Eleições nos EUA: O desastre da democracia burguesa norte-americana

As eleições presidenciais dos Estados Unidos deste ano são uma demonstração repulsiva da falência total da democracia burguesa americana, em um momento de crise e polarização sem precedentes. Não importa quem ganhe, os trabalhadores e os jovens americanos perdem. Dado o pesadelo que o capitalismo norte-americano impôs ao país e ao mundo inteiro, o que é necessário acima de tudo é um partido socialista de massas que lute pelos interesses dos trabalhadores.


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“Estou preocupada com nossa economia, estou preocupado com … E se Trump vencer de novo? E se Biden entrar? Quer dizer, vai ser um ou outro e isso me assusta muito porque eu realmente não quero nenhum deles” – uma idosa trabalhadora e ex-eleitora de Trump em Wisconsin, entrevistada no podcast The Daily.

Na véspera da eleição de 2016, escrevemos o seguinte: “Se o Brexit pôde acontecer, Donald Trump pode se tornar o próximo presidente dos Estados Unidos”. Contra todas as probabilidades e para o desânimo de bilhões de pessoas ao redor do mundo, foi exatamente isso o que aconteceu. Em seguida, explicamos as razões fundamentais de sua surpreendente vitória. Acima de tudo, enfatizamos que a única maneira de derrotar Trump e o sistema que ele representa é lutar a partir de uma base independente de classe contra o capitalismo.

Na sequência do colapso econômico de 2008, as eleições de 2016 marcaram uma virada no cenário político dos EUA. Não apenas inaugurou o período mais polarizado e turbulento de que se tem memória, mas também marcou uma nova etapa na crise do regime da classe dominante norte-americana. Como o Brexit, a vitória de Trump “não era para acontecer”. Nenhum dos principais estrategistas políticos esperava isso, e ele claramente não era o candidato que Wall Street queria. Mas para milhões de eleitores cansados ​​e irritados que acabaram de viver oito anos de estagnação sob os democratas, a perspectiva de mais um “status quo” do governo Clinton não serviu de inspiração. Os “deploráveis” mostraram a Washington e aos liberais um dedo médio gigante.

A eleição de 2016 foi caracterizada pela crise do liberalismo e de um sistema bipartidário que não conseguiu refletir o real estado de espírito de descontentamento da sociedade. Acima de tudo, marcou a entrada dramática do socialismo no diálogo dominante e nas mentes de dezenas de milhões de trabalhadores e jovens americanos.

Quatro anos já se passaram e, apesar de um grau sem precedentes de ódio de classe acumulado, a classe trabalhadora ainda não tem um partido próprio. Como uma repetição trágica e farsesca de 2016, Bernie Sanders capitulou mais uma vez diante do establishment. A classe dominante deu um suspiro coletivo de alívio quando ele desistiu da corrida. No entanto, o espectro do socialismo continuou a pairar sobre a eleição. Quase a metade dos americanos, incluindo 70% dos jovens, dizem que votariam em um candidato socialista. Tem-se falado mais sobre a ascensão do socialismo – e mais sobre a ameaça vermelha por parte de um presidente dos EUA – do que em qualquer outro momento desde o colapso da União Soviética. Como resultado, Trump está enfrentando outro candidato democrata de Wall Street. Não está de forma alguma descartado que ele possa vencer as probabilidades mais uma vez e ganhar outro mandato. Mas isso não significa que nada mudou desde a última vez.

Vivemos em um mundo significativamente diferente. A crise sistêmica do capitalismo é abrangente e está constantemente corroendo a confiança em todas as suas instituições. A experiência da pior crise econômica da história, a pandemia mal controlada e o maior e mais amplo movimento de protesto da história dos Estados Unidos deixaram uma marca indelével na consciência de milhões – e é apenas o começo.

Não esqueçamos que Bernie teve o apoio entusiástico de milhões e parecia prestes a ganhar a indicação democrata – até que o partido se uniu em torno de Biden. No início de março, foi o ímpeto da campanha de Sanders – mais do que a economia, a administração Trump ou mesmo a pandemia crescente – que encheu a classe dominante de pavor. Se Sanders tivesse se apresentado como independente desde o início, ou se apresentado como candidato depois de ser minado e descarrilado, o cenário eleitoral seria fundamentalmente diferente. Imagine-se como seria uma campanha ousada e enérgica da classe trabalhadora por emprego, saúde e educação universais. Uma campanha que mobilizasse milhões em um plano abrangente para reconstruir a infraestrutura do país e combater a crise climática, ao mesmo tempo em que defendesse os salários e empregos dos trabalhadores. Uma campanha que colocasse o socialismo e a luta contra o racismo e a brutalidade policial em primeiro plano.

