Qual é o papel atual da China? Embora algumas pessoas de esquerda celebrem as ambições da China como um contrapeso aos Estados Unidos, Jorge Martín explica que o capitalismo foi restaurado há muito tempo na China e hoje ela tem todas as características de uma potência imperialista em ascensão. A “multipolaridade” não beneficiará os trabalhadores do mundo, que devem confiar apenas na sua própria força para se livrarem das correntes do imperialismo e do capitalismo a nível internacional.
O que se segue é uma transcrição de uma palestra proferida por Jorge Martín no ano passado no Revolution Festival, a escola anual de comunismo organizada pela seção britânica da Corrente Marxista Internacional – CMI.
Antes de tudo, vamos esclarecer uma coisa. Nos meios de comunicação social no Ocidente, e entre os principais políticos do imperialismo ocidental na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos, e assim por diante, há uma campanha anti-chinesa constante. Eles dizem: "a China é má", "a China está fazendo todas essas coisas más", (o que eles próprios obviamente também estão fazendo, mas deixemos isso para lá), "a China é muito má", "a China está conspirando e manipulando", aparentemente está pagando a algumas pessoas em Westminster para influenciar os políticos, como se isso nunca acontecesse neste país, e outras porcarias similares.
No entanto, esta palestra não é uma conversa anti-China. É uma tentativa comunista de compreender o que é a China e qual o papel que a China desempenha nas relações mundiais.
Somos internacionalistas e não apoiamos a nossa própria classe dominante. Não defendemos os direitos da nossa própria classe dominante imperialista. Queremos analisar a situação do ponto de vista dos interesses da classe trabalhadora, da classe trabalhadora na China e da classe trabalhadora em todo o mundo. É importante que os comunistas compreendam as relações mundiais e de onde elas surgem.
O ponto de partida é este: a China é um país capitalista e já o é há algum tempo.
Estou tentando utilizar os indicadores oficiais chineses. Não digo apenas que alguns desses indicadores precisam ser encarados com cautela, mas que também precisam ser entendidos, porque às vezes as definições do que é uma empresa privada ou uma empresa mista ou uma empresa estatal são um tanto complicadas e não correspondem necessariamente ao que normalmente entenderíamos. Mas, de acordo com os dados oficiais chineses, o setor privado, definido restritivamente como empresas com menos de 10% de participação estatal, no primeiro semestre de 2023 representava cerca de 40% do PIB. Esta é uma cifra que você pode observar. Esta foi a cifra mais baixa desde 2019.
Durante a pandemia, o setor privado diminuiu um pouco e o setor estatal aumentou correspondentemente. O setor privado atingiu um pico de 55% do PIB por volta de 2021. Mas penso que não se trata apenas do peso do setor privado, mas que também é importante olhar para onde a seta aponta. Qual é a direção do processo? Em 2010, o setor privado, definido dessa forma, representava apenas 8% do PIB e agora representa cerca de 50%.
De acordo com os dados oficiais, mais de 80% da força de trabalho industrial, ou seja, dos trabalhadores que operam especificamente na indústria, pertencem ao setor privado. O setor privado contribui com 50% das exportações, e as exportações são obviamente uma parte importante da economia chinesa, mais do que em alguns outros países capitalistas.
Em 2011, ou seja, quando este processo ainda estava no início, ou tinha começado talvez 10 anos antes, Shen Danyang, porta-voz do Ministério do Comércio Chinês, disse que “após 30 anos de reforma e abertura, a China completou a transformação de uma economia planificada para uma economia de mercado”. Esta era a posição oficial do Estado chinês em 2010. Também é preciso encarar isto com alguma reserva, porque naquela altura estavam em negociações sobre a adesão à OMC, e isso envolvia uma disputa sobre se a economia chinesa deveria ser considerada uma economia planificada ou não. Mas isso dá uma ideia de qual é a situação.
Direi que já há alguns anos não se pode contestar que o Estado chinês defende e promove as relações de propriedade capitalistas. Sim, a China é um país capitalista em que o Estado desempenha um grande papel na economia. Isto deve-se à sua história e a outros fatores decorrentes da transição de uma economia planificada para uma economia capitalista. Mas, no entanto, o setor estatal é utilizado para defender, promover e fomentar as relações de propriedade capitalistas.
O que domina na China não é a planificação econômica, mas sim a motivação do lucro privado. E é assim que funciona a economia capitalista na China depois de um processo que levou mais de 30 anos.
