Mais uma vez o Egito está à beira de uma importante virada. Três anos depois que Abdel Fatah al-Sisi chegou ao poder, seu regime está sendo engolido pela crise em todos os níveis.
Sisi chegou ao poder no Egito depois que milhões de pessoas tomaram as ruas para protestar contra a queda dos padrões de vida, a crescente instabilidade e a natureza cada vez mais autoritária do governo da Irmandade Muçulmana de Mohamed Morsi. Chegou ao poder prometendo estabilidade política e a elevação dos padrões de vida. Mas, longe de resolver qualquer coisa, o Egito sob Sisi entrou em sua crise mais profunda em décadas.
Fissuras na superfície
A fachada de Sisi como um comandante militar forte e inteligente foi repetidamente destroçada, visto que fracassou irremediavelmente em lidar com os problemas mais simples. Suas violentas medidas repressivas contra os protestos para suprimir o estado de ânimo revolucionário só conseguiram amargurar ainda mais as massas. A tortura indiscriminada, as prisões e o desaparecimento de milhares de jovens sob o pretexto de combater a Irmandade Muçulmana serviram, de fato, parcialmente, para dar uma nova vida à organização islâmica.
Na Península do Sinai, algumas poucas centenas de islâmicos ligados a ISIS e com quase nenhum apoio popular espalharam o terror matando dezenas de civis e pessoal armado. O poderoso exército egípcio fracassou pateticamente em fazer qualquer coisa a respeito. De fato, o exército está matando mais civis do que os terroristas, com seus bombardeios indiscriminados. Esta tática é completamente contraproducente e só levou a mais fúria contra o exército.
Ao lado da ascensão de ISIS e dos grupos fundamentalistas islâmicos na Líbia, esta insurgência está se tornando um sério fator desestabilizador no Egito. A ilusão de que um poderoso exército poderia garantir a segurança do povo e agir como força estabilizadora foi totalmente minada e é claro que os generais estão agora preocupados com o moral dentro do próprio exército.
Dois pés esquerdos
Com respeito à política externa, Sisi não teve melhor sorte. A relação com seu antigo aliado estadunidense enfraqueceu devido às pesadas críticas de Barack Obama quando da chegada de Sisi ao poder. No entanto, a Arábia Saudita e os outros Estados do Golfo preencheram o vácuo deixado pelos EUA através do investimento de 31 bilhões de dólares como ajuda nos últimos 3 anos. Esta foi a chave da estabilização inicial do regime de Sisi. Contudo, quando chegou a hora de reembolsar os Sauditas, Sisi não pôde oferecer muito. Primeiro, ele teve que recuar apressadamente das promessas iniciais de apoio ao reino saudita durante sua guerra no Iêmen. Além de considerar os Houthis como um bom amortecedor contra Al-Qaeda e outras organizações Islâmicas Fundamentalistas, a elite dominante egípcia sabia que o conflito impossível de ganhar no Iêmen – onde o Egito já tinha perdido uma guerra custosa nos tempos modernos – só levaria a mais instabilidade. As massas egípcias não têm nenhum apetite para enviar seus filhos para combater e morrer em benefício da odiada monarquia saudita.
Logo, em abril, durante a visita do rei saudita Salman, Sisi fez o surpreendente anúncio de entregar as ilhas do Mar Vermelho, Tiran e Sanafir, à Arábia Saudita. Este humilhante ato de submissão à família Al-Saud causou grande alvoroço em todo o Egito. Pequenos protestos se multiplicaram por todo o país levando a centenas de prisões e uma guerra de palavras começou entre jornalistas e apresentadores de TV egípcios e sauditas. No final, sentindo as crescentes tensões, a classe dominante teve que recuar e um tribunal reverteu a decisão. Desnecessário dizer que o rei Salman não ficou satisfeito. A autoridade do regime sofreu um golpe por este assunto que também revelou sérias fissuras dentro da classe dominante.
Desde então, intensificou-se a crise Saudi-Egípcia. A gota final veio durante o Verão quando o Egito começou um processo de aproximação com a Rússia. Vendo o declínio relativo do papel dos EUA na região e a ascensão da Rússia, o regime de Sisi quer se utilizar do renovado conflito EUA-Rússia em sua vantagem, usando a Rússia como um meio de obter mais concessões dos EUA. Dessa forma, a marinha egípcia realizou o seu primeiro exercício naval desde sempre com a marinha russa, em setembro, seguido por outros exercícios em outubro. O regime egípcio também fez várias compras de armas à Rússia, bem como discutiu uma possível estratégia conjunta na Líbia. Tudo isto foi superado pelo voto do Egito, com a Rússia, contra as propostas Saudi-Francesas na reunião do Conselho de Segurança da ONU, em outubro, que discutiu a situação em Aleppo, Síria.