Crise sobre crise, em camadas

Embora Trump tenha pressionado para reabrir a economia a qualquer custo, a recuperação se refletiu, sobretudo, no mercado de ações e não no mercado de trabalho. Com certeza, o maior crescimento do PIB da história foi registrado no terceiro trimestre, mas isso aconteceu apenas porque havia caído tão vertiginosamente na primeira metade do ano.

Na realidade, a economia ainda é 3,5% menor do que há um ano. Milhões continuam desempregados, milhões foram lançados na pobreza desesperadora e cerca de 9,9 milhões de famílias estão atrasadas no pagamento de hipotecas ou de aluguéis e em risco de serem despejadas de suas casas.

A dívida nacional deverá ultrapassar o PIB pela primeira vez desde a 2ª Guerra Mundial. Isso significa que cada trabalhador nos EUA teria que produzir durante um ano inteiro sem consumir nada – sem comida, sem combustível, sem diversão, sem nada – e ainda não seria o suficiente para cobrir tudo o que o país deve. Sem contar os trilhões devidos em cartões de crédito, hipotecas, empréstimos estudantis e automóveis e muito mais.

A pandemia atingiu novas alturas nos dias anteriores às eleições, com 50 mil pessoas hospitalizadas, quase nove milhões de infectados e 230 mil mortes registradas nos Estados Unidos até agora.

E, para completar, há uma profunda incerteza sobre como a Casa Branca e uma sociedade hiper-polarizada responderão aos resultados – ou se esses resultados deixarão clara alguma solução que se aproxime em tempo hábil. Esta é a situação geral enquanto o mundo assiste ao incêndio da lixeira da democracia burguesa americana.

Montanha russa política

Em 2016, após dois mandatos de Obama, os intensamente desprezados Donald Trump e Hillary Clinton disputaram a presidência. Todos nós sabemos o resultado – uma vitória tênue para o astro do reality show. Quatro anos depois, temos um referendo de fato sobre o presidente em exercício.

Trump prometeu revogar e substituir o Obamacare por algo melhor; gastar trilhões em infraestrutura; reviver a manufatura e a mineração de carvão; e, é claro, forçar a China a “jogar limpo” e fazer o México pagar por um muro de fronteira. Ele também prometeu fazer a “America First” – mas só conseguiu fazer dos EUA o número um em infecções e mortes por Covid-19. O maior boom econômico da história dos Estados Unidos desabou sob seu comando, e sua resposta à pandemia foi uma distopia orwelliana.

E, no entanto, ele continua a se apresentar como um dissidente, habilmente aproveitando o clima anti-establishment generalizado. Embora ele seja atualmente o rei do esgoto, ele pode argumentar razoavelmente que é o verdadeiro “outsider” [“independente”] na campanha. Afinal, ele é o salvador da América, o homem que tornou o país “Grande Novamente” – e o único que pode mantê-lo assim.

E, embora muitos que votaram nele o tenham finalmente abandonado devido ao modo como lidou com a pandemia e a economia, ele ainda tem uma base forte em muitas partes do país. Muitos acreditam em sua palavra de que a China é a culpada pelo vírus, que os cientistas arruinaram a economia e que hordas de socialistas violentos imporão uma tirania stalinista, se Joe Biden for eleito. Ganhando ou perdendo, a raiva arraigada contra o establishment liberal, instigada pela mídia de extrema direita, vai continuar por um bom tempo, e Trump continuará a capitalizar sobre isso.

Trump até agora se recusou a se comprometer com uma transferência pacífica de poder caso perca a eleição. Isso levou o Pentágono a intervir, deixando claro que os militares não interviriam para decidir a eleição de uma forma ou de outra. O Departamento de Segurança Interna e outras agências fizeram preparativos especiais no caso de distúrbios civis. As empresas nas principais cidades estão fechando as janelas com tábuas em preparação para um possível furacão de levantes sociais, e um muro “não escalável” será erguido ao redor da Casa Branca. Este é um estado de coisas extraordinário.

Polarização

A sociedade americana está mais polarizada do que nunca. Os movimentos sociais dos anos 1950, 1960 e início dos anos 1970 ocorreram no contexto de um aumento geral nos padrões de vida. Agora, a maioria está atolada em estagnação há décadas, enquanto os bilionários acumulam riquezas astronômicas.

