A Revolução Libanesa ressurgiu após um período de relativa inatividade, com manifestantes declarando uma “semana de ira” em meio a uma contínua crise econômica e política. A libra libanesa e os controles de capital sobre o dinheiro estrangeiro provocaram uma nova onda de indignação que aguçou a posição tanto dos manifestantes quanto do Estado. Os últimos dois dias viram centenas de feridos e presos.
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Nos três meses anteriores a esses últimos eventos, os protestos no Líbano foram pacíficos. As manifestações de dois milhões de pessoas nas ruas no auge do movimento quase tinham uma atmosfera de carnaval. No entanto, nada mudou para as massas. De fato, além de um suprimento de dinheiro estagnado, suas condições de vida pioraram, com escassez contínua de água e crescentes apagões de eletricidade.
Isso levou a uma mudança qualitativa dentro do movimento. Os manifestantes frustrados intensificaram seus métodos. Em particular, os manifestantes têm como alvo bancos e casas de câmbio. “Não há outra maneira. Já passaram quase cem dias”, disse uma manifestante à TV Al Jazeera. “Ninguém está ouvindo … somos governados por criminosos”.
Ataques a bancos e violência estatal
Nas terça e quarta-feira passadas, os manifestantes desceram à sede do banco central do Líbano (BDL) no prestigiado bairro de Hamra, na capital Beirute, jogando pedras e coquetéis molotov na fachada do prédio. Por toda a cidade, manifestantes furiosos quebraram as janelas de bancos comerciais e vandalizaram caixas eletrônicos com tijolos e extintores de incêndio.
No sábado e no domingo, os manifestantes atacaram o edifício principal da Associação Bancária do Líbano (que representa os patrões do setor financeiro), quebrando suas janelas, destroçando seu exterior com barras de ferro e incendiando as instalações externas. A indignação contínua com a corrupção política também era evidente. Vários indivíduos tentaram atravessar as barreiras de concreto que cercavam o prédio do parlamento, enquanto centenas de manifestantes gritavam “Revolução!”
Não foi por acaso que essas instituições sentiram o peso da fúria das massas. Desde setembro de 2019, os bancos estabeleceram limites cada vez mais estritos à retirada e transferência de dólares dos EUA, para manter as reservas. Anos de financiamento do déficit causaram uma desvalorização maciça da libra libanesa (que agora caiu para 0,00066 USD) e deram origem a um crescente mercado negro, onde o dólar atingiu uma taxa de 2.470 libras libanesas (LBP). Os manifestantes (corretamente) sentem que estão sendo obrigados a pagar por essa crise de liquidez, enquanto políticos corruptos, burocratas estatais e chefes de bancos contrabandearam bilhões de dólares americanos para contas bancárias suíças. Isso se refletiu no principal slogan das manifestações no sábado: “Não pagaremos o preço!”
Nas condições dadas, são as camadas mais pobres da sociedade que lideram atos de vandalismo contra os bancos. São pessoas que sentem a extrema pressão com a queda da libra libanesa e com os controles de capital, que estão pressionando severamente sua capacidade de pagar por suas necessidades básicas. A entrada dessas camadas no movimento ajudou a radicalizar o movimento, tirando-o de sua fase inicial e ingênua e levando-o a um período de luta mais aguda e séria.
As ações dos chefes do setor financeiro diante dessas crescentes tensões contribuíram para esse aguçamento do movimento. “À medida que os controles informais de capital se intensificaram, as pessoas ficaram mais irritadas”, explicou Hussein El Achi, advogado libanês da Ordem dos Advogados de Beirute. “Os bancos começaram a usar a segurança privada e as Forças de Segurança Interna contra clientes que se recusavam a deixar o local [depois de tentar sacar dinheiro das contas deles]. Em numerosas ocasiões, os clientes foram atacados e agredidos dentro dos bancos. Alguns deles foram trancados em pequenos escritórios e tiveram confiscados seus telefones, o que é ilegal, é claro”.
O setor financeiro parasitário é um componente essencial do capitalismo libanês e as massas estão cientes de seu relacionamento amigável com a odiada elite política. “Os bancos aqui estão muito entrelaçados com a classe política”, diz El Achi. “Os políticos são acionistas desses bancos, direta ou indiretamente por meio de terceiros, ou ocupam cadeiras nos conselhos bancários [recebendo] remuneração muito alta. Os bancos no Líbano são os maiores credores do Estado. Todas essas transações suspeitas e os projetos corruptos que você vê … todos são financiados por esses bancos. Todo mundo vê que os bancos são cúmplices da corrupção estatal”.