Outro fator interessante é o capital chinês no exterior, ou seja, os capitalistas chineses de outros países desempenharam um grande papel no desenvolvimento do capitalismo na China. Foram os primeiros a investir em empresas privadas, trazendo fábricas para a China e assim por diante. Mas, obviamente, o capital internacional também desempenhou um papel importante. E isto representou uma grande parte daquilo que, na década de 1990, foi chamado de processo de globalização que incluiu a integração da China no mercado capitalista.
Houve um investimento maciço por parte de empresas ocidentais na China, que originalmente a utilizavam como fonte de mão-de-obra barata. Era isso o que eles estavam procurando. Eles procuravam mão de obra barata para poder produzir barato. E, ademais, isto desempenhou um grande papel durante todo o período na manutenção da inflação baixa nos países capitalistas avançados. Esta foi uma parte importante da situação política e econômica na década de 1990 e posteriormente.
Uma questão legítima que pode ser colocada é: como é possível que um país atrasado e dominado, como era a China antes da revolução chinesa em 1949, tenha se tornado uma parte poderosa da economia mundial, uma poderosa economia capitalista desenvolvida?
Se lermos a teoria da revolução permanente de Trotsky, ela diz que a burguesia nacional nos países dominados e nos países capitalistas atrasados na época do imperialismo não pode desempenhar um papel progressista e não pode realizar as tarefas da revolução burguesa, da revolução democrática nacional.
Mas, na China, foi diferente, porque, na China, não foi a classe capitalista, a burguesia chinesa, que realizou essas tarefas. Foi a Revolução Chinesa que aboliu o capitalismo e percorreu um longo caminho na resolução das tarefas democráticas nacionais na China, que são principalmente a reforma agrária com a expropriação do latifúndio e a questão da unificação nacional e da soberania nacional.
A China, em 1990 ou em 2000, já não era mais um país atrasado dominado pelo imperialismo. Era um país independente, onde muitas das tarefas da revolução democrática nacional tinham sido resolvidas décadas antes. E esta foi a base sobre a qual o desenvolvimento capitalista começou na China. Além disso, havia outros elementos: o fato de haver um Estado forte, de haver educação universal, de haver um elevado nível de educação e um elevado nível cultural, o que permitiu à China adquirir uma série de tecnologias avançadas, e assim por diante.
A China também não se tornou apenas um país capitalista, tornou-se um país capitalista que mudou o seu carácter na divisão internacional do trabalho. Originalmente, como disse, era um país dominado pela mão-de-obra barata e pela exportação de mercadorias baratas: brinquedos, têxteis, produtos eletrônicos baratos e assim por diante. Mas agora já não é mais assim, ou aquelas características da economia capitalista que a China tinha talvez há 20 anos, já não são dominantes na China.
Diria que, neste momento, a China avançou para uma economia com tecnologia mais desenvolvida e salários mais elevados. O salário médio mensal nas áreas urbanas da China hoje é de cerca de 1.300 dólares, segundo dados da CEIC. Este indicador, embora disfarce muitas disparidades regionais e entre setores, revela que os salários dos trabalhadores chineses são mais elevados do que os salários, por exemplo, na Albânia, na Roménia, no México e noutros países onde os capitalistas procuram mão-de-obra barata.
E isso tem uma série de consequências. Existem agora algumas empresas (por diferentes razões, mas uma das quais são os salários) que estão se afastando da China ou das zonas costeiras, que são mais desenvolvidas economicamente, para áreas de mão-de-obra mais barata, ou para outras economias de mão-de-obra mais barata na Ásia, ou para outras economias com mão-de-obra mais barata e mais próximas dos mercados capitalistas que estas empresas pretendem servir (como o México). Trata-se de um processo que foi denominado de “near-shoring” [deslocalização para países próximos] ou “friend-shoring” [deslocalização para países amigos].
A economia chinesa adotou tecnologias muito avançadas. Em alguns setores, a tecnologia chinesa está à frente de outros países capitalistas imperialistas. Só para dar um exemplo: os veículos elétricos, que são um setor crescente da economia capitalista. Não sou engenheiro nem de longe, mas o que entendo é que o mais importante num veículo elétrico não é tanto o motor, mas a bateria, a bateria e a autonomia que essa bateria pode ter, e assim por diante.
Hoje existe uma empresa chinesa chamada CATL. Esta é o maior fabricante de baterias para veículos elétricos do mundo e controla 34% do mercado mundial de baterias para veículos elétricos, e está bem à frente de qualquer outra empresa e fornece todos os principais fabricantes de automóveis do mundo, incluindo Tesla, Ford, Volvo (que obviamente já não é mais uma multinacional sueca; foi agora comprada ou induzida à venda pelo capital chinês).