Muitos comentaristas falam das “duas Américas”. Dizem que um tipo de regionalismo “rural versus urbano” dividiu irreconciliavelmente o país. Sem dúvida, os EUA são um país vasto e variado, com uma enorme diferenciação regional e uma ampla gama de culturas e subculturas “americanas” sobrepostas e frequentemente antitéticas. Mas, no fundo, o que está ocorrendo é um processo prolongado e distorcido de polarização e diferenciação de classes. Dada a fraqueza da esquerda, a falta de um partido político de massa da classe trabalhadora e a capitulação dos líderes trabalhistas aos grandes negócios, isso é expresso de uma forma distorcida e contraditória e refratada pelos principais partidos existentes.

Ironicamente, os fundadores deste país procuraram evitar completamente o partidarismo e o sistema partidário. Mas os partidos políticos representam classes ou camadas de classes na sociedade e, em última análise, os interesses econômicos e sociais dessas classes e camadas. Enquanto houver classes, a política partidária e os partidos, de uma forma ou de outra, não podem ser proibidos por decreto e encontrarão um meio de expressão.

Os EUA são únicos entre os países industrializados avançados, no sentido de nunca terem tido um partido político de massa da classe trabalhadora de qualquer tamanho ou duração significativa. Construir tal partido é a principal tarefa política de nossa classe no próximo período histórico. Este é um desafio enorme, mas tal partido pode surgir muito mais rapidamente do que qualquer pessoa pode imaginar sob certas condições.

Há um potencial enorme e um vácuo enorme para políticas independentes de classe. O chamado centro político foi esvaziado pela crise capitalista, o que explica o crescente interesse pelo socialismo e pelo comunismo e o surgimento de uma extrema direita mais vocal e visível. Diz muito que a revista Science tenha descoberto que os americanos agora odeiam mais as pessoas do partido político oposto do que amam “seu próprio” partido.

No entanto, essa polarização não se expressa apenas ideologicamente e nas pesquisas. À moda americana consagrada pelo tempo, um número crescente de pessoas está procurando uma saída em conjunto.

Milícias de extrema direita que estocam armas para combater a tirania de um governo sem controle infestam este país há décadas. Picos nas vendas de armas também são comuns antes das eleições, já que o lobby de armas e munições provoca o pânico da compra, vociferando que os democratas estão chegando para tirar as armas das pessoas. Mas a mudança que estamos vendo agora reflete algo muito mais profundo.

A compra de armas aumentou pela primeira vez desde o início da pandemia. Na verdade, desde o final da década de 1990, oito das dez semanas com as vendas mais altas de armas registradas foram desde março deste ano. Por várias razões, um número crescente de americanos comuns – tanto de esquerda quanto de direita – não confia no Estado para mantê-los seguros e acredita que a única maneira de se defender é fazendo exatamente isso.

Esse clima de ansiedade e insegurança é função da instabilidade geral provocada pela crise interminável. Aqueles que se inclinam para a direita acreditam na cobertura sensacionalista da mídia de eventos em lugares como Portland e Seattle e temem que turbas “esquerdistas” invadam os subúrbios, saqueiem suas casas e sequestrem seus filhos. Muitos que se inclinam para a esquerda temem que, se Trump perder ou se for uma eleição contestada, haverá caos e violência de organizações neofascistas como os Proud Boys e Boogaloo Boys. E se Trump vencer, eles temem que todo o aparato estatal seja utilizado contra eles.

A ascensão de milícias negras efetivamente armadas, como a Not Fucking Around Coalition, é altamente significativa. Não vamos esquecer que os negros se defenderam com armas nas mãos contra os supremacistas brancos na era da Reconstrução e do Jim Crow South1 em lugares como Tulsa em 1921. O aumento de patrulhas armadas de bairro em cidades como Minneapolis durante os protestos contra o assassinato de George Floyd neste verão é também uma expressão embrionária da necessidade de autodefesa organizada da classe trabalhadora.

E mesmo que não haja violência generalizada em torno dessas eleições em particular, as apostas estarão altas para os confrontos inevitáveis entre as classes no futuro. A grande maioria dos americanos costumava acreditar que outra guerra civil “não pode acontecer aqui“. Porém, cada vez mais, milhões de pessoas acreditam que isso não é apenas possível, mas também iminente, que não é uma questão de se, mas, sim, de quando as coisas começarão a estourar.

