Jorge Martin narra como a prisão de dois funcionários catalães reacendeu o movimento de massas pela independência. O chicote da opressão do estado espanhol levou as massas de volta à ação, o clima está incendiário e restou pouco espaço para o presidente Puidgemont manobrar.
Era pouco mais de 9h20 no horário local quando a notícia foi anunciada. O líder da Assembleia Nacional Catalã (ANC), Jordi Sánchez, e o líder da Òmnium Cultural (uma instituição de promoção da cultura catalã), Jordi Cuixart, foram presos sem direito a fiança por ordem da corte nacional. O que se seguiu foi uma explosão de fúria popular. As pessoas compartilhavam a notícia nos grupos de WhatsApp. Mensagens gravadas anteriormente pelos presos foram divulgadas e viralizaram. O povo começou a sair nas ruas e nas varandas batendo panelas por toda a Catalunha. A ele se juntaram bombeiros soando suas sirenes.
Essa é uma demonstração visível do que significa o regime de 1978. Os dois presos, juntamente com o major da polícia catalã, Trapero (que recebeu saída condicional, mas teve seu passaporte retido), estão sendo investigados pela justiça nacional de Madri: um tribunal que é a continuação direta do odiado Tribunal de Ordem Pública franquista, e que investiga crimes contra o estado.
Jordi Sánchez e Jordi Cuixart são acusados de “sedição” e conspiração: um crime tirado sem qualquer emenda do código penal franquista. Ele é descrito como uma “multidão desordeira” impedindo a ação de agentes da lei e que pode ter sentenças de até 12 anos de prisão.
Os juízes que estão investigando esse caso são os mesmos que decretaram a prisão de diversos jovens da cidade basca de Alsasua pelo que, na prática, não foi nada mais que uma briga de bar. A corte declarou que se tratava de um crime de terrorismo, mesmo que o grupo separatista ETA tenha abandonado a luta armada e entregado suas armas. Dois dos jovens de Alsasua já passaram um ano inteiro na prisão. Os promotores estão pedindo uma setença de 50 anos de prisão.
Para piorar, Arsenio Escolar, um respeitado jornalista, diz ter ouvido por alto uma conversa a respeito da detenção dos dois Jordis durante a recepção do rei no Dia Nacional da Espanha em 12 de outubro. Isso significa que a decisão é amplamente política e revela a mentira da “separação de poderes” na democracia burguesa.
Quais sãos os fatos que motivam esse processo? Em 20 de setembro, a Guarda Civil, agindo sob ordens do promotor e do juiz do estado, prendeu vários altos-oficiais do governo catalão em suas casas ou a caminho do trabalho numa operação que aconteceu cedo pela manhã. Isso foi parte das tentativas do governo espanhol de quebrar a logística do referendo de 1 de outubro. A Guarda Civil também entrou em diversos prédios do governo catalão para apreender computadores e documentos.
Imediatamente houve chamados para manifestações, as quais se concentraram ao redor dos prédios do governo catalão em Via Laietana e principalmente no Departamento de Economia (Conselleria d’Economia) em Passeig de Gràcia. No decorrer do dia, a multidão na Conselleria subiu para 40 mil ao fim da tarde, à medida que as pessoas deixavam seus empregos e se juntava ao protesto. Uma grande faixa dizia: “Bem-vindo à República Catalã”.
As pessoas estavam determinadas a resistir às ações da Guarda Civil e defender as instituições catalãs. Houve um chamado da ANC, mas a manifestação claramente era em sua maioria espontânea e os voluntários da ANC tiveram que lutar para manter o controle dela. Alguns poucos guardas civis e oficiais de justiça estavam dentro do prédio e a “multidão desordeira” não pretendia deixá-los sair.
As horas passaram e a multidão combateu as tentativas da tropa de choque da polícia catalã de abrir um corredor para deixar saírem as pessoas de dentro do prédio. Por volta da meia-noite, voluntários da ANC tentaram abrir um corredor e os líderes da ANC pediram aos presentes para que fossem para casa. A multidão respondeu gritando: “Vocês vão, nós ficamos”. E também para os guardas civis: “Essa noite vocês saem sem seus carros”. A multidão havia coberto os carros da Guarda Civil de adesivos e ficou em cima deles para ver melhor o que estava acontecendo. Os pneus foram furados.
Toda a cena foi uma humilhação para a Guarda Civil, que só conseguiu sair nas primeiras horas do dia seguinte, quando a multidão em sua maioria foi embora cerca de 22 horas depois de entrarem no prédio. Os ânimos estavam elétricos, insurrecionais, e as massas experimentaram um pouco de seu poder. Lições foram aprendidas e mais tarde colocadas em prática na preparação do referendo de 1 de outubro, quando milhares de pessoas ocuparam escolas de ensino fundamental e médio durante o fim de semana e centenas de milhares se juntaram a elas desde 5h da manhã do dia da votação para defender os locais de votação contra a repressão policial brutal. Lendo o processo por “sedição” da promotoria do estado, é possível sentir a impotência que sentiram os “agentes da lei” durante aquelas longas horas em que as ruas foram tomadas e os manifestantes decidiram não deixá-los sair. Um oficial de justiça teve que deixar o prédio pelo telhado. Os veículos da Guarda Civil precisaram ser guinchados no dia seguinte.