E como a China conseguiu isso? Bem, pelos métodos tradicionais de um país capitalista: roubando tecnologia, enviando milhares de estudantes para estudar nas universidades mais prestigiadas da Grã-Bretanha, dos Estados Unidos, investindo muito dinheiro em institutos de investigação e desenvolvimento e, basicamente, investindo numa série de setores que consideram ser os setores que são o futuro da economia capitalista e, portanto, ganhando vantagem sobre outros países.
Isto também faz parte do desenvolvimento desigual e combinado. Uma economia anteriormente atrasada pode avançar em certos setores. A China, por exemplo, tem a vantagem de nunca ter tido uma enorme indústria tradicional de fabrico de automóveis com motores de combustão, como no Ocidente, e, portanto, a transição para veículos eléctricos é muito mais rápida, e isto pode ser replicado em muitos outros setores da economia.
O papel da China no mundo também mudou. E argumentarei que a China está jogando um papel imperialista na economia mundial e nas relações mundiais.
Agora, o que significa imperialismo? Quando falamos de imperialismo de um ponto de vista comunista não nos referimos a uma compreensão geral e de senso comum do imperialismo como uma política externa agressiva, invasões militares e assim por diante. Isso faz parte do imperialismo.
Mas se olharmos para a definição de imperialismo de Lênin, as características clássicas que Lênin descreve no seu livro, “Imperialismo, o estágio superior do capitalismo”, são:
“1) a concentração da produção e do capital desenvolveu-se a um nível tão elevado que criou monopólios que jogam um papel decisivo na vida econômica; (2) a fusão do capital bancário com o capital industrial e a criação, com base neste ‘capital financeiro’, de uma oligarquia financeira; (3) a exportação de capitais, distinta da exportação de mercadorias, adquire uma importância excepcional; (4) a formação de associações capitalistas monopolistas internacionais que partilham o mundo entre si, e (5) a divisão territorial do mundo inteiro entre as maiores potências capitalistas está concluída”. (Lênin, Imperialismo)
A definição de Lênin é a da fase imperialista do capitalismo. Lênin está falando sobre o sistema mundial, não está tentando definir um país determinado assinalando cinco caixinhas de características. É isto o que ele descreve como um sistema mundial, a divisão do mundo entre as maiores potências capitalistas. Argumentarei que a China preenche todas estas diferentes condições, de uma forma ou de outra, e faz agora parte do sistema imperialista mundial.
Lênin também fala, no seu Imperialismo, sobre a inevitabilidade da ascensão e queda das potências imperialistas:
“Isso ocorre porque a única base concebível sob o capitalismo para a divisão de esferas de influência, interesses, colônias, etc., é um cálculo da força dos participantes, da sua força geral econômica, financeira, militar, etc. E a força destes participantes na divisão não muda em grau igual, pois o desenvolvimento uniforme de diferentes empresas, trustes, ramos da indústria ou países é impossível sob o capitalismo. Há meio século, a Alemanha era um país miserável e insignificante, se a sua força capitalista for comparada com a da Grã-Bretanha da época; o Japão comparava-se com a Rússia da mesma forma. Será ‘concebível’ que dentro de dez ou vinte anos a força relativa das potências imperialistas tenha permanecido inalterada? Isso está fora de questão.”
Em primeiro lugar, como já disse, a China é dominada por grandes monopólios. As empresas chinesas são enormes, e estas enormes empresas dominam uma percentagem muito grande do total da economia chinesa e estes monopólios têm uma projeção na economia mundial.
Só para se ter uma ideia, um total de 135 empresas chinesas figuram na lista Forbes 500 das maiores empresas do mundo em 2023, o quinto ano consecutivo em que as empresas chinesas estiveram no topo da lista em termos numéricos. Na lista, os Estados Unidos têm 136, o Japão tem 41. Portanto, a China tem mais ou menos o mesmo número de grandes empresas que os EUA nesta lista das 500 maiores.
As finanças também dominam a economia da China e há uma fusão entre o capital financeiro e o capital industrial. Esta característica é muito marcante na China. Embora existam diferentes formas de medir o tamanho (o montante dos depósitos, o valor da capitalização, o número de trabalhadores), em pelo menos uma medida, a China possui os quatro maiores bancos do mundo: o Banco Comercial Industrial da China, o China Construction Bank, o Banco da China e o Banco Agrícola da China. Estes são os quatro maiores bancos do mundo e jogam um papel importante na economia da China. Eles também jogam um grande papel na economia mundial.