Este é precisamente o tipo de tensão que se acumulou, com arranques e paradas, no período prévio às duas guerras civis revolucionárias que este país já experimentou.

Uma fraude e uma farsa

Trump bateu incessantemente o tambor da fraude eleitoral. Embora não haja evidências de que esse tipo de fraude seja generalizado, certamente houve irregularidades. Pilhas de cédulas foram supostamente encontradas perdidas ou queimadas. Urnas não oficiais de coleta de votos apareceram na Califórnia. E nos vastos espaços do Texas, o governador permitia apenas uma estação oficial de coleta de votos por condado – embora alguns condados tenham 40 mil habitantes e outros 2 milhões.

A recusa do presidente em aceitar preventivamente a possibilidade de derrota pode ser uma forma de estabelecer uma cobertura para uma perda, o que seria devastador para seu ego e imagem. Nos bastidores, uma equipe de 150 pessoas, incluindo o chefe de gabinete de Trump, está trabalhando há meses em uma possível transição para um governo Biden. Embora tenha uma influência indevida, o destino da República capitalista americana não está apenas nas mãos de um único indivíduo.

Ao pintar os resultados como fraudulentos, Trump pode realmente ficar em uma posição ainda mais forte fora do poder do que dentro dele. Ele ficaria ainda menos limitado pela necessidade de decoro e preocupação com a integridade institucional do que como presidente. Se Biden vencer, herdará várias crises e terá ferramentas limitadas para enfrentá-las, sem falar na virulenta oposição de extrema direita. Se Trump puder turvar a transferência de poder e se apresentar como uma vítima da tirania liberal, sua base ficará incandescente e ele viverá para lutar outro dia – potencialmente concorrendo a outro mandato em 2024.

Mas podemos concordar com o presidente sobre isso: essas eleições são uma fraude e uma farsa. Com relação a toda a conversa de Trump dando um “golpe” contra a Constituição dos Estados Unidos, devemos deixar claro que este último documento sempre foi uma ferramenta para garantir o domínio de uma minoria sobre a maioria.

Durante décadas depois que a Constituição foi adotada pela primeira vez, apenas homens brancos e donos de propriedades podiam votar. Escravos, mulheres, nativos americanos e os pobres não tinham voz alguma. Eventualmente, depois de muitas ondas de amarga luta de classes, a franquia foi estendida. As mulheres americanas não obtiveram o direito de votar até 1920 – três anos depois de a Revolução Russa garantir esse direito. Mas inúmeras outras medidas foram e são usadas para limitar a participação política ou para arquitetar os resultados antecipadamente – desde as exigências de alfabetização até as taxas de votação e à manipulação contorcionista dos distritos.

A intimidação dos eleitores e a violência eleitoral são tão antigas quanto a Constituição – e tão americanas quanto uma torta de maçã. O mesmo ocorre com a privação de direitos institucionais. São 36 os estados que atualmente têm requisitos de identificação para os eleitores. Sete estados têm leis rígidas de identificação com foto – sem exceções. Ao mesmo tempo, mais de 21 milhões de cidadãos americanos não possuem um documento de identidade oficial com foto. Essas identificações podem ser caras e, mesmo quando são gratuitas, os solicitantes devem cobrir a documentação relacionada e as despesas de viagem.

Depois, há os milhões de imigrantes documentados e indocumentados que vivem, trabalham e pagam impostos nos Estados Unidos e que têm que cumprir as leis americanas, mas não têm voz sobre o que acontece com eles ou aos lugares em que vivem. Soma-se a isso os 3,4 milhões de porto-riquenhos que não podem votar, apesar de serem um “território dos EUA” – na verdade, uma colônia de fato – governado em última instância pelo Congresso e pelo presidente. O mesmo se aplica aos cidadãos americanos das Ilhas Virgens, Guam etc.

E quanto aos 5,2 milhões de criminosos condenados que não podem votar, mesmo que já tenham cumprido suas sentenças? Devido ao racismo estrutural do capitalismo americano, essa camada da população é desproporcionalmente pobre, negra e latina. Mais de 6,2% da população negra adulta não tem direito ao voto, em comparação com 1,7% da população não negra. Quase 900 mil moradores da Florida que cumpriram suas sentenças continuam impossibilitados de votar neste chamado estado indeciso, apesar de um referendo eleitoral de 2018 que prometeu restaurar seus direitos de voto.