O estado espanhol jamais poderia permitir que tais acontecimentos passassem impunes. A restauração da legalidade espanhola também significa punir aqueles que se atreveram a impedir a ordem burguesa de ser aplicada. Nesse caso eles optam por punir os que acreditam ser os chefões a fim de assustar os demais.
Os dois presos lideram as duas organizações que chamaram e organizaram as maiores manifestações que a Catalunha viu nos últimos anos, juntando entre 1 milhão e 2 milhões de pessoas cada no Dia Nacional catalão em 11 de setembro. Processá-los não é um engano ou irresponsabilidade. Isso foi feito por uma razão: mostrar à multidão desordeira (multitud tumultuaria) quem é que manda.
No entanto, o tiro vai sair pela culatra espetacularmente. Isso já aconteceu.
Os ânimos na Catalunha são de raiva, mais que isso, de ódio pelo regime de 1978 e tudo o que ele representa. Nos últimos dias, divisões e rompimentos apareceram no campo independentista a entre os defensores da autodeterminação. Dúvidas, hesitações. Agora todos estão unidos novamente na condenação. Mesmo aqueles que insistiram que o caminho a se trilhar é o da negociação (como os partidários da prefeita de Barcelona, Ada Colau) agora estão indignados com as ações da corte nacional.
Prender alguém sem direito a fiança por convocar uma manifestação pacífica em um país onde políticos e empresários proeminentes envolvidos em escândalos de corrupção permanecem livres e o cunhado do rei, indiciado por corrupção, é logo solto sem precisar pagar fiança faz aumentar o senso de injustiça.
Se, como é esperado, o estado espanhol aplicar o Artigo 155 na quinta-feira ou na sexta-feira após o fim do prazo, irá colocar ainda mais lenha na fogueira.
As batidas de panelas desta noite (uma forma de protesto que tem se repetido sem parar desde os acontecimentos de 20 de setembro) foram especialmente altas e prolongadas, em alguns casos durante até 45 minutos. As pessoas não estavam apenas ficando em casa e fazendo barulho em suas varandas, mas também saíam e se juntavam aos seus vizinhos nas ruas.
Em Girona, milhares marcharam até o posto de polícia local liderados pela prefeita.
Em Barcelona umas poucas centenas se juntaram na Praça de São Jaume e gritaram palavras de ordem pedindo uma greve geral. Em outros lugares, pequenos grupos de pessoas se juntaram nas praças das cidades ou fecharam vias locais. Isso é apenas um pequeno aperitivo do que acontecerá amanhã.
Protestos já foram convocados para 17 de outubro. Há um chamado ao meio-dia para paralizações e protestos nos locais de trabalho. Às 19h, manifestações a luz de velas (originalmente convocadas pela ANC como uma série de protestos silenciosos) acontecerão do lado de fora das delegações do Estado espanhol em cada uma das quatro províncias catalãs. Organizações de estudantes também chamaram greves e protestos em cada um dos campi universitários ao meio-dia.
O palco está montado para uma nova guinada do movimento de massas, a qual certamente ultrapassará os limites das instituições oficiais e mesmo de organizações como a ANC (como aconteceu em 1 de outubro).
Os comitês de defesa do referendo, que tiveram seu primeiro encontro nacional no sábado, já desempenham um papel mais proativo na mobilização. Em muitas cidades e bairros eles convocaram assembleias populares para antes das manifestações de 19h. Há falas sobre preparar uma greve geral a partir da quarta-feira. A relativa calma do movimento de massas, o qual se retirou das ruas após a paralisação nacional de 3 de outubro, permitiu ao governo catalão retroceder e lentamente trilhar o caminho sem volta da negociação e dos acordos. O chicote da repressão do estado espanhol agora trouxe às massas de volta à cena, diminuindo grandemente qualquer espaço para manobras por parte de Puigdemont.
Em 16 de outubro, milhares foram às ruas na Galícia e houve manifestações de solidariedade em vários lugares, Barcelona, Madri e outros. Eles protestavam contra os responsáveis por ação ou omissão pela terrível onda de incêndios florestais que afetaram a Galícia e regiões vizinhas. Eles exigem a renúncia do presidente da Galícia, Feijó, do Partido Popular (PP). Um novo front se abre para o fraco e instável governo de Rajoy.
As palavras de ordem do momento são:
- “Liberdade para os jordis #JordisLibertat!”
- “Abaixo a repressão!”
- “Todos nas ruas: assembleias populares, manifestações e paralisações no trabalho!”
- “Fortalecer e expandir os comitês de defesa do referendo: conectá-los nacionalmente para dar ao movimento uma estrutura democrática e uma liderança eleita!”
- “Preparar uma greve geral para proclamar a República Catalã!”
- “Somente o povo salva o povo, confiar em ninguém além de nós mesmos!”
- “Fazer um apelo por solidariedade à classe trabalhadora do restante da Espanha: derrubar o odiado governo Rajoy!”