Embora seja verdade que estes bancos são todos estatais, como resultado da forma como o capitalismo surgiu na China, o país também tem um grande setor bancário “paralelo”, que, de acordo com um relatório oficial de 2019, representava 86% do PIB, US$ 12 trilhões.
A China também exporta capital há algum tempo. Se olharmos para o gráfico das exportações chinesas de capitais, vemos que elas sobem cada vez mais desde aproximadamente 2005, particularmente depois de 2010. E agora são muito, muito elevadas. É claro que aconteceram muitas coisas nos últimos dois ou três anos, a pandemia da COVID-19, o estrangulamento e a perturbação das cadeias de abastecimento do comércio mundial, e assim por diante. Isso interrompeu alguns desses padrões. Mas até então a curva era ascendente. Só para dar uma indicação, o investimento direto estrangeiro exportado pela China começou a aumentar depois de 2000. O fluxo anual de investimento direto estrangeiro da China saltou de 2,7 bilhões de dólares em 2002 para 200 bilhões de dólares em 2016. No espaço de cerca de 15 anos, foi multiplicado por 100.
Darei alguns outros números para os 10 principais países e regiões do mundo como fontes de investimento direto estrangeiro, seu acumulado e o fluxo anual para 2015. A fonte é o Ministério do Comércio Chinês.
Em termos de acumulado de investimento direto estrangeiro, os EUA estavam no topo, com 23% de participação no montante global de investimento direto estrangeiro. A China ficou em oitavo lugar, com apenas 4,4%. Mas Hong Kong, que é contado separadamente, ficou em quarto lugar, com 5,9%, em termos de acumulado total, ou seja, de investimento direto estrangeiro acumulado durante um período de tempo. Mas em termos de fluxo, ou seja, do dinheiro que sai todos os anos como investimento direto estrangeiro, os EUA, em 2015, ainda era o primeiro, com 20% de participação no fluxo total de investimento direto estrangeiro, mas a China era o segundo na lista, com 10%, metade da participação dos Estados Unidos. Hong Kong ficou em nono lugar, com 3,7%. Se adicionarmos Hong Kong à China, isso representa cerca de 13,6%, o que não está muito longe do investimento direto estrangeiro dos Estados Unidos naquela altura de 2015. Muitas empresas privadas chinesas também estão registradas em Singapura, a partir das quais, e por sua vez, investem em outros locais e, portanto, pelo menos uma parte dos investimentos de Singapura deveria ser vista como chinesa.
É claro que o investimento direto estrangeiro é uma categoria muito enganadora. Parte deste dinheiro é então escondido em paraísos fiscais nas Ilhas Caimão, nas Seicheles ou em outros paraísos fiscais como este. Mas grande parte disto vai para o investimento estrangeiro direto, fusões e aquisições. Vimos a China promover fortemente o investimento de empresas chinesas na compra e no investimento em outros países e em todo o tipo de coisas, sobre as quais abordarei dentro de um minuto.
As despesas com ajuda externa da China (esta é também outra forma de imperialismo, porque sabemos que a ajuda externa não é realmente ajuda, trata-se de obter influência política e tornar os países dependentes da sua ajuda externa, etc.) foi uma quantia muito pequena, mas está crescendo muito rápido. As despesas chinesas com ajuda externa cresceram de 600 milhões de dólares, em 2003, para 2,3 bilhões de dólares em 2016. Então, 2,3 bilhões de dólares colocam a China na faixa dos países capitalistas de tamanho médio, como, por exemplo, a Bélgica ou a Austrália, em termos de gastos em “ajuda externa”.
Finalmente, há a questão da divisão do mundo entre as principais potências imperialistas e a China faz agora claramente parte disto. Você provavelmente já ouviu falar da Road and Belt Initiative, também conhecida como Nova Rota da Seda. Qual é o seu significado? A China está tentando gastar muito dinheiro na segurança de rotas marítimas e comerciais para os seus produtos de exportação, rotas comerciais e também para garantir fontes de energia e matérias-primas para o seu faminto desenvolvimento industrial. Está também garantindo campos de investimento e acorrentando um grande número de países à sua área de influência, através da exportação de capital, através do investimento, e assim por diante.
E isto conduziu claramente a China a um conflito aberto com os Estados Unidos. Podemos ver que existem agora muitos aspectos ou elementos diferentes de uma guerra comercial entre a China e os Estados Unidos, que começou na época da presidência de Trump, mas que continuou com a administração Biden. Não é uma política partidária, é uma política capitalista da classe dominante dos Estados Unidos. E vimos incidentes disso. Por exemplo, os Estados Unidos pressionaram fortemente a Grã-Bretanha para não permitir que a Huawei construísse infraestruturas 5G. E isto acontece porque neste momento a Huawei, que muitos de vocês poderão considerar uma fabricante de celulares baratos, é hoje uma das principais fornecedoras de equipamentos para a infraestrutura 5G do mundo.