Somado a isso, exércitos de advogados democratas e republicanos estão atualmente inundando os tribunais com moções para invalidar dezenas de milhares de votos por este ou aquele motivo espúrio. Quando apenas algumas centenas de votos decidem regularmente as eleições, esse tipo de margem pode fazer uma diferença real.

E ainda há o Colégio Eleitoral. O fato é que não há direito constitucional para os cidadãos da “maior democracia do mundo” elegerem o cargo mais alto do país. O que é eleito no dia da eleição é o chamado Colégio Eleitoral. Os votos para este órgão são alocados com base em quantos senadores e deputados cada estado tem. Mas, como cada estado recebe automaticamente dois senadores e no mínimo um congressista, isso desvia a balança para estados menores, rurais e conservadores. Mesmo que pareçam pequenas, essas margens podem novamente ser decisivas.

Por exemplo, Dakota do Norte e Califórnia têm dois senadores e os votos eleitorais correspondentes, embora a população da Califórnia seja 50 vezes maior. Em todos os estados, exceto Maine e Nebraska, o vencedor leva todos os votos eleitorais. Trump ganhou o enorme estado da Flórida por apenas 100 mil votos em 2016 – e obteve todos os 29 votos eleitorais. Em 2000, George W. Bush ganhou todos os votos eleitorais da Flórida e a presidência com uma vantagem de apenas 525 votos populares. E embora Trump tenha recebido três milhões de votos populares a menos do que Hillary Clinton naquele ano, apenas 77 mil votos em três estados do Meio-Oeste superior entregaram-lhe o Colégio Eleitoral e as chaves da Casa Branca.

Como resultado, o chamado campo de batalha ou estados decisivos têm muito mais importância quando se trata de campanha – uma vez que tudo o que importa são os 270 votos eleitorais necessários para a vitória. Muitos estados têm quase a garantia de votar em um partido ou outro, de modo que 80% da população que vive em estados fora do campo de batalha geralmente é simplesmente tida como certa. Isso abalou Hillary Clinton em 2016, já que ela não visitou o estado de Wisconsin nem uma vez, tão confiante estava de que os votos estavam garantidos. Portanto, não importa se você votar em Trump em Nova York ou Biden no Mississippi – seu voto tem efeito zero no resultado. Não é de admirar que a maioria dos americanos apoie a abolição total dessa instituição arcaica.

Alguns estados assinaram o Pacto Interestadual do Voto Popular Nacional (NPVIC, em suas siglas em inglês) para resolver isso. Este é um acordo entre um grupo de estados dos EUA e o Distrito de Columbia para conceder todos os seus votos eleitorais a qualquer candidato presidencial que ganhe o voto popular geral. Mas o número de votos eleitorais ainda estaria inclinado para os estados menores, mais rurais e conservadores.

Com toda a sua sabedoria, os redatores da Constituição decidiram por um número par de eleitores, abrindo assim a possibilidade de empate no Colégio Eleitoral. Se isso ocorresse, a Câmara dos Representantes elegeria o presidente com base em um voto por delegação estadual. Isso torna ainda mais ridículo o conceito de democracia, já que a Califórnia receberia um voto por sua delegação de 53 deputados, enquanto Dakota do Sul também receberia um voto por seu único representante. Como as coisas estão atualmente em 2020, isso favoreceria Donald Trump.

Depois, há a Suprema Corte, que pode muito bem ser chamada para pesar nas eleições e, potencialmente, fazer pender a balança, como fez no fiasco de 2000 entre Al Gore e George W. Bush. Durante anos, o presidente da Suprema Corte, John Roberts, tentou exercer um papel de equilíbrio, usando o poder do tribunal para exercer influência política sem parecer que o fazia. Essa charada será mais difícil de realizar agora que o tribunal está cheio de “intérpretes” conservadores da Constituição – nomeados para a vida. É importante notar que os juízes Roberts, Kavanaugh e Coney Barrett estiveram todos envolvidos na campanha de Bush nas eleições de 2000.

O fato de haver os chamados juízes liberais e conservadores expõe a natureza profundamente política desse órgão não eleito. Embora eles nos façam acreditar que o mais alto tribunal do país flutua acima do resto do estado e da sociedade de classes, nada poderia estar mais longe da verdade. Como a monarquia britânica nada inócua, a Suprema Corte é um baluarte fundamental do governo burguês. Outrora um fator estabilizador confiável, ela também está se transformando em um fator desestabilizador do mais alto nível, à medida que as pessoas perdem ainda mais a confiança na chamada imparcialidade da lei.

