A Covid-19 precipitou e agravou as condições de uma crise social e econômica que já estava em curso. A burguesia está confusa e dividida diante de um problema que ela não pode suportar mas também não consegue resolver.
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A situação é muito diferente de uma guerra contra um inimigo externo, que exige a lucrativa produção em larga escala de armas e suprimentos. O estado burguês é incapaz de organizar o esforço coletivo necessário para derrotar um “inimigo invisível”, que exige uma quarentena rigorosa e a consequente redução geral do consumo e da produção de bens e serviços “não essenciais”. Essa redução da circulação de mercadorias asfixia a reprodução do capital e, sem um prazo visível para o retorno ao “normal”, a burguesia responde com o desemprego em massa, e pressiona contra as medidas de contenção da pandemia.
Mesmo nos países avançados, a enorme concentração de renda torna-se mais evidente, e poucas semanas depois de decretada a quarentena, milhões de trabalhadores estavam sem dinheiro para as suas despesas habituais, inclusive com alimentos. A parte do leão dos trilhões de dólares que os governos distribuíram para os “salvamentos” (bailouts) vai para o grande capital, mas, com a crise crônica de superprodução de capital e no contexto de uma pandemia, esse dinheiro não gera investimentos. E, hipocritamente, a burguesia quer a “flexibilização” da já limitada quarentena capitalista, argumentando que “a economia também é vida”.
A quarentena é uma condição não apenas para reduzir o contágio, mas também para realizar as ações que tornam possível eliminar o vírus, em vez de aguardar passivamente a chamada “imunidade de rebanho”, ao custo de milhões de mortes desnecessárias. Existem recursos materiais, ciência e tecnologia suficientes para vencer essa pandemia, mesmo que uma vacina não seja descoberta. É possível verificar isso, como veremos mais adiante, analisando o que já aconteceu até este momento, nos primeiros meses da pandemia.
Globalmente, mesmo nos Estados Unidos, na Europa, e também no Leste da Ásia, a Covid-19 está apenas começando. Em qualquer país ou região, se o vírus não é eliminado, a pandemia persiste, com ou sem oscilações determinadas por quarentenas de eficácia parcial, até que a infecção e a consequente imunidade natural (ou “imunidade de rebanho”) alcance ao menos 70% a 90% da população. É a taxa de transmissão, mas não a letalidade, que diminui na medida em que a proporção de infectados aproxima-se desse patamar.
Nos Estados Unidos, onde a doença já causou 85 mil mortes, na mais otimista das estimativas apenas 7% da população já foi infectada. Lá, a imunidade de rebanho pode custar mais de 800 mil vidas. A porcentagem da população que já tem imunidade natural na Itália deve estar por volta de 10%, no Brasil abaixo de 3% (isso, levando em conta a enorme subnotificação de óbitos), na China não chegou a 0,5% (na província de Hubei pode ter chegado a 2%). No mundo, não passa de 1,5%.
Portanto, inclusive naqueles países em que se afirma que o “pico” da doença já ficou para trás, a pandemia é um problema que está muito longe de ser “naturalmente” resolvido. A pandemia evolui em ondas sucessivas e, como estamos vendo na Europa, pode ser mais difícil sair do “lockdown”, sem desencadear uma nova onda, do que entrar nele.
As estimativas preliminares, que estão baseadas nos dados oficiais nacionais, e também em estudos realizados em algumas cidades – ambos da China, Europa e Estados Unidos – calculam uma letalidade real que, na média, fica próxima de 0,7% no contexto social dessas estimativas. A letalidade é muito influenciada pela proporção de idosos na população, que em geral é menor nos países mais atrasados, mas a maior proporção de trabalho informal, de habitação precária, de doenças infecciosas crônicas (AIDS, tuberculose etc.), e a maior fragilidade do sistema de saúde, tendem a aumentar a letalidade nesses países.
A pandemia já entrou num estágio mais acelerado também em países como o Brasil, México e Peru. A política “negacionista” do governo Bolsonaro é tão somente uma manifestação radical da debilidade da burguesia nacional nos países atrasados, onde a precariedade das condições de vida acentua ainda mais o caráter anárquico de qualquer quarentena capitalista. Logo após a decretação do “lockdown” na Índia, cerca de 120 milhões de trabalhadores informais abandonaram as cidades, voltando para as aldeias de origem, simplesmente porque não tinham uma casa onde ficassem “isolados”.
Até esse momento, um fato notável é a concentração de 80% de todas as mortes na Europa e Estados Unidos, em contraste com os países do Leste da Ásia, onde essa proporção é inferior a 3% e a população é muito maior. A principal razão foi o início mais precoce e também a maior intensidade das medidas de contenção no Leste da Ásia. Em parte, isso é fruto de uma experiência dura, a pandemia pelo coronavírus da SARS em 2003, que teve sérias consequências econômicas e atingiu principalmente a China (87% dos casos), mas também Taiwan, Vietnam, Singapura e em menor grau outros países.
