O que é o dinheiro? (Parte 1: as origens do dinheiro)

Nesta primeira parte de uma série de cinco dedicada à análise do papel do dinheiro na sociedade capitalista, Adam Booth busca as origens do dinheiro associadas à ascensão da produção de mercadorias e da sociedade de classes.

“O amor ao dinheiro”, diz-nos a Bíblia, “é a origem de todos os males” (1 Timóteo 6:10). Depois do crash financeiro de 2008 e da subsequente crise econômica global, que continua a afligir a sociedade, é difícil não se identificar com estas palavras do Livro Sagrado.

Linguagem semelhante é adotada em The Ragged Trousered Philanthropists [Os Filantropos Andrajosos], a novela do início do século XX de Robert Tressell, que é frequentemente considerada como uma bíblia moderna pelo movimento dos trabalhadores. Neste relato ficcional da vida da classe trabalhadora, o protagonista, um socialista de nome Frank Owen, afirma a seus pares incrédulos que o “Dinheiro é a principal causa da pobreza” (Robert Tressell, The Ragged Trousered Philanthropists, Wordsworth Classic edition, p. 175).

Owen corajosamente tenta explicar com mais detalhes aos seus colegas trabalhadores como, “enquanto permanecer o atual sistema monetário, será impossível acabar com a pobreza, porque a acumulação do dinheiro em alguns lugares significa que há pouco ou nada em outros lugares. Assim, enquanto durar o sistema monetário, estamos destinados a ter a pobreza e todos os males que ela traz em sua esteira” (Ibid., p. 284).

“O atual sistema monetário impede-nos de fazer o trabalho necessário e, consequentemente, faz com que a maioria da população obtenha pouco das coisas que podem ser feitas pelo trabalho. Eles sofrem de escassez em meio à abundância dos meios de produção. Permanecem ociosos porque estão atados e encadeados com uma corrente de ouro” (Ibid., p. 286).

“Este roubo sistemático vem acontecendo há gerações, o valor dos ganhos acumulados é enorme, e tudo isto, toda a riqueza atual nas mãos dos ricos, é corretamente de propriedade da classe trabalhadora – roubada deles por meio do Truque do Dinheiro” (Ibid., p. 299).

O dinheiro, então, como afirma Tressell através de seu herói Owen, parece-nos uma força mística; uma “cadeia de ouro” que ata a vasta maioria da população a uma vida de trabalho e miséria; um grande “truque” que separa a classe trabalhadora da riqueza que ela criou. Vemos tudo isto ao nosso redor, de forma onipresente e abundante; e, no entanto, em meio a essa abundância, encontramos escassez universal. Dentro deste “Sistema Monetário”, todas as nossas necessidades se relegam à necessidade de dinheiro – nas palavras do Bardo, “Tu, meretriz comum a toda a espécie humana” (William Shakespeare, Timon de Atenas, Ato IV, Cena 3).

Quer se trate das políticas monetárias dos bancos centrais, como a eufemisticamente chamada Flexibilização Quantitativa; da alquimia financeira que ocorre dentro das torres de vidro de Canary Wharf [Complexo de edifícios comerciais localizados na cidade de Londres – NDT] e da City de Londres; ou das alternativas utópicas oferecidas pelas moedas digitais como Bitcoin: para a maioria das pessoas, o funcionamento do moderno sistema monetário está envolto em mistérios.

No entanto, tal como acontece com todos esses ídolos reverenciados na sociedade de classes, quer se trate dos deuses e da religião ou da Lei e do Estado, ao se aplicar o método dialético do Marxismo – isto é, uma análise materialista e dialética da história e da sociedade – podemos entender e explicar as origens, a evolução e o desenvolvimento do dinheiro. Ao fazê-lo, podemos despojar o misticismo deste poder aparentemente onipotente e entender a solução para a remoção de seu domínio sobre nós.

Comunismo primitivo

Ao estudar a história, vemos que o dinheiro nem sempre existiu, mas está ligado ao desenvolvimento da sociedade de classes e, em particular, de mercadorias – isto é, de bens produzidos não para o consumo individual ou comum, mas para a troca. Para Marx, a chave para se entender a questão do dinheiro, portanto, estava na análise do desenvolvimento histórico da produção de mercadorias e da troca. “O enigma do fetiche do dinheiro”, declara Marx em seu Opus Magnum, O Capital, “é, portanto, o enigma do fetiche da mercadoria, agora visível e deslumbrante aos nossos olhos” (Karl Marx, O Capital, Livro I).     