Alguns se referem a tudo isso como “democracia representativa”. Mas é precisamente o que sempre foi – democracia burguesa – um sistema projetado para defender os interesses de uma minúscula minoria proprietária sobre os interesses da maioria em grande parte sem propriedade.

Quem sairá?

Muito se falou sobre a participação eleitoral nessas eleições. Quase 100 milhões de votos foram emitidos antes do dia da eleição, cerca de dois terços do total de toda a eleição de 2016. Alguns estimam que a participação eleitoral chegará a 65% ou 70% dos eleitores qualificados. Em comparação com uma média de cerca de 55% nas últimas eleições presidenciais, isso parece indicar um envolvimento real. Mas mesmo essas projeções significariam que 30 a 35% dos eleitores potenciais – dezenas de milhões de pessoas – não estariam motivados o suficiente para sair e votar, apesar de quatro anos de caos e pressão do mal menor.

A participação antecipada foi, em parte, motivada pelas condições impostas pela pandemia e, também, por temores de que problemas com os Correios invalidem votos que não foram emitidos com muita antecedência. As pessoas também se preocupam com a violência e a intimidação nas seções eleitorais no dia das eleições. E, como vimos, milhões são motivados mais pelo ódio ao partido adversário do que pelo verdadeiro entusiasmo pelo candidato em que votam. Apenas 22% dos eleitores dizem que a eleição de 2020 será “definitivamente” livre e justa e quase 3 em cada 4 eleitores de qualquer um dos partidos estão preocupados com protestos violentos, independentemente do resultado. Os jovens estão especialmente céticos.

A maior participação e especialmente o aparente aumento de eleitores jovens, parece favorecer Biden e os democratas. Depois de ter desaparecido da vista do público nos últimos anos, o partido fez trotar o ainda popular Barack Obama nos últimos dias em favor de Biden. Muitos conservadores, incluindo jornais e especialistas que nunca apoiaram um democrata, se manifestaram a favor de Biden – não porque “se moveram para a esquerda”, mas porque ele está muito longe para a direita. A perspectiva de mais quatro anos de um egoísta maníaco indomável e imprevisível na Casa Branca lhes dá pesadelos. Em tempos como este, eles prefeririam alguém que defendesse seriamente seus interesses, enquanto fizesse comentários retóricos com relação aos problemas sociais mais urgentes.

“Siga o dinheiro”

Durante o segundo debate presidencial, Trump acusou Biden de ser o candidato de Wall Street – e não estava errado. Uma pesquisa com CEOs realizada pela Yale School of Management no final de setembro descobriu que 77% planejavam votar em Biden e que mais de 60% previam que ele venceria. A instabilidade é ruim para os negócios e Trump é a definição da instabilidade.

Embora a América corporativa tenha lucrado muito com Trump, Joe Biden é visto como alguém mais seguro. Seus comitês conjuntos de arrecadação de fundos se beneficiaram de uma onda de grandes contribuições da América corporativa durante o terceiro trimestre, levantando US$ 383 milhões somente em setembro. De acordo com o apartidário Center for Responsive Politics, o setor financeiro favoreceu amplamente Biden, gastando mais de US$ 50 milhões para apoiar sua candidatura, em comparação com US$ 10 milhões para Trump. Como todos os bons capitalistas, eles veem essas contribuições como um investimento e esperam um retorno, seja direta ou indiretamente, no curto ou no longo prazo.

Com base na amostragem e metodologia de pesquisas, que supostamente são mais refinadas do que em 2016, Biden lidera Trump por uma margem maior nacionalmente e em estados decisivos do que Hillary Clinton. Pelo que vale, o mercado de ações dá a Biden uma pequena vantagem. O pesquisador Robert Cahaly, do não ortodoxo Trafalgar Group, que foi contra a tendência e previu a vitória de Trump em 2016, prevê outra reviravolta. Portanto, embora seja estatisticamente improvável, uma vitória de Trump não pode ser descartada.

A calmaria antes da tempestade fedida

Muitas pessoas sentem sinceramente que os riscos são mais altos do que nunca e que seus entes queridos e familiares estão literalmente na linha de fogo. Eles esperam que a tensão e a polarização diminuam se houver uma mudança de tom no topo. Por falta de alternativa, eles votarão sem entusiasmo em Biden. Mas eles ficarão amargamente desapontados mais uma vez, não importa quem saia na frente. A incerteza, a instabilidade e a polarização só irão piorar, e as relações fundamentais de exploração e opressão permanecerão – até que o sistema como um todo seja derrubado pela ação consciente da classe trabalhadora.