As alegações de Trump, de que o “mundo” só foi avisado tarde demais, são totalmente falsas. O primeiro anúncio público de um surto de pneumonia, de causa ainda desconhecida, foi feito em 31 de dezembro por um hospital de Wuhan (capital da província chinesa de Hubei, onde surgiram os primeiros casos). O novo coronavírus só foi identificado em laboratório em 7 de janeiro, na China, onde a primeira morte confirmada com um teste positivo ocorreu em 11 de janeiro. Em 5 de janeiro todos os viajantes procedentes de Hubei já estavam sendo monitorizados nos portos e aeroportos de Taiwan, e logo depois em outros países da região, inclusive o Japão.
Em 23 de janeiro, quando na China havia apenas 571 casos reportados e 17 mortes, um “lockdown”, considerado sem precedentes na história, foi implantado em Hubei (57 milhões de habitantes), interrompendo quase todos os transportes públicos e a maior parte da produção industrial. Em Wuhan, cerca de 50 mil pessoas trabalharam na realização de testes diagnósticos para detectar o máximo possível de portadores assintomáticos, e para garantir que eles ficassem isolados. Na China como um todo, a mobilização de recursos para controlar a pandemia foi e continua sendo muito mais ampla do que em qualquer outro país.
A evolução da pandemia não é uma fatalidade biológica, e a única razão para que ela prossiga, num curso desastroso para a humanidade, é a incapacidade da classe dominante para organizar uma quarentena eficaz sem desemprego e miséria em massa. A quarentena capitalista, ainda quando o Estado burguês é obrigado a decretá-la para evitar o caos social, é constantemente sabotada pela própria burguesia. Precisamente para expor claramente essa questão crucial, é necessário compreender a diferença específica da quarentena capitalista chinesa.
A grande dificuldade para o controle e eliminação do novo coronavírus, não é a sua agressividade biológica, e sim a sua transmissão por pessoas assintomáticas que, no entanto, podem ser detectadas pelo uso massivo e inteligente dos testes diagnósticos (a maior agressividade do vírus, e a quase inexistência de assintomáticos, facilitou muito o controle da SARS em 2003). A combinação do uso dos testes com outros métodos, especialmente uma campanha educativa com informações claras e simples, a fiscalização do isolamento dos casos que testaram positivo, o uso generalizado de máscaras, pode aumentar a eficiência relativa da quarentena.
A combinação destes métodos com uma quantidade relativamente pequena de testes é o que caracteriza, como um primeiro exemplo, as ocorrências em Taiwan (440 casos, 7 mortes), e no Vietnam (314 casos, nenhuma morte), países que conseguiram detectar os primeiros casos importados, e seus contatos, e bloquear a propagação antes que ela iniciasse uma subida exponencial. Como um segundo exemplo, na Alemanha e Portugal, a combinação do uso massivo dos testes com esses métodos, explica a eficiência relativamente maior da quarentena nesses países. A Coreia do Sul, e em menor grau o Japão, são ocorrências intermediárias entre esses dois exemplos.
Em uma escala muito maior, a China realizou e em larga medida ainda mantém uma combinação destes dois exemplos, o segundo em Hubei e o primeiro em todas as outras províncias, até agora com um resultado sem equivalente. A diferença específica que torna isso possível, num país capitalista, é que a burguesia nacional chinesa é tutelada – não apenas no sentido de ser protegida, mas também no sentido de estar subordinada – pela burocracia do aparato estatal. Esse regime político bonapartista, altamente centralizado, mantendo um estrito controle repressivo sobre a classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, capaz de impor à burguesia nacional uma disciplina relativamente rígida, tem raízes históricas peculiares.
A revolução de 1949 eliminou a propriedade privada da terra e das fábricas, instaurou uma economia planejada, de alcance limitado pelo seu próprio caráter burocrático e pela debilidade da sua indústria, que ainda assim produziu conquistas sociais gigantescas. O retorno ao capitalismo ocorreu sob comando da burocracia estatal, que viu nesse caminho um modo mais seguro para manter as suas prerrogativas nacionais e os seus privilégios.
O governo chinês anunciou há poucos dias que está preparando as condições para testar toda a população, várias vezes se for necessário, com a intenção de suspender totalmente a quarentena somente depois de eliminar o vírus dentro das suas fronteiras. Não será fácil, mas é claramente possível, desde que um controle sanitário muito rigoroso mantenha o vírus fora das suas fronteiras, até que a “imunidade de rebanho”, com milhões de mortes desnecessárias, acabe com a pandemia no resto do planeta. Quanto tempo seria necessário para tanto, ninguém sabe, mas isso indica que o vírus pode ser eliminado.
E poderia ser eliminado em todos os países se as relações internacionais não fossem condicionadas pelo antagonismo e a subordinação entre eles, inevitáveis enquanto o capitalismo não for superado. A classe trabalhadora, inclusive na China, está aprendendo muito com essa experiência amarga. A pandemia é, por definição, um evento multinacional, e não pode ser resolvida num só país. A humanidade precisa do socialismo, sem burocracia privilegiada, em todos os países.
Sobre o autor: Ruy Penna é médico e trabalha na cidade de São Paulo.