Este é um desenvolvimento muito acentuado da tecnologia. E, nesta tecnologia, a China está na dianteira. Existem outros casos. Os Estados Unidos estão pressionando fortemente o Brasil para não permitir a entrada da Huawei. O Canadá prendeu alguns executivos da Huawei. E tudo isto não tem nada a ver com espionagem industrial ou com a preocupação de que os celulares de Whitehall sejam ouvidos na China. Pode até haver um elemento disso, mas essencialmente tudo se resume à concorrência entre diferentes empresas capitalistas.
Incidentalmente, isso também prova outro ponto. Havia algumas pessoas há 20 anos que argumentavam que o imperialismo já não existia, que o que tínhamos era o “Império”: um conglomerado mundial de empresas que dominam tudo sem qualquer relação com os Estados-nação (por exemplo, ver: Hardt e Negri, Empire, Harvard University Press, 2000). Não, o imperialismo existe e está dividido entre diferentes potências imperialistas em guerra e concorrentes. A China defende os interesses da Huawei, os Estados Unidos defendem os interesses da Boeing e a União Europeia defende os interesses da Airbus no mercado mundial por todos os meios necessários que estejam à sua disposição.
Isto, como já disse, coloca a China em conflito com os Estados Unidos. Isto é muito claro e este conflito manifesta-se em muitos campos diferentes. Neste momento, a China não está usando o poder militar para proteger os seus interesses imperialistas… ou, pelo menos, até agora. E isso faz com que algumas pessoas digam: “Ah, mas o investimento chinês na África é um investimento amigável, não é como os imperialistas, que organizaram golpes militares e enviaram canhoneiras, etc.” Sim, é verdade que os mesmos meios ainda não foram utilizados. Mas isso não significa que os investimentos chineses tenham um carácter diferente dos investimentos imperialistas de outros países.
A China não está usando o poder militar para exercer os seus interesses imperialistas no estrangeiro porque ainda não é capaz de fazê-lo. A China ainda é muito mais fraca do que os Estados Unidos em termos militares, embora esteja reduzindo a distância em uma série de áreas. Os Estados Unidos construíram o seu poder militar em todo o mundo durante um longo período de tempo. Por sua vez, a China utiliza principalmente as finanças, a diplomacia e assim por diante.
No entanto, é preciso dizer que a China já construiu uma base militar no Djibuti. O Djibuti é obviamente um gargalo marítimo muito importante para o comércio internacional na entrada do Mar Vermelho. E vários dos portos que estão sendo construídos, ou que foram construídos através da Nova Rota da Seda, têm potencialmente uma dupla utilização, civil e militar.
Parte disto é propaganda dos EUA, mas parte também é potencialmente verdade, e o padrão clássico do investimento estrangeiro direto chinês em diferentes países é o seguinte: um banco estatal chinês empresta dinheiro ao país A; o país A utiliza então este dinheiro para realizar alguns grandes projetos de infraestrutura; barragens, centrais hidrelétricas, ferrovias, melhorias da capacidade de um porto para atracar navios de grande porte, etc. Este projeto de infraestrutura é normalmente executado por empresas especializadas chinesas, empresas de construção civil e empresas de construção ferroviária. As empresas chinesas operam então este projeto de infraestrutura, por exemplo, uma empresa ferroviária chinesa opera a ferrovia, uma grande empresa chinesa de hardware assume o controle, etc. E então, em troca deste investimento, que assume a forma de um empréstimo, este país fica endividado com a China. Em troca disso, a China obtém o direito de explorar minerais ou outros recursos naturais; obtém comércio preferencial de soja ou carne; ou ganha alguma outra concessão desse tipo. E estes projetos de infraestruturas, curiosamente, ligam as matérias-primas que este país possui aos portos de onde serão enviadas para a China.
Estes projetos são então colocados como garantia para esta dívida, e quando este país, como acontece frequentemente, não paga a sua dívida, os chineses obtêm o controle total da infraestrutura que construíram. E tudo isto cria dívida e alavancagem política, criando uma relação que não pode ser descrita de outra forma senão a de um país imperialista com um país dominado.
E isso está acontecendo em todos os lugares. Está acontecendo em toda a África e na América Latina, e em muitos países asiáticos. E posso dar muitos, muitos exemplos.