Como vimos, pequenas margens em áreas específicas podem ter uma influência desproporcional no resultado final. Mulheres suburbanas brancas votaram fortemente em Trump em 2016, mas começaram um êxodo em meados de 2018. As mulheres negras, consideradas por muitos como a espinha dorsal do Partido Democrata, estão mobilizadas para votar em números recordes – não importa que os líderes do partido estejam montando em suas costas. Mas tudo depende de onde os votos são emitidos – e se são contados ou não. Provavelmente chegará a um punhado de estados, incluindo Pensilvânia, Wisconsin, Arizona e Flórida. Desde 1928, apenas dois candidatos que ganharam na Flórida não conseguiram a presidência.

A menos que seja uma vitória indiscutível para Biden, é improvável que conheçamos os resultados completos na noite das eleições. Pode levar dias ou semanas para que todos os votos sejam contados. Trump pode muito bem declarar a vitória na noite da eleição, apenas para gritar que ele foi “roubado” depois que todas as cédulas de correio forem contadas. Ou ele pode simplesmente se recusar a ceder, mesmo diante de uma vitória clara de Biden. Trump fez carreira apostando que sairá por cima em uma corrida selvagem por posição, que seus oponentes ficarão tão surpresos e desorientados que serão eliminados da disputa. Se necessário, ele arrastará o processo pela lama dos tribunais o máximo possível, desencadeando uma crise constitucional e legal profana – que se danem as consequências para o sistema como um todo.

E se Biden perder, é improvável que ele também ceda antes de esgotar todos os ângulos legais e procedimentais possíveis. E se for enviada ao Supremo Tribunal ou à Câmara dos Representantes, a confiança no processo ficará ainda mais abalada. Não importa qual seja o resultado, mais caos, instabilidade e confusão estão praticamente garantidos.

Existem inúmeras variáveis ​​e devemos esperar o inesperado. O que outra vitória de Trump significaria para a classe trabalhadora? Quais são as perspectivas para a luta de classes sob Biden e um governo de “unidade nacional”? O que acontecerá se os democratas ganharem a “trifeta” e varrerem o Congresso e a presidência? O que tudo isso significaria para o movimento organizado dos trabalhadores? Para o DSA2 e a esquerda em geral? E quanto às eleições de votos negativos? Exploraremos essas e outras questões nos próximos dias. Quer leve horas, dias, semanas ou meses para se resolver totalmente, esses processos estarão um pouco mais cristalizados depois de amanhã.

Isso já está claro: a classe trabalhadora não tem candidato nessas eleições. George Floyd e Breonna Taylor não têm candidato. Os incontáveis ​​sobreviventes de agressão sexual não têm candidato. Os jovens que herdarão a catástrofe climática não têm candidato. Um desses candidatos pró-capitalistas vencerá e a classe trabalhadora como um todo perderá. Enormes grupos de esquerda cederam à pressão de um mal menor e à alegada iminência do fascismo. Eles não têm noção disso, embora a política americana tenha de fato se desviado ainda mais para a direita – a classe trabalhadora como um todo e especialmente a juventude não. Há uma desconexão flagrante entre o que é necessário e desejado por milhões de trabalhadores e jovens e o que está sendo oferecido nas urnas. Eventualmente, algo terá que acontecer.

Já dissemos antes, e diremos um milhão de vezes mais, se necessário: o que a classe trabalhadora americana precisa é de um partido de massas próprio, armado com um programa socialista revolucionário que transcenda os limites do capitalismo. Essa ideia deve ser clara, paciente e obstinadamente levantada no movimento, o fulcro em torno do qual nossas muitas lutas, aparentemente separadas, podem ser unidas em uma só.

Quem quer que vença, o dia 3 de novembro de 2020 marcará um novo ponto de inflexão na crise do capitalismo, na luta de classes e no desenvolvimento contraditório da consciência de classe. Se Trump for vitorioso, a indignação e o desespero incrédulos darão um nó no estômago de milhões – enquanto seus asseclas e bajuladores estarão se regozijando. Mas mesmo que uma explosão inicial de protestos acabe por perder força – nenhum movimento pode viver indefinidamente alimentando-se apenas com a raiva – podemos esperar que o movimento inspirador dos últimos meses retorne a um nível ainda mais alto nos próximos quatro anos. Incapaz de derrotar um palhaço criminoso durante um colapso econômico e uma pandemia, a podridão absoluta dos democratas seria exposta de uma vez por todas e a necessidade de uma ruptura total e imediata será evidente para milhões.