Como explicado acima, a guerra na Síria e a ascensão de ISIS e dos grupos islâmicos colocam uma ameaça concreta à estabilidade no Egito e os generais estão ansiosos por dar um fim à crise o mais cedo possível. Isto os coloca em desacordo com o regime saudita que apoia vários representantes seus na Síria, um dos quais o próprio ISIS. Para os sauditas, uma derrota na Síria coloca uma grave ameaça ao futuro do próprio reino. Os sauditas exigem plena lealdade como retorno mínimo por sua ajuda financeira, mas, para Sisi, as solicitações dos sauditas poderiam ter explosivas consequências internas. A “traição” egípcia na ONU levou a Arábia Saudita, de forma súbita e sem dar razões oficiais, a deter o suprimento vital de petróleo refinado – uma parte do pacote de ajuda no valor de 23 bilhões de dólares – ao Egito, em outubro.
Uma tormenta perfeita
A onda de choque econômica proveniente do corte repentino da ajuda saudita produzirá um efeito devastador na crise econômica egípcia. Isto, por sua vez, aprofundará de forma significativa a crise geral do regime. O declínio da economia mundial junto à instabilidade política do Egito levou sua economia a um buraco negro. Ela somente se mantinha flutuando acima da linha da superfície devido aos bilhões de dólares do Golfo despejados a cada ano.
Em 2015, os investimentos foram a metade (14,5 bilhões de dólares) de seu nível em 2008 (28 bilhões de dólares). Os investimentos externos colapsaram de 13,5 bilhões de dólares a 6,5 bilhões de dólares no mesmo período. Devido à crise, estima-se que o estado terá uma redução de fundos de 15 bilhões de dólares a cada ano nos próximos anos. Durante o período 2011-2015, o Egito registrou um déficit orçamentário anual médio de aproximadamente 12% do PIB. Em 2015, a dívida pública alcançou mais de 88% do PIB e se estima que alcançará 94% neste ano.
O governo tentou estabelecer muitos projetos espetaculares para encontrar uma saída para a crise. Uma expansão de 8,2 bilhões de dólares do Canal de Suez supostamente duplicaria a renda anual do canal a 13,2 bilhões de dólares, mas no contexto do declínio do comércio mundial isto é impossível. Depois de bloquear os relatórios de receitas do canal durante um período, os relatórios de agosto e setembro mostraram uma queda de 10% (!) nas receitas do canal. Daí a conta para a expansão será adicionada à dívida do estado perto da falência. Este fracasso não impede o governo de iniciar o projeto faraônico de construção de uma nova capital fora do Cairo, cuja primeira etapa custará mais de 45 bilhões de dólares. Tenham a certeza de que os trabalhadores e os pobres do Cairo não serão os principais beneficiários dessas novas promoções.
Declínio dos padrões de vida
A situação das massas está se deteriorando muito rápido. A inflação oficial está flutuando no nível de 15% neste ano, mas subirá mais alto depois da recente desvalorização da moeda. A taxa oficial de desemprego permanece em torno de 13%, acima dos 11% de 2011, contudo, da mesma forma que então, o número real agora é certamente mais alto. Somente para permanecer nestes níveis, a economia deve crescer 5-6% ao ano; no entanto, desde a revolução de 2011, o crescimento anual foi de apenas 2%, com a exceção do crescimento de 4% em 2015. A taxa de pobreza oficial também aumentou constantemente até 27,8% em 2015 – a taxa mais alta em 15 anos e 2,5% mais alta que em 2010/2011. Neste ano, o esperado é que a pobreza cresça a um ritmo muito mais alto.
Um novo pacote de “ajuda” do FMI – com muitas restrições – no valor de mais de 12 bilhões de dólares, somente piora as condições. O FMI está pressionando por uma liberalização em massa e pelo corte dos poucos benefícios que as massas egípcias tinham. Em agosto, os preços da eletricidade foram elevados em uns 20-40% sob um programa de cinco anos que verá os subsídios à energia sendo gradualmente eliminados. Os subsídios à gasolina são os seguintes da lista.
Uma “reforma” da administração pública também atacará as condições de seis milhões de pessoas empregadas pelo estado e outros 20 milhões que dependem do emprego no serviço público como fonte de renda. Sisi era o homem do aparato do estado, com suas forças de homens armados e um exército de burocratas, representando todos aqueles que se sentiram roubados de seu poder pela revolução e que se sentiam ameaçados pelo governo da Irmandade Muçulmana que queria tomar parte desta gigantesca rede de mecenato. É entre estas camadas que se encontra o apoio mais forte de Sisi e a pressão constante para reduzir o seu tamanho e impor austeridade deixará uma séria mancha no regime. Enquanto uma camada pressiona pela liberalização e ataca os padrões de vida, outra camada entende que estes ataques podem levar a uma severa reação. No entanto, dentro dos limites do capitalismo não há outra solução.