Por exemplo, entre outras coisas, a China desenvolveu uma série de investimentos em portos de todo o mundo que considera cruciais para as rotas marítimas. Se você olhar o mapa, ficará surpreso. Eu certamente fiquei! (Ver: A China adquiriu uma rede global de portos estrategicamente vitais, Washington Post, 6 de novembro de 2023)
A China controla agora ou tem investimentos (em alguns casos, pequenos investimentos, por exemplo, 10%, 30%, e em outros casos uma posição dominante) em todas as principais rotas marítimas do mundo: o Estreito de Malaca, na Malásia, em Singapura, na Indonésia e, obviamente, neste grande porto no Sri Lanka. Depois, há o porto de Gwadar, que construíram no Paquistão, o que também significa que haverá uma rota terrestre de ligação através da Ásia Central. Aliás, tudo isto também passa ao lado da Índia, que é um inimigo tradicional da China nas relações mundiais. E depois de Gwadar você vai a Djibuti, o porto que mencionei antes, que foi construído e é de propriedade de uma empresa chinesa. Depois, do outro lado da entrada do Mar Vermelho, está o porto de Áden, onde os chineses também investiram.
Do lado do Mediterrâneo, temos portos no Egito, na foz do Canal de Suez, e no porto de Haifa, em Israel. Depois você vai ao porto de Pireu, na Grécia, que é de propriedade integral de uma empresa chinesa, a Cosco. De lá você pode ir para alguns portos no norte da Itália, o porto de Valência na Espanha, o porto de Argel, e portos em Marrocos.
De lá você pode ir até o porto de Bilbao, a vários portos na França, um porto na Bélgica, Rotterdam, que é um dos maiores portos do mundo. E agora foi acordado que haverá investimento chinês no porto de Hamburgo e em outras rotas comerciais.
Antes da guerra na Ucrânia, a China investiu nos portos de Odessa e Mykolaiv, que agora, obviamente, não são muito úteis. Mas eles têm investimentos como este.
E também no lado do Pacífico, a China tem investimentos no Porto de Los Angeles e no Porto de Seattle, dois dos maiores portos da costa do Pacífico. E a China está agora construindo um novo porto em Chancay, no Peru, o que irá reduzir o tempo que leva o comércio entre a China e a América do Sul entre cinco e dez dias.
Isso só dá uma ideia do que eles estão tentando fazer. Eles querem garantir rotas marítimas e comerciais, o que não é “mau, conspiratório e maquinador”. É apenas o comportamento de um país imperialista que quer garantir os seus interesses no mundo.
Vou apenas dar um exemplo. Na Zâmbia, um país sem litoral na África Austral, que é muito rico em cobre, os chineses investiram e têm o direito de extrair cobre. A Zâmbia está agora fortemente endividada com a China. Os chineses construíram e recentemente reformaram uma linha ferroviária que liga as minas na Zâmbia ao porto de Dar es Salaam, na Tanzânia, para transportar o cobre.
Uma região chave na economia mundial neste momento, em termos de recursos minerais, é a África Central, particularmente o Congo, de onde é extraído muito cobalto, mas também muitos outros minerais importantes para o desenvolvimento de novas tecnologias. E adivinhem: os chineses estão construindo uma série de ferrovias que ligará a costa do Oceano Índico ao Congo, uma delas conectará Ruanda, Malawi, Burundi e Uganda, outra que ligará o Quênia ao Djibuti, e assim por diante. A ideia é fornecer uma forma adequada e rápida de extrair essas matérias-primas dessas importantes áreas do mundo. De Nairobi a Mombaça, de Addis Ababa a Djibuti, e há muitos outros exemplos como este.
O Equador está fortemente endividado com a China, assim como o Sri Lanka, a Tanzânia, etc.
A mesma coisa está acontecendo em toda a América do Sul. Há cerca de dois anos, a China tornou-se o principal parceiro comercial de toda a América do Sul. E isto é bastante prejudicial do ponto de vista dos interesses do imperialismo norte-americano. Há cerca de 200 anos foi anunciada a Doutrina Monroe. E a Doutrina Monroe diz “A América para os Americanos”, o que basicamente significa que as Américas são o quintal do imperialismo norte-americano, e nenhuma outra potência imperialista será autorizada a ter qualquer palavra a dizer em toda a América. Bom, agora você tem a China, que é o principal parceiro comercial de toda a América do Sul, principalmente de países como Chile, Argentina, Equador, Peru, Brasil e Bolívia.