Baseando-se na obra pioneira do antropólogo estadunidense do século XIX, Lewis H. Morgan, Friedrich Engels – co-fundador das ideias do socialismo científico junto com Marx – analisou as primeiras formas de sociedade humana, demonstrando em seu texto clássico, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, que as classes sociais de exploradores e explorados nem sempre existiram. Em vez disso, Engels explicou que as sociedades primitivas eram geralmente baseadas em gens [grupos familiares - NDT] ou tribos, dentro dos quais havia a propriedade comum sobre as ferramentas e os produtos.

Estas comunidades, portanto, constituíam uma forma de “comunismo primitivo”, onde não havia intercâmbio entre os indivíduos, e sim a produção para o bem comum e o consumo com base nas necessidades. Ao mesmo tempo, este “comunismo” era “primitivo” uma vez que se baseava na escassez geral, resultante do baixo nível de produtividade, tecnologia e cultura.

Por exemplo, em seu recente livro, A Dívida, os Primeiros 5.000 Anos, David Graeber, o moderno antropólogo estadunidense, cita o exemplo dado por seu antecessor Morgan relativo às gens Iroquesas, um grupo de tribos nativas americanas, cuja estrutura social também serviu de base a Engels em seus trabalhos. “Em meados do século [XIX]”, observa Graeber, “as descrições de Lewis Henry Morgan... tornam claro que a principal instituição econômica entre as nações Iroquesas eram as casas comunais onde a maioria dos bens eram estocados e logo distribuídos pelos conselhos de mulheres, e ninguém negociava pontas de flechas por pedaços de carne” (David Graeber, A Dívida, os Primeiros 5.000 Anos, Melville House Publishing, 2014, edição de bolso, p. 29).

Em outros lugares, como observa Felix Martin em seu livro, Dinheiro: a biografia não autorizada, nas primeiras civilizações conhecidas que se desenvolveram em torno dos rios da Mesopotâmia, o Tigre e o Eufrates – no que é hoje o Iraque – o dinheiro tampouco existia. Foi aqui, na antiga Mesopotâmia, que as técnicas da agricultura irrigada foram inventadas e onde – por sua vez – foram formadas as primeiras cidades, como a “grande metrópole” de Ur. “No início do segundo milênio antes de Cristo”, afirma Martin, “mais de sessenta mil pessoas viviam dentro da própria cidade... milhares de hectares de terra estavam sob cultivo... e mais algumas centenas eram destinados à cria de gado leiteiro e de ovelhas” (Felix Martin, Dinheiro: a biografia não autorizada, Vintage Publishing, 2014, edição de bolso, p. 38).

Nessas economias urbanas, explica Martin, em lugar do dinheiro encontramos um sistema de planificação e de contabilidade estabelecido de cima para baixo, controlado por uma casta burocrática, em que toda a produção devia ser guardada em armazéns da cidade (frequentemente palácios reais e templos), com inscrição nas tabuletas utilizadas para manter o registro; “uma economia complexa regida de acordo a um sistema elaborado de planificação econômica que seria familiar a um gerente de uma moderna corporação multinacional” (Ibid., p. 44).

Portanto, quer se trate do comunismo primitivo das gens Iroquesas ou do planejamento burocrático observado nas cidades da Mesopotâmia, tais exemplos demonstram claramente como o dinheiro – e todos os seus “males” associados – não é uma verdade eterna e atemporal. Para se entender o que é o dinheiro e de onde veio, devemos analisar a transformação qualitativa nas relações sociais que ocorreram dentro da sociedade há milhares de anos.

A ascensão do dinheiro

As primeiras sociedades gregas – como descritas nos poemas épicos de Homero, como a Ilíada e a Odisseia – eram, como os Iroqueses, organizadas em torno de gens, com propriedade comum sobre as forças produtivas e os produtos resultantes. Felix Martin descreve como, “Para a provisão das necessidades mais básicas – comida, água e roupa... era essencialmente uma economia de famílias autossuficientes nas quais os membros individuais da tribo subsistiam dos produtos de seu próprio patrimônio” (Ibid., p. 35).