À luz dessas ações em relação aos bancos, a relativa moderação exercida pelas forças de segurança nos primeiros meses das manifestações (com algumas exceções) foi agora abandonada. As forças militares e de segurança do Líbano emitiram um aviso antes das manifestações do fim de semana de que ataques a propriedades privadas ou estatais seriam enfrentados com força. No final, mais de 300 pessoas ficaram feridas e 100 foram presas em Beirute quando a polícia de choque atacou as multidões com gás lacrimogêneo, canhões de água e balas de borracha, com as massas respondendo com pedras, fogos de artifício, galhos de árvores e barras de ferro em batalhas que duraram horas.
Entre os feridos estavam dois jornalistas, incluindo um operador de câmera da emissora local Al Jadeed e um repórter da MTV, que foi hospitalizado. O policial teria dito ao policial: “Se você não parar de filmar, eu vou quebrar a câmera na sua cabeça e enfiar esse bastão na sua bunda”. A polícia também incendiou as tendas montadas na capital pelos manifestantes no curso do movimento.
Há relatos de policiais disparando bombas de gás lacrimogêneo indiscriminadamente em áreas residenciais, com algumas atingindo as varandas das pessoas. Há também alegações de que a polícia disparou os cartuchos diretamente contra os manifestantes, e não para o ar, o que pode ser letal. A Human Rights Watch analisou imagens que confirmaram que duas manifestantes foram atacadas por gangues de policiais. Uma das mulheres foi chutada na cabeça e espancada, enquanto a outra foi ferida no pescoço e teve um corte na cabeça que exigiu uma sutura de cinco pontos.
Outras imagens mostram a polícia de choque prendendo violentamente manifestantes e arrastando-os para as delegacias de polícia. Uma fonte do Comitê de Advogados de Defesa dos Manifestantes disse à Human Rights Watch que 55 pessoas foram presas na noite de sábado. Todos os detidos libaneses foram libertados no dia seguinte. Os estrangeiros foram transferidos para a General Security, a agência que trata da entrada e saída de estrangeiros. Em resposta a essa repressão brutal – bem como à aparente estratégia do governo de “esperar” – na esperança de que as pessoas se cansem e a revolução arrefeça – os manifestantes gritavam: “Não temos medo, não estamos assustados”.
Após esses eventos, o regime condenou a “violência” exibida nessa nova onda de protestos. Mas devemos ser claros: a culpa da violência está completamente do lado de um governo arrogante, corrupto e insensível, que enviou seus corpos armados para espancar e aterrorizar o povo, depois de negar a ele suas necessidades mais básicas. Entre o uso da força contra janelas de bancos e caixas eletrônicos e seu uso em seres humanos, não deve haver equívocos.
O papel do Estado fica claro através dessas ações. Não é um árbitro e protetor imparcial do povo, mas um defensor da propriedade privada no interesse da classe dominante. Quando a propriedade da classe dominante não estava sendo atacada, a polícia conseguiu permanecer relativamente calma. Mas agora que o movimento está radicalizando e mirando os bancos, as forças do estado estão traçando uma linha. Isso também deveria ser um aviso para aqueles que pedem um novo governo, de qualquer tipo, mantendo o aparato estatal atual, como uma solução para os problemas enfrentados pelas massas.
“São todos farinha do mesmo saco”
A revolução começou em meados de outubro, pedindo “a queda do regime”. O slogan mais popular tornou-se: “todos eles [políticos] são farinha do mesmo saco”, significando o colapso completo da confiança em todo o establishment.
Após a renúncia do primeiro-ministro Saad Hariri, seu cargo foi preenchido por Hassan Diab, vice-presidente da Universidade Americana. Diab demagogicamente saiu em apoio ao movimento em seus primeiros dias. Embora ele não seja um político muito conhecido, é membro da elite política (ele atuou como Ministro da Educação de 2011 a 2013) e está intimamente ligado às alas pró-Síria e pró-Hezbollah da classe dominante. Por esse motivo, ele foi rejeitado pelo movimento, que exige um governo não-sectário e “tecnocrático”: isto é, um governo de “especialistas” imparciais, sem conexão com a odiada elite política ou a qualquer uma das várias facções étnicas e religiosas do Líbano.
