de um jovem, já no chão, sendo brutalmente espancado e assim por diante.
Milhares de pessoas se reuniram em uma assembleia extraordinária no Ágora da Casa da Cultura em Quito, para deliberar e tomar decisões sobre os passos a serem dados. Oito policiais, que estavam patrulhando as imediações do prédio, foram desarmados pelo movimento e levados ao pódio. Os líderes locais do movimento, um depois do outro, dirigiram-se à multidão reunida em número de milhares. Foi anunciado que poderiam confirmar duas mortes no dia da greve nacional e que as autoridades haviam sido obrigadas a entregar seus corpos.
O movimento não só emite demandas, está começando a tomar decisões. A mídia presente foi instruída a transmitir a assembleia ao vivo para todo o país, o que fez (parcialmente). Foram guardados dois minutos de silêncio pelos mortos e a polícia foi obrigada a tirar seus capacetes e jalecos à prova de bala como sinal de respeito.
A certa altura, surgiu um rumor de que a polícia estava preparando um assalto ao Ágora com gás lacrimogêneo. Os líderes que presidiam a assembleia obrigaram a polícia a chamar seus superiores à distância e obter a garantia de que não entrariam, o que foi obtido.
Alguns propuseram marchar para a Assembleia Nacional a fim de tomar o prédio, com a polícia na frente, desarmada, “para que saibam o que é repressão”. A atmosfera era de ira e profunda indignação. O slogan “Fora Moreno” estava nos lábios de todos e foi repetido pela assembleia em uníssono. A liderança nacional de CONAIE, que está um passo atrás do ânimo geral das bases, ainda não o endossou e não aparece em nenhum de seus comunicados.
Outro tema comum em quase todas as intervenções foi a exigência de que as forças armadas parassem de obedecer ao governo. Houve um claro apelo para a derrubada do regime. Também foi anunciado que três outras governadorias provinciais tinham passado às mãos do povo na região amazônica. A partir daí, mais colunas de milhares de indígenas chegaram a Quito para fortalecer o movimento.
Finalmente, depois de levar o ataúde (sobre os ombros da polícia e líderes indígenas) de Inocencio Tucumbí em um cortejo de honra e após uma cerimônia oficial em sua honra, o movimento marchou pela capital para entregar os agora 10 policiais detidos às Nações Unidas.
A Assembleia Popular
No dia seguinte, 11 de outubro, mais uma vez a insurreição operário-camponesa marchou em direção à Assembleia Nacional com o objetivo de tomá-la. A marcha, com dezenas de milhares de pessoas, era pacífica e chegou na frente do prédio que se encontrava pesadamente guardado pela polícia e exército. Depois de um período de tensa espera, alguns soldados recuaram de suas posições. O movimento se deteve. Foi organizada a alimentação, que também foi oferecida aos soldados. Há uma clara e correta política de se utilizar todas as oportunidades para confraternizar com as fileiras do exército.
De forma traiçoeira e sem aviso prévio, a polícia utilizou essa pausa para reagrupar suas forças e lançou um nova onda de repressão, disparando massas de gás lacrimogêneo e balas contra a multidão que estava se alimentando no Parque Arbolito. A multidão resistiu, evacuando os feridos, criando corredores para tirar os mais vulneráveis e construindo barricadas. Era um cenário de guerra civil – de guerra de classes.
Enquanto isso, o cínico Moreno apareceu na televisão oferecendo “diálogo”, que foi de novo rejeitado de forma rotunda pela CONAIE em um duro comunicado. As condições do movimento são: a revogação do decreto do combustível, afastamento da ministra do interior e do ministro da defesa, responsáveis pela repressão, antes que haja qualquer negociação.
Mas mesmo isso já está aquém do que está acontecendo. O que o movimento agora aspira é derrubar Moreno. “Quien se va de Quito, pierde su banquito” gritam nas ruas. Até mesmo a ideia de pressionar a Assembleia Nacional para que declare novas eleições está em contradição com as ações práticas do movimento que trata de tomar o prédio da Assembleia para instalar a Assembleia do Povo, isto é, um governo alternativo. A questão de quem governa o país se coloca claramente. Os ricos ou os pobres, a oligarquia e o FMI ou o povo trabalhador, os capitalistas e banqueiros ou os operários e camponeses.
Na prática, a insurreição equatoriana controla já grande parte da capital (com exceção dos prédios oficiais abandonados) e várias províncias do interior. Está começando a se organizar, tem sua própria guarda indígena e toma decisões em assembleia que logo são postas em prática.
A situação é insustentável do ponto de vista da burguesia e do imperialismo. Seu poder está pendendo de um fio. Daí o empenho em impedir a entrada dos manifestantes na Assembleia Nacional. Não é simplesmente um prédio vazio (já se fala em se mudar sua sede para Guayaquil), mas um símbolo do poder.
O levantamento tem a seu favor a coragem, a decisão e o arrojo de milhares, dezenas de milhares de jovens, operários, camponeses, mulheres que se bateram nas ruas contra Moreno e o FMI. Falta-lhes ainda uma compreensão clara das tarefas a enfrentar e como realizá-las.
É urgente proclamar a Assembleia do Povo como poder legítimo e espalhá-la por todo o país. Há que desenvolvê-la como um autêntico organismo democrático de direção do movimento, com delegados eleitos nas barricadas, nos bairros populares, nas fábricas e universidades, nas comunidades indígenas. Os elementos de autodefesa que já existem devem ser coordenados e desenvolvidos. A Guarda Indígena deve ser ampliada e trazer milhares para suas fileiras. Diante da brutal repressão da polícia e do exército há que se organizar a defesa. Isso deve ser combinado com o aprofundamento do trabalho de confraternização com os soldados que já começa a dar resultados.
Estamos em um momento crucial. A batalha pelo poder está colocada, mas ainda não foi resolvida. Se o movimento não avançar com passos decisivos, existe o risco de que o cansaço e a falta de perspectivas comecem a causar estragos. Nessas condições, o governo pode usar a repressão seletiva com concessões cosméticas para enfraquecer o movimento ainda mais.
Se se avança com decisão e objetivos claros, a derrubada o governo é totalmente possível. Pode-se tomar o céu por assalto. A hora é agora.