O regime já tentou manter a estabilidade gastando vastas reservas de moeda estrangeira para manter a libra egípcia artificialmente alta com relação ao dólar. No contexto de um declínio na economia real, os custos necessários para manter a libra se tornaram ainda maiores, levando a uma aguda crise de divisas. No final de outubro, o açúcar começou a faltar. Embora as autoridades culpassem a má gestão, é claro que a crise do açúcar estava ligada às baixas reservas em dólares. Os preços do açúcar subiram 100%. O medo de uma crise de propagação levou à subida dos preços dos produtos básicos, enquanto muitos produtos menos cruciais desapareceram completamente das prateleiras. Isso era claramente insustentável. Pressionado pelo FMI, o governo teve que deixar a moeda flutuar livremente nos mercados em 3 de novembro. Isto resultou imediatamente numa desvalorização de 50% da libra egípcia. Em poucas horas, os preços dos combustíveis subiram 50% e se espera que outros preços devam subir.
Raiva e desespero
Um sentimento de raiva e dissensão agora está presente entre as massas. Em outubro, um motorista de táxi de 30 anos de idade, chamado Ashraf Mohammed Shaheen, furioso com o governo e com a alta dos preços, incendiou-se na frente de um quartel do exército em Alexandria. A notícia se espalhou rapidamente na mídia social com hashtags (em árabe) de #Bouazizi_Egypt, referindo-se ao vendedor ambulante cujo suicídio provocou a revolução Tunisiana.
Um vídeo de um motorista de Tuk-tuk [riquixás motorizados a serviço do transporte público – NDT] se espalhou como um incêndio e se tornou tema de discussões em todo o país. No vídeo (que vale a pena assistir na íntegra abaixo), o irado motorista resume a situação de forma muito aguda:
“Como [pode] o estado, que tem um parlamento, instituições militares de segurança, ministérios do interior e de assuntos externos, e 20 [outros] ministérios, terminar assim? Você vê o Egito na televisão e é como Viena; você vai às ruas e é como a Somália. Antes da eleição presidencial, tínhamos açúcar suficiente e podíamos exportar arroz. O que aconteceu? O escalão do topo gasta 25 milhões de libras para celebrar, enquanto os pobres não podem encontrar um kg de arroz (...) O governo fica dizendo que o Egito está testemunhando um renascimento, e coleta dinheiro para projetos nacionais sem valor, enquanto nossa educação está se deteriorando como nunca antes”.
Quando o jornalista lhe pergunta onde ele se graduou, ele responde: “Sou um graduado de um Tuk-tuk”.
Ele prossegue:
“Como é que esses grandes projetos são construídos enquanto temos seres humanos famintos e sem instrução cuja saúde está se deteriorando. Há três formas de um país se desenvolver, e elas são educação, saúde e agricultura. É este o Egito que emprestou dinheiro à Grã-Bretanha no passado, que foi o segundo país do mundo a construir estradas de ferro e cujas reservas de dinheiro eram as maiores do mundo? Como pudemos terminar assim? O Chade, o Sudão e a Arábia Saudita eram parte do Egito e agora um bando de países do Golfo zombam de nós? Esses traficantes enganaram as pessoas sob slogans de patriotismo, liberdade e justiça social. Suas promessas estão o mais longe possível da democracia e da justiça. Basta, já é o suficiente”.
O vídeo foi rapidamente removido das páginas web de Al Hayat e a mídia inclusive começou a restringir os vídeos da entrevista em Youtube, carregados de forma independente. Nos meios de comunicação de massa se produziu uma avalanche de acusações contra o condutor de Tuk-tuk, ligando-o à Irmandade Muçulmana. Mas isto somente enraiveceu as pessoas ainda mais, com milhares de pessoas vindo em defesa do homem. Uma mulher subiu um forte e desafiante vídeo dizendo: Oh, presidente da República Árabe do Egito, você está com tanto medo de nós? (...) porque o cara veio e disse: “Quero comer e quero beber?!”
Outro pobre homem do Alto Egito rural postou um vídeo dizendo:
“Este presidente é um empregado como qualquer outro... estamos cansados... perdemos o alento... queres sair pacificamente, se não, vamos forçá-lo. (...) Iremos no 11/11 prontos para morrer (...) Nossa revolução exigiu justiça, liberdade e pão e não tivemos nada disso”.