Mas este episódio também destaca exatamente a fraqueza do movimento e suas demandas. Diab é um tecnocrata por excelência. No entanto, como todos os tecnocratas, ele está conectado à classe dominante por mil fios. Na verdade, não existe um tecnocrata imparcial e apolítico: todos esses personagens se beneficiam e têm interesse em manter o status quo capitalista.
O problema no Líbano não é que haja pessoas particularmente más no comando, que precisam apenas ser substituídas por figuras “não políticas”. O problema é o sistema capitalista e a classe capitalista, que são incapazes de resolver os problemas que o povo enfrenta. Qualquer governo de “especialistas independentes” ou tecnocratas estará inevitavelmente ligado a uma ala ou outra ala da classe dominante e executará os mesmos tipos de políticas que o regime atual.
Na verdade, não há necessidade de promover “especialistas” benevolentes para governar o país. O único caminho a seguir é que as massas tomem o poder em suas próprias mãos. Como diz o slogan: todos eles são farinha do mesmo saco – ou seja, todo o edifício do sistema podre construído pelos sectários, senhores da guerra e charlatães, que estão explorando o povo libanês há décadas. Somente a classe trabalhadora tem interesse em satisfazer as necessidades prementes das massas.
Até agora, Diab não conseguiu montar um gabinete devido a disputas internas entre as facções políticas do Líbano. Em Beirute, os manifestantes gritaram: “Eles estão paralisando o processo de formação do gabinete [esperando que] fiquemos cansados; formaremos o gabinete nós mesmos e não sairemos das ruas”. A segunda parte deste cântico (ao adotar uma atitude de “nós mesmos o faremos”) mostra o instinto correto da necessidade de uma sociedade dirigida pela classe trabalhadora para a classe trabalhadora.
Como dissemos antes, o que é necessário é quebrar o isolamento do movimento e atrair a classe trabalhadora para a luta. Quebrar as janelas dos bancos pode enviar uma mensagem ao establishment político, mas não é uma tática para a vitória: a massa de trabalhadores não pode ser conquistada por esses métodos.
Em vez disso, o movimento deve desenvolver um programa com claras demandas sociais e econômicas, enfocando a pobreza e a miséria sofridas pela maioria dos trabalhadores. O setor bancário deve ser assumido e sua oferta de dinheiro colocada sob controle democrático, para aliviar os problemas diários que afetam os cidadãos libaneses comuns. Além disso, ao abrir os livros dos bancos, a revolução poderia expor toda a extensão da corrupção e do conluio entre o setor bancário e a elite política, e levar os culpados à justiça.
Os setores de energia e água, criminosamente mal administrados, também devem ser tomados, e elaborado um plano industrial geral para modernizar essas empresas em todo o país. Atualmente, o Líbano é quase inteiramente abastecido por uma série de geradores de energia de propriedade de uma máfia de grandes capitalistas privados que deliberadamente impedem qualquer investimento ou desenvolvimento sério. Esses piratas devem ser expropriados e todas as utilidades essenciais nacionalizadas e operadas em bases democráticas.
Essas demandas econômicas devem estar conectadas com a principal demanda para que os trabalhadores assumam o poder político em suas próprias mãos. Deve haver apelos à criação de órgãos democráticos para a coordenação do movimento nos locais de trabalho e bairros de todo o país, como base para a instalação de um poder alternativo nascido da luta do povo.
Uma situação revolucionária não dura para sempre. Em algum momento, deve avançar em direção à vitória ou enfrentar a derrota. Neste momento, a Revolução Libanesa está na crista de uma onda de raiva, e o impulso aumentou mais uma vez. Mas, sem tomar medidas para se organizar de acordo com linhas de classe e empregar métodos de luta da classe trabalhadora, existe o perigo de desmoralização e exaustão, fortalecendo elementos sectários divisores e as forças contrarrevolucionárias da repressão estatal.
Somente uma liderança revolucionária organizada pode apresentar as demandas necessárias, coordenar a ação das massas e liderar a saída desse caos. Com uma escalada de táticas para formar comitês revolucionários de trabalhadores, estudantes e soldados, a Revolução Libanesa pode avançar sua vingança.