Além desta economia de subsistência individual, continua Martin, havia “três mecanismos simples para organizar a sociedade na ausência do dinheiro – as instituições interligadas para a distribuição da recompensa, a troca de presentes recíprocos e a distribuição do sacrifício”, que distam muito de ser exclusivos à pré-história da Grécia. Pelo contrário, a pesquisa moderna em antropologia e em história comparada mostrou-os como típicos da prática de pequena escala das sociedades tribais” (Ibid., pp. 36-37).

O ponto de inflexão histórico, explica Engels em Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, ocorreu com o desenvolvimento da propriedade privada dos meios de produção e, associado a este desenvolvimento, com a conversão dos produtos comunais em mercadorias.

“O surgimento da propriedade privada dos rebanhos e dos objetos de luxo trouxe o comércio individual e a transformação dos produtos em mercadorias. Este foi o germe da revolução subsequente. Quando os produtores deixaram de consumir diretamente os seus produtos, desfazendo-se deles mediante comércio, deixaram de ser donos dos mesmos. Já não podiam saber o que ia ser feito dos produtos, nem se algum dia (conforme se tornou possível) estes seriam utilizados contra os produtores, para explorá-los e oprimi-los. Por essa razão, aliás, é que nenhuma sociedade pode ser dona de sua própria produção, pelo menos de um modo duradouro, nem controlar os efeitos sociais de seu processo de produção, a não ser pela extinção da troca entre os indivíduos.

“Os atenienses, porém, deviam aprender, e rapidamente, como, ao nascer a troca entre os indivíduos e ao se transformarem os produtos em mercadorias, o produto vem a dominar o produtor” (Friedrich Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, Capítulo V).

O processo que Engels descreve se desenvolve inicialmente, não internamente dentro da comunidade, mas nas margens de uma dada sociedade com a troca de produtos excedentes entre tribos diferentes. Esse comércio, contudo, estabelece as rodas do intercâmbio da produção de mercadorias em movimento, rebotando mais tarde para se espalhar internamente, reforçando a propriedade privada e acelerando a dissolução dos laços comunais.

Com o desenvolvimento da produção e troca de mercadorias veio a expansão do comércio; e com o crescimento do comércio veio o surgimento da mercadoria-dinheiro – um equivalente universal que poderia funcionar como um meio de troca, facilitando o comércio a distâncias mais longas; uma mercadoria única que funciona como um critério de medida, com a qual todas as demais poderiam ser comparadas.

Tal processo não ocorre de forma consciente ou planejada, mas surge da necessidade da sociedade de expandir o comércio e o mercado. A mercadoria que de início foi elevada ao status deste equivalente universal é em grande parte acidental, no sentido histórico; no entanto, ela está enraizada nas necessidades materiais da sociedade e é geralmente – nas primeiras etapas – aquela que é considerada como a mercadoria mais importante para sociedade particular em questão. Como observa Marx em O Capital:

“O que parece acontecer não é que uma determinada mercadoria se converta em dinheiro porque todas as outras mercadorias expressam seus valores nela, mas, pelo contrário, que todas as outras mercadorias universalmente expressam seus valores em uma determinada mercadoria porque é dinheiro” (Marx, op. cit., p. 187).

Por exemplo, no caso das tribos nativas americanas, explica Engels, foi o gado que surgiu como a mercadoria dinheiro:

“A princípio, as trocas se fizeram entre as tribos através dos chefes gentílicos; mas, quando os rebanhos começaram pouco a pouco a ser propriedade privada, a troca entre indivíduos foi predominando cada vez mais, até chegar a ser a forma única. O principal artigo oferecido pelas tribos pastoris aos seus vizinhos era o gado; o gado chegou a ser a mercadoria pela qual todas as demais eram avaliadas, mercadoria que era recebida com satisfação em troca de qualquer outra; em uma palavra: o gado desempenhou as funções de dinheiro, e serviu como tal, já naquela época. Foi com essa necessidade e rapidez que se desenvolveu, no início mesmo da troca de mercadorias, a exigência de uma mercadoria que servisse de dinheiro” (Engels, op. cit., capítulo IX).

Contudo, a expansão e o crescimento do comércio na Grécia Antiga levaram à necessidade de uma mercadoria-dinheiro que fosse portável a longas distâncias. Por esta razão, vemos, começando na Grécia no final do sexto século AC, o surgimento da cunhagem de moedas, com o uso de metais preciosos – como o ouro e a prata – como dinheiro.