Depois de anos de quase ininterruptas mobilizações e lutas, o movimento revolucionário avançou e recuou nos últimos dois anos. Cansado com a falta de mudanças e desorientado pela ascensão do regime de Sisi, um certo cansaço se introduziu. No entanto, as pressões sobre os padrões de vida estão empurrando as massas de volta à arena da luta mais uma vez. Na cidade de Port Said, milhares de pessoas tomaram as ruas (ver vídeo abaixo) em 18 de outubro para protestar contra o aumento dos aluguéis gritando slogans como “abrigue-nos ou mate-nos” e “queremos os nossos direitos”.
A classe dominante tem medo
Um informante dentro da agência de inteligência falou a Middle East Eve sobre a séria preocupação no seio da classe dominante relativa ao desenvolvimento de uma situação explosiva. O sírio web escreve:
“Uma pessoa de alto escalão dentro de al-Mukhabarat al-Amma (Diretoria Geral de Inteligência), o principal serviço de segurança do país, falou a Middle East Eve que os relatórios enviados à Presidência no fim do mês passado destacavam uma forte redução tanto da popularidade da liderança quanto do apoio público ao estado.
(...)
“Teme-se um levantamento em lugares onde não há consciência dos esforços econômicos que o país está fazendo e onde os serviços básicos são zero’, disse ele. Acrescentou que a dissidência, na forma de pequenas reuniões irritadas, também poderia surgir subitamente se os serviços prometidos pelo governo cessarem abruptamente.
“Veja, por exemplo, o que aconteceu em Port Said no mês passado ou nas sucursais de distribuição de fórmulas para bebês [em agosto]’, disse ele.
“Em outubro, milhares de moradores de Port Said tomaram as ruas, condenando a súbita elevação dos custos de moradia. No mês anterior, dezenas de famílias se reuniram em frente às empresas farmacêuticas de propriedade do Estado para protestar contra a escassez da fórmula subsidiada para bebês. O funcionário sugeriu que estes manifestantes não foram impulsionados por motivos políticos, mas pelo final súbito dos benefícios que desfrutavam”.
Como costuma acontecer, a burguesia, devido a sua visão geral da sociedade, chega a conclusões similares às dos Marxistas – embora de um ângulo de classe diferente. Uma situação explosiva está se desenvolvendo entre as massas que pode irromper em uma nova etapa de luta aberta contra o regime. Sisi chegou ao poder posando como defensor da revolução. Ele prometeu resolver a crise econômica, trazer estabilidade e representar as massas. Mas, a cada passo, fracassou miseravelmente. Longe disso, agora está liderando o mais violento ataque contra os padrões de vida na história moderna do Egito. Na raiz de seus problemas está a crise do capitalismo que é, por sua vez, exacerbada pela natureza parasitária da classe dominante egípcia. Com o declínio da economia, qualquer tentativa de manter os padrões de vida à tona levará a uma dívida mais alta e a uma reação maior no futuro. O pacote do FMI promove uma cura pela “abstinência” para se desfazer da dívida mediante a redução drástica dos subsídios e do emprego público. Mas isto somente afetará a demanda, arrastando assim o mercado para baixo e afastando qualquer final do círculo vicioso da dívida para longe.
A classe dominante não está cega às consequências disso. O sentimento de raiva e desespero da população alarmou seriamente as autoridades. O regime de Sisi é um regime contrarrevolucionário, no entanto, devido a sua debilidade só pôde chegar ao poder fingindo representar as massas revolucionárias. O cansaço e a relativa desmoralização entre as massas deram a Sisi um pouco mais de margem para manobrar. No entanto, ele nunca foi capaz de infligir uma derrota decisiva sobre as massas revolucionárias. Na verdade, a primeira administração governamental de Sisi, liderada por Hazem Al-Beblawi, colapsou sob a pressão de uma onda de greves envolvendo centenas de milhares de trabalhadores. A camarilha dominante está muito empenhada em esmagar quaisquer movimentos de massa que perturbem o equilíbrio político e econômico. No entanto, eles não foram suficientemente fortes para dar este passo decisivo. De fato, a própria base do regime vacilou.
O Egito capitalista está em crise profunda. A classe dominante está cambaleando de um desastre a outro. Perdeu muita autoridade, mesmo entre seus próprios e tradicionais seguidores. Empurradas pelos ataques aos seus padrões de vida, as massas estão sendo forçadas a tomar o caminho da luta novamente. No entanto, permanece o principal problema da ausência de uma liderança revolucionária que galvanize o movimento e o dirija a sua conclusão lógica: a derrubada do sistema capitalista.