Com todos estes países, qual é a natureza deste comércio? A China compra matérias-primas, cobre, carne bovina, suína, petróleo, gás, lítio, soja (contribuindo, aliás, para o desmatamento de regiões inteiras da América do Sul) e vende produtos manufaturados, máquinas, equipamentos de transporte, produtos químicos, que são os principais itens que a China exporta.
Ao mesmo tempo, a China investe dinheiro na América Latina através de investimento estrangeiro direto. A China comprou a rede elétrica em muitos dos estados brasileiros e as empresas privadas chinesas de veículos elétricos, BYD e Great Wall Motors, compraram agora duas grandes fábricas de automóveis no Brasil, uma que anteriormente pertencia à Ford e outra que anteriormente pertencia à Mercedes Benz. Duas empresas imperialistas ocidentais deixaram o Brasil e foram agora adquiridas por duas empresas chinesas que vão construir veículos elétricos.
Aliás, o maior fabricante mundial de veículos elétricos é agora a BYD, embora estes números sejam um pouco enganadores, porque a BYD produz tanto veículos elétricos puros como veículos elétricos híbridos, enquanto a Tesla, que é o principal concorrente, produz apenas veículos elétricos. Não é a mesma coisa, mas está na dianteira. [Desde que esta palestra foi proferida, a BYD ultrapassou a Tesla como o maior fabricante mundial de veículos eléctricos puros.]
Eu diria que todos estes fatos e números demonstram o fato de a China ser um país imperialista, e isto tem certas consequências e implicações. Algumas pessoas dizem que o papel que a China desempenha na economia mundial é positivo, até mesmo progressista, porque isso significa que podemos agora esperar um mundo multipolar, que não seja mais dominado pelo imperialismo norte-americano. Isto, dizem eles, é um desenvolvimento positivo para os povos do mundo, especialmente para os países oprimidos, que, como afirmam, têm agora espaço livre para se desenvolverem.
Mas isso está completamente errado. Não há nenhuma vantagem para a classe trabalhadora, seja nos países capitalistas avançados seja nos países capitalistas dominados, uma mudança do mundo dominado, ou majoritariamente dominado, por um país imperialista, ter agora diferentes potências imperialistas lutando pelo controle sobre países diferentes. Isto não melhora a situação dos trabalhadores, dos camponeses pobres e das pessoas pobres nas nações oprimidas do mundo. Significa apenas que há mais conflitos e mais guerras regionais.
Se alguém assistiu ontem à palestra sobre a situação na África e o imperialismo francês, poderá ver que, claramente, não há uma melhora. Para os trabalhadores do mundo, o seu interesse é lutar contra todas as potências imperialistas, não lutar para que as diferentes potências imperialistas se equilibrem. É verdade, porém, que, por conta da China desempenhar agora um papel mais importante na economia mundial, certos países estão tentando equilibrar uma potência contra a outra e a mudar ligeiramente as alianças.
Por exemplo, temos visto uma série de países, que no passado eram aliados muito próximos dos Estados Unidos, ou que eram basicamente fantoches completamente dominados pelos Estados Unidos, como a Turquia, a Arábia Saudita, ou mesmo o Brasil, por exemplo, agora tentando desempenhar um papel mais independente na política mundial. Isso não significa que a Arábia Saudita tenha cortado as suas ligações com os Estados Unidos. Não, eles estão tentando jogar a China contra os Estados Unidos, para ganhar alguma vantagem para si próprios. Isto não é benéfico para os trabalhadores da Arábia Saudita, que ainda estão sob o jugo de uma monarquia semifeudal e reacionária. Muitos deles são trabalhadores imigrantes estrangeiros sob condições onde não têm direitos, recebem salários muito baixos e são altamente explorados. Mas no conflito na Ucrânia, é claro que a Arábia Saudita tem permanecido inclinada a ajudar a Rússia, a manter os preços do petróleo elevados, e está negociando com a Rússia.
Existem outros fatores na relação EUA-Arábia Saudita. Os Estados Unidos são quase autossuficientes em termos de petróleo, o que não acontecia no passado. Mas é claro, quem esteve atento às notícias do mundo este ano, percebeu que houve um acordo de paz entre a Arábia Saudita e o Irã, que foi mediado pela China. E isto significa que os Estados Unidos já não desempenham um papel tão dominante no Oriente Médio como conseguiram desempenhar no passado. O mesmo aconteceu com a guerra na Síria.
Agora, outra coisa que precisamos dizer é que esse processo tem certos limites. Não estamos dizendo que a China está crescendo em influência no mundo, que está crescendo no seu papel como potência imperialista e que, em algum momento, ultrapassará os Estados Unidos e se tornará a principal potência imperialista no mundo. Não estamos dizendo isso. Isto se deve porque este processo tem certos limites, que, conforme penso, a economia chinesa já alcançou mais ou menos.