As vantajosas propriedades materiais desses metais para serem usados como dinheiro são claras: são geralmente homogêneos e uniformes em sua qualidade – uma barra de ouro é igual a qualquer outra; são facilmente divisíveis (ou combináveis) em diferentes quantidades, e, dessa forma, podem ser usados para representar facilmente diferentes quantidades de valor; são duráveis e, portanto, não se deterioram nem perdem valor, permitindo-lhes, assim, ser uma reserva de valor; e, o que é mais importante, têm uma alta densidade de valor, com pequenas quantidades de metal precioso sendo equivalentes a uma grande quantidade de outras mercadorias menos valiosas. O ouro, portanto, é dinheiro, não devido as suas veneradas qualidades estéticas, mas é considerado estético e agradável porque é dinheiro.

A ascensão do dinheiro e da cunhagem de moedas estava, como explica Engels, também associada à crescente divisão do trabalho dentro da sociedade de classes, e ao surgimento de “uma classe que não se preocupa mais com a produção, mas unicamente com a troca dos produtos – os comerciantes”.

“Agora surge uma classe que, sem tomar absolutamente parte na produção, conquista a direção geral da mesma e avassala economicamente os produtores; uma classe que se transforma no intermediário indispensável entre dois produtores, e os explora a ambos. Sob o pretexto de poupar aos produtores as fadigas e os riscos da troca de produtos, de encontrar saída para os produtos até nos mercados mais distantes, tornando-se assim a classe mais útil da sociedade, forma-se uma classe de aproveitadores, uma classe de verdadeiros parasitas sociais, que, em compensação por seus serviços, na realidade insignificantes, retira a nata da produção nacional e estrangeira, concentra rapidamente em suas mãos riquezas enormes e adquire uma influência social correspondente a estas, ocupando, por isso mesmo, no decurso desse período de civilização, posição de mais e mais destaque, logrando um domínio sempre maior sobre a produção, até gerar um produto próprio: as crises comerciais periódicas”.

“... E com a formação da classe dos comerciantes também veio o desenvolvimento do dinheiro metálico, a moeda cunhada, um novo meio para que o não-produtor dominasse o produtor e sua produção. Havia sido encontrada a mercadoria por excelência, que encerra em estado latente todas as demais, o instrumento mágico que se transforma, à vontade, em todas as coisas desejadas e desejáveis. Quem o possuía era dono do mundo da produção. E quem o possuiu antes de todos? O comerciante. Em suas mãos, o culto do dinheiro estava garantido. O comerciante tratou de tornar claro que todas as mercadorias, e com elas os seus produtores, deveriam prosternar-se ante o dinheiro. Provou de maneira prática que as demais formas de riqueza não passavam de quimeras em face dessa genuína encarnação da riqueza como tal” (Ibid.).

O dinheiro, então, como explica Engels, é produto da propriedade privada; o resultado de um emergente sistema de produção e troca de mercadorias. Uma vez trazido à existência, contudo, o dinheiro desenvolve sua própria lógica, espalhando-se através da interação social e fazendo valer suas leis frias e insensíveis de uma esfera da vida à outra. O dinheiro e a usura, afirmou Engels, foram “os principais meios para a supressão da liberdade comum”, rompendo os velhos laços comunitários da gens grega, e reforçando as desigualdades e a exploração da sociedade de classes emergente do estado ateniense.

“Desde então, o sistema monetário que se desenvolvia penetrou, como um ácido corrosivo, na vida tradicional das antigas comunidades agrícolas, baseadas na economia natural. A constituição das gens é inteiramente incompatível com o sistema monetário... [A velha constituição das gens] desconhecia o dinheiro, bem como o crédito e as dívidas fiduciárias. Por isso, o poder do dinheiro nas mãos da nobreza, poder incessantemente aumentado, criou um novo direito consuetudinário de garantia do credor contra o devedor e de apoio à exploração dos pequenos agricultores pelos possuidores de dinheiro...

“Com a produção de mercadorias, surgiu o cultivo individual da terra e, em seguida, a propriedade individual do solo. Mais tarde, veio o dinheiro, a mercadoria universal pela qual todas as demais podiam ser trocadas; mas, quando os homens inventaram o dinheiro, não suspeitavam que estavam criando uma força social nova, um poder universal único, diante do qual se iria inclinar a sociedade inteira. Este novo poder, subitamente aparecido, sem que o desejassem ou sequer o compreendessem seus próprios criadores, fez-se sentir aos atenienses com toda a brutalidade da sua juventude.