Se Biden vencer, será a Escola dos Democratas 2.0. Tendo herdado uma tremenda bagunça de Trump, ele terá uma espécie de lua de mel – embora não para sempre. Sua missão será restabelecer a estabilidade e a credibilidade das instituições do sistema enquanto prepara o caminho para a próxima geração de defensores democratas do capitalismo. Lembre-se: até as tímidas migalhas de Bernie eram vistas como radicais demais pelos líderes do partido. A visão deles para o futuro do partido passa direto por gente como a ex-“policial top” Kamala Harris. Se os democratas ganharem o controle do Congresso, não terão desculpas legítimas para não realizar as amplas reformas apoiadas pela maioria, e as reais lealdades e limitações do sistema ficarão expostas.

As eleições burguesas podem fornecer um instantâneo alívio na sociedade em um determinado momento. Mas não podem oferecer uma solução para os problemas fundamentais enfrentados pelos trabalhadores e jovens. Embora não seja um processo automático ou linear, eventualmente, o desespero, a raiva sem foco e a incerteza serão eliminados pela luta de classes.

Uma era de revolução e contrarrevolução

O período em que entramos se assemelha mais aos anos pré-revolucionários de 1750 e 1850 do que aos anos 1950. A relativa estabilidade do período pós-guerra está morta e enterrada, e as contradições sociais estão empurrando na direção de uma nova revolução em nossa vida.

O grande Frederick Douglass compreendeu a importância do voto e foi um defensor ao longo da vida do sufrágio tanto para os negros quanto para as mulheres. Uma das primeiras coisas que ele fez como escravo fugitivo em New Bedford, Massachusetts, foi registrar-se para votar. Mas ele também entendeu que votar por si só não é suficiente para trazer mudanças fundamentais. Ele sabia que as instituições projetadas para o domínio de uma classe sobre a outra não podem ser reformadas –devem ser derrubadas por meio da luta. Em 1857, às vésperas da Guerra Civil dos Estados Unidos, ele escreveu as seguintes e magníficas linhas:

“Deixem-me dizer uma palavra sobre a filosofia da reforma. Toda a história do progresso da liberdade humana mostra que todas as concessões feitas às suas augustas reivindicações nasceram de uma luta fervorosa. O conflito tem sido excitante, agitado, absorvente e, por enquanto, silenciou todos os outros tumultos. Deve fazer isso ou não fará nada. Se não há luta, não há progresso. Aqueles que professam favorecer a liberdade e ainda assim desaprovam a agitação são homens que querem plantar sem arar o solo; eles querem chuva sem trovões e raios. Eles querem o oceano sem o terrível rugido de suas muitas ondas.

“Esta luta pode ser moral ou pode ser física e pode ser moral e física, mas deve ser uma luta. O poder não concede nada sem uma demanda. Ele nunca fez isso e nunca fará. Descubra-se a que qualquer pessoa se submeterá silenciosamente, e se terá descoberto a medida exata da injustiça e do erro que será imposta a ela, e isso continuará até que seja enfrentada com palavras ou golpes ou com ambos. Os limites dos tiranos são prescritos pela resistência daqueles a quem eles oprimem. À luz dessas idéias, os negros serão caçados no Norte e presos e açoitados no Sul, desde que se submetam a esses ultrajes diabólicos e não ofereçam resistência, seja moral ou física. Os homens podem não receber tudo o que pagam neste mundo, mas certamente devem pagar por tudo o que recebem. Se algum dia nos libertarmos das opressões e dos erros que se amontoam sobre nós, devemos pagar por sua remoção. Devemos fazer isso pelo trabalho, pelo sofrimento, pelo sacrifício e, se necessário, por nossas vidas e pela vida dos outros”.

Fique atento para mais análises das eleições nos EUA nos próximos dias e semanas!


Notas:

1 As leis de Jim Crow foram leis estaduais e locais que impunham a segregação racial no sul dos Estados Unidos.

2 Socialistas Democráticos da América (DSA, na sigla em inglês) é uma organização política social-democrata nos Estados Unidos.

 

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