A economia da China tem investido durante muitos anos na formação bruta de capital, ou seja, na construção de máquinas, fábricas, indústrias, e enfrenta agora uma clássica crise capitalista de superprodução. Produz demasiado aço, demasiados carros e demasiado de tudo, que não conseguem vender em lado nenhum. É uma crise clássica do capitalismo.
É também uma crise da tendência de queda da taxa de lucro. A mesma quantidade de investimento em maquinaria e tecnologia na China já não produz a mesma quantidade de crescimento do PIB como acontecia no passado. A China continua a crescer, mas certamente não mais ao mesmo ritmo que no passado.
Existem também outros fatores. As economias chinesa e norte-americana estão extremamente interligadas. Portanto, há empresas norte-americanas que têm interesse em evitar uma guerra comercial. Por exemplo, a Foxconn construiu uma enorme empresa industrial na China que fabrica a maioria dos celulares da Apple que as pessoas usam no Ocidente. Obviamente, não estão interessados em uma guerra comercial e há muitas outras empresas ocidentais que investiram na China que estão desempenhando um papel restritivo.
De tempos em tempos, vemos líderes capitalistas ocidentais indo à China para uma conferência comercial, tentando restabelecer relações diplomáticas normais.
Finalmente, os Estados Unidos, como potência imperialista mundial, estão diminuindo o seu papel, mas este declínio ainda é um declínio relativo. Às vezes as pessoas dizem: “Ah, a China já ultrapassou os Estados Unidos como a maior economia, ou irá ultrapassar os Estados Unidos”, mas a China tem uma população muito maior que a dos Estados Unidos. Isto significa que a produtividade do trabalho nos Estados Unidos ainda é muito mais elevada do que na China em geral, sendo a China um país muito desigual. Não é o mesmo nas zonas costeiras, onde ocorreu a maior parte do desenvolvimento capitalista, como nas zonas do interior, que ainda estão atrasadas.
Em termos de poder militar, os Estados Unidos ainda estão muito à frente. Só para dar um exemplo, a China tem apenas dois porta-aviões e os Estados Unidos têm 11, mais de 5 vezes mais. Em muitas outras áreas, este é o caso.
Portanto, penso que, embora a situação conduza obviamente a mais tensões, a mais potencial para guerras regionais e guerras locais, isso não significa que a China ultrapassará os Estados Unidos tão cedo. A China está enfrentando os seus próprios limites.
O último ponto que quero salientar é o seguinte: qual é a posição dos comunistas em relação a esta situação? A posição dos comunistas é a seguinte: o principal inimigo da classe trabalhadora está em casa. No Reino Unido ou nos Estados Unidos, o nosso principal inimigo não é a China. Nosso inimigo é a classe dominante destes países. E os nossos aliados são os trabalhadores do mundo, incluindo os trabalhadores da China.
Este é o ponto que interessa: o desenvolvimento econômico e o desenvolvimento do capitalismo na China criaram uma classe trabalhadora poderosa, uma classe trabalhadora que não tem tradições recentes de luta. Houve muitas greves, revoltas e explosões de luta, mas a classe trabalhadora chinesa não tem uma tradição estabelecida de partidos reformistas e sindicatos. É uma nova classe trabalhadora. Muitos deles são migrantes de primeira geração do campo para as cidades. Eles estão trabalhando em condições de alta exploração.
E enquanto descrevo isto, alguns de vocês podem estar pensando que existem paralelos semelhantes entre isto e o que aconteceu na Rússia em 1917. Ou o que aconteceu na Espanha em 1970. Ou o que aconteceu no Brasil em 1980. Uma classe trabalhadora de primeira geração em condições de ditadura, onde não existem vias para um sindicato legal, ou de desenvolvimento político, em condições de elevada exploração, onde as condições mudaram muito rapidamente em curto período de tempo. Isto levou a quê? A uma explosão revolucionária.
E é isso que está sendo preparado na China. A nossa tarefa é unir-nos à classe trabalhadora chinesa e lutarmos juntos para derrubar o imperialismo e o capitalismo em todo o mundo. A nossa tarefa não é celebrar a existência de mais países imperialistas e o fato de o mundo ser mais multipolar, mas sim fortalecer a nossa determinação de lutar contra o capitalismo e o imperialismo, que são a principal fonte de guerras e de exploração, um sistema que sobreviveu a qualquer papel útil que poderia ter desempenhado no passado.