“Que se podia fazer? A antiga constituição gentílica se havia mostrado impotente contra o avanço triunfal do dinheiro; e, além disso, era absolutamente incapaz de abranger, dentro de suas limitações de concepção, conceitos como dinheiro, credores, devedores, cobrança compulsória das dívidas. E, no entanto, ali estava o novo poder social; nem os piedosos desejos nem o ardente afã por voltar aos bons tempos passados conseguiram expulsar do mundo o dinheiro ou a usura” (Ibid., capítulo V).

O dinheiro de crédito

Como alude Engels acima, com sua referência “ao ardente afã por voltar aos velhos tempos passados” quando “o dinheiro e a usura” não existiam, desde que o dinheiro existe, existem o crédito e o débito; e desde que existe a usura, existe a “cobrança compulsória das dívidas” – “um novo poder social... diante do qual se iria inclinar a sociedade inteira”.

Contudo, alguns teóricos monetaristas tentam enfatizar que o dinheiro é – acima de tudo – nada mais que um sistema de créditos e débitos; um conjunto de contas e saldos representando a distribuição da riqueza da sociedade entre sua população. O que vemos dentro deste marco de compreensão do dinheiro é apenas um meio de acertar contas e de fazer transferências entre diversas contas – ou seja, a moeda como um meio de pagamento.

Tais ideias, que são conhecidas genericamente como a teoria do crédito (ou débito) do dinheiro, foram apresentadas com mais profundidade pelo economista britânico do início do século XX, Alfred Mitchell Innes, e são apoiadas, de acordo com David Graeber em seu livro A Dívida: os Primeiros 5.000 Anos, pela moderna evidência antropológica.

De acordo com Innes e Graeber, nossa moderna concepção do dinheiro – como é descrita nos livros dos acadêmicos – baseia-se fundamentalmente em um mito: o “mito do escambo”, como Graeber o descreve, que se espalhou na imaginação e na consciência popular como resultado das obras dos economistas políticos clássicos, como Adam Smith e David Ricardo, e antes deles pelas teorias do empírico inglês, John Locke, e até mesmo do filósofo grego da Antiguidade, Aristóteles.

Para os economistas clássicos, o dinheiro era considerado essencialmente como um meio de troca – uma mercadoria única que se eleva acima de todas as outras para se tornar universalmente aceita a fim de facilitar o comércio. A utilização de uma mercadoria particular como dinheiro, tal como o ouro, residia em sua própria alta densidade de valor. Antes do dinheiro, como se relata, não havia nenhuma outra forma de comércio além do escambo. Isto colocava problemas claros, uma vez que exigia que se cruzassem uns com os outros indivíduos com necessidades mutuamente alternativas, e que os bens comercializados fossem levados juntos e prontos para a troca. Daí a invenção do dinheiro, para superar as barreiras do escambo e ampliar tanto a variedade dos produtos que podiam ser trocados quanto a distância em que poderiam ser comercializados.

O problema, aponta Graeber, citando o antropólogo de Cambridge, Caroline Humphrey, é que: “Nenhum exemplo de uma economia de escambo, puro e simples, já foi descrito, e muito menos do surgimento do dinheiro a partir dela; toda a etnografia disponível sugere que nunca houve tal coisa” (Graeber, op. cit., p. 29).

No entanto, deve-se notar que esta narrativa antropológica do “mito do escambo” está baseada na busca de uma economia do escambo – isto é, na busca de uma comunidade em que ocorreu a troca interna de bens através do escambo. Mas, como Engels (e também Marx) apontaram, o desenvolvimento da troca de mercadorias através do escambo não ocorre de início internamente, dentro da comunidade, mas externamente, nas bordas, onde interagem as diferentes tribos. Não deveria surpreender, portanto, que “nenhum exemplo de uma economia de escambo” pode ser encontrado historicamente. 

Para aqueles que propõem a teoria do crédito/débito do dinheiro – em contraste aos economistas clássicos e sua teoria do dinheiro-mercadoria – o principal papel do dinheiro não é como um meio de troca, mas como uma unidade de conta. Nesta moderna era do capitalismo, com seu altamente desenvolvido sistema de crédito, reserva bancária fracionária [refere-se à prática bancária, adotada na maioria dos países do mundo, que permite aos bancos fazerem empréstimos ou investimentos em valor muito superior ao valor dos depósitos sob sua guarda – NDT] e transferências eletrônicas, a ideia de que o dinheiro é mais do que apenas moedas e dinheiro em circulação pode parecer óbvia. Mas nos tempos de Smith, Ricardo e outros, tal ideia não foi considerada evidente por si mesma. Mesmo hoje, há aqueles que – vendo o colapso do sistema financeiro em consequência da crise bancária de 2008, para não mencionar as bolhas de crédito cada vez mais infladas e a impressão de dinheiro através da flexibilização quantitativa, que ainda continua – exigem um retorno ao padrão ouro para restaurar a calma e a ordem no sistema monetário global.

Como um meio de fazer contas, então, o dinheiro é essencialmente um sistema de créditos e débitos. Como enfatiza Graeber: “Não começamos com o escambo, descobrimos o dinheiro e em seguida, eventualmente, desenvolvemos os sistemas de crédito. Aconteceu precisamente o contrário. O que agora chamamos de dinheiro virtual veio primeiro. As moedas chegaram muito mais tarde e seu uso se espalha somente de forma desigual, nunca substituindo completamente os sistemas de crédito” (Ibid., p. 40).

Felix Martin apresenta dois exemplos em Dinheiro; a biografia não autorizada, para destacar este ponto. O primeiro é o caso do povo de Yap, uma remota e isolada ilha no Pacífico. Um antropólogo estadunidense chamado William Furness, ao visitar Yap em 1903, ficou espantado ao descobrir que a economia da pequena ilha consistia de apenas algumas poucas mercadorias comercializadas; e, o que é mais importante, não havia nenhum escambo, nem qualquer moeda agindo como meio de troca. Em vez disso, Yap tinha um sistema monetário altamente desenvolvido envolvendo grandes rodas de pedra chamadas de “fei”, de até 12 pés de tamanho, que eram utilizadas para representar e contar as várias quantidades de riqueza detidas pelos indivíduos dentro da comunidade.      

Notavelmente, diz Martin, Furness “observou que o transporte físico do fei de uma casa para outra era, de fato, raro. Numerosas transações ocorriam – mas as dívidas contraídas eram normalmente compensadas umas contra as outras, com qualquer saldo pendente sendo diferido na expectativa de alguma troca futura. Mesmo quando os saldos em aberto faziam sentir a necessidade de liquidação, não era costume transferir fisicamente o fei” (Martin, op. cit., p. 4).

“O dinheiro de Yap não era o fei”, Martin continua, “mas o sistema subjacente de contas de crédito e compensação no qual eles ajudavam a manter o controle. O fei era apenas símbolos através dos quais estas contas eram mantidas” (Martin, op. cit., p. 12).

Mais perto de casa, Martin proporciona outro exemplo deste tipo de crédito em dinheiro sob a forma de “descontos do Tesouro” – pedaços de madeira utilizados na Inglaterra entre os séculos XII e XVIII, para registrar pagamentos de ou para o estado. Esses pedaços de madeira seriam divididos ao meio, com o credor e o devedor guardando cada metade como recibo do pagamento. Cabe destacar que a metade do credor poderia ser utilizada como um meio de pagamento – uma forma de garantia financeira, a ser trocada com outro indivíduo para liquidar uma dívida não relacionada.

Não foi até 1834 que estes descontos do Tesouro foram finalmente abolidos e substituídos pelo Banco da Inglaterra por um sistema de papel-moeda. As contagens que permaneceram foram queimadas e destruídas, deixando para trás pouca evidência de sua existência. Por razões semelhantes, observa Martin, a evidência física para todos os tipos de sistemas monetários através da história – e particularmente dos sistemas de crédito envolvendo contas escritas – pode ter sido perdida para sempre para nós, apenas sobrevivendo hoje a moeda forte da cunhagem. Em consequência, tanto Martin quanto Graeber colocam a hipótese, resta predominantemente o conceito de dinheiro que enfatiza bens tangíveis, como os metais preciosos.

(continuará)

Artigo publicado originalmente em 11 de agosto de 2016, no site da seção britânica da Corrente Marxista Internacional (CMI), sob o título "What is money? - part one: the origins of money".

Join us

If you want more information about joining the RCI, fill in this form. We will get back to you